Nem só papel, nem só digital: Suécia dá autonomia para escolha de livro didático - PORVIR

Inovações em Educação

Nem só papel, nem só digital: Suécia dá autonomia para escolha de livro didático

Em entrevista ao Porvir, Peter Karlberg, diretor da Agência Nacional de Educação da Suécia, ressalta como o país investe no papel do professor tanto para decidir o caminho de suas aulas quanto para selecionar tecnologias, materiais impressos ou ambos

por Ana Luísa D'Maschio / Vinícius de Oliveira ilustração relógio 17 de janeiro de 2024

Em 2023, um acirrado debate tomou conta da pauta educacional no Brasil: o governador de São Paulo, Tarcisio de Freitas, chegou a anunciar que todas as escolas estaduais paulistas, do ensino fundamental 2 ao ensino médio, adotariam apenas obras digitais. A repercussão negativa fez com que a proposta fosse descartada poucos dias depois, por não se alinhar às tendências e estudos mundiais – mesmo os países mais ricos e mais digitalizados não abandonaram por completo os materiais impressos em suas escolas.

Um deles é a Suécia: nos últimos 15 anos, uma das nações mais desenvolvidas do mundo, caminhava em busca de uma educação majoritariamente digital, mas, em 2023 reviu sua estratégia. Em um artigo para o jornal Expressen, a ministra da Educação sueca, Lotta Edholm, afirmou que a educação 100% informatizada foi uma grande experiência, mas que “houve uma postura acrítica [do governo anterior] de considerar a tecnologia necessariamente boa, independentemente do conteúdo”.

De acordo com reportagem do Portal G1, os resultados do Pirls 2021 (Progress in International Reading Literacy Study), exame internacional que mede habilidades de leitura de alunos do 4º ano do ensino fundamental (de 9 a 10 anos de idade), mostraram que o desempenho das crianças suecas piorou entre 2016 e 2022: caiu de 555 para 544 pontos. O atual governo entendeu que há uma ligação direta entre a queda e o uso de telas na sala de aula. “Recursos didáticos digitais, se usados ​​corretamente, apresentam certas vantagens, como combinar imagem, texto e som. Mas o livro físico traz benefícios que nenhuma tela pode substituir”, escreveu a ministra.

Para entender o impacto da decisão, o Porvir entrevistou Peter Karlberg, diretor da Agência Nacional de Educação da Suécia. Com pesquisas ligadas ao uso quanto ao impacto de novas tecnologias, Peter tem trabalhado em diferentes posições no campo da educação. Seu foco, desde os anos 1980, é o uso de TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação), com estudos desenvolvidos desde sua passagem pelo ministério da Educação, quando apoiou o desenvolvimento do currículo nacional. Na conversa que você lê abaixo, em lugar de uma oposição entre o material impresso e o digital, Peter ressalta uma característica importante do sistema sueco, a autonomia de escolas e de educadores para a definição do material didático.

Confira os principais trechos:

Divulgação/Prague European Summit 2023

Porvir – Poderia nos explicar como anda a proposta de digitalização na educação sueca?

Peter Karlberg – Tivemos uma mudança de governo em 2022. No governo anterior, nos pediram uma proposta de estratégia nacional para a digitalização nas escolas, que também apresentamos para este governo. Mas eles nos disseram que a digitalização é um grande experimento. Levaram nossa proposta para audiências públicas e pediram, mais especificamente, comentários sobre o uso de telas por crianças pequenas – esses políticos descrevem como se elas estivessem sentadas em frente às telas o tempo todo. Mas não é bem assim. 

Porvir – Como a tecnologia é aplicada no dia a dia da escola, com essas crianças?

Peter Karlberg – Quando as crianças usam tecnologia, por exemplo, saem para tirar uma foto e voltam para a escola a fim de debater sobre essa imagem com um grupo de colegas, colocando-a em uma tela grande, por exemplo. Isso vale para o nível primário e secundário. Normalmente, a maioria das crianças, pelo menos a partir do quinto ou sexto ano, conta com um laptop ou um iPad oferecidos gratuitamente pela escola. E muitos também têm computadores em casa. Temos um bom mercado em crescimento para materiais digitais: não apenas livros didáticos digitalizados, mas sim um ambiente em que os editores oferecem suas imagens, filmes, tudo isso.

Porvir – Quando o governo decidiu mudar os livros didáticos para o formato digital, professores e escolas foram consultados se queriam fazer a mudança ou foi uma decisão nacional?

Peter Karlberg – Nunca foi algo imposto quando se trata de digitalização. Nós temos promovido a digitalização, mais nas palavras, pois não há dinheiro extra para isso. É algo decidido localmente. Aqui na Suécia, as escolas pertencem a uma municipalidade, que tem um governo local. Eles são responsáveis por comprar coisas. Nós [da Agência Nacional de Educação] fornecemos muitas oportunidades de treinamento para o uso de ferramentas digitais e outros tipos de apoio. Se você deseja ter esse tipo de material de ensino digital, você decide isso no nível local e compra no nível local. Nós não incentivamos os editores a fornecer esse tipo de produto, é um mercado livre. Você pode escolher um pacote digital para matemática ou escolher ter um livro didático com complementos digitais. Ao final, é responsabilidade dos professores decidir quais materiais usar. Eles têm autonomia para decidir.

Porvir – Pelo que você está nos dizendo, é completamente diferente do lemos em 2023 sobre o que aconteceu na Suécia. Aqui no Brasil, as notícias diziam que vocês foram adiante, totalmente para o universo digital, e agora estão retrocedendo para o papel. 

Peter Karlberg – O novo governo fez alguns comentários públicos que seriam considerados negativos para a digitalização em geral. Mas a única decisão do novo governo nessa direção, que eles deram à Agência Nacional de Educação, é a tarefa de criar uma concessão para comprar livros didáticos. Não há muito dinheiro para isso, talvez um livro para cada aluno, não um livro para cada matéria. Tanto escolas públicas quanto privadas podem obter essa concessão. Eles podem podem solicitar e devem provar que não estão usando isso para mais nada além de livros didáticos. E é permitido que sejam livros didáticos com complementos digitais. 

Rawpixel/DepositPhotos A convivência entre analógico e digital em escola na Suécia

Porvir – Como você descreveria a dedicação de professores, famílias e alunos à tecnologia? Há evidências de que a tecnologia desempenha um papel importante?

Peter Karlberg – Não há evidências de que o digital pode ser muito útil e tampouco evidências de que não pode ser útil. Tvemos um estudo, um dos melhores que já vi nesse sentido, da Annika Agélii Genlott. pela Universidade de Örebro. Municipalmente, foi desenvolvida uma tarefa sobre o uso de ferramentas digitais: todos os professores deveriam usá-la, fazendo um controle de dados depois. Verificaram aqueles que estavam usando esse método, outro grupo que tinha ferramentas digitais, mas sem método, e também um terceiro grupo que era mais tradicional com livros didáticos.

Porvir – Qual foi o resultado?

Peter Karlberg – No grupo que usou ferramentas digitais, a diferença entre meninos e meninas desapareceu. Muitos, especialmente aqueles que tinham algum tipo de dificuldade em leitura, escrita e pensamento, melhoraram e foram melhores do que o grupo que teve ensino tradicional. O pior grupo foi o que usou dispositivos digitais não alinhados à parte pedagógica. Eles pontuaram o mais baixo no teste nacional que temos no terceiro ano. Portanto, isso é feito para crianças pequenas que estão realmente aprendendo a ler e escrever e fazer matemática com professores. 

Porvir – Em outras palavras, você está nos dizendo que, se a tecnologia não for seguida por uma mudança no ensino, não há como a tecnologia desempenhar um papel importante na aprendizagem, certo?

Peter Karlberg – Exatamente. A principal razão para usar ferramentas digitais nas escolas e materiais digitais é que isso contribuirá para a competência digital dos alunos. E isso é muito importante por razões democráticas. Eles precisam ser capazes de saber como verificar se isso é feito para que possam usar ou se está correto, partindo do que chamamos de pensamento crítico. Como benefício, você também obtém a ideia de qual competência precisará no futuro.

Porvir – Poderia exemplificar?

Peter Karlberg – A Suécia, talvez, seja extrema nesse sentido. Aqui ninguém mais usa dinheiro em espécie, e sim pagamentos digitais. Temos esse serviço no qual você pode enviar dinheiro imediatamente de um telefone para outro, fazer coisas assim. Se você quiser viajar, dificilmente encontrará uma agência de viagens na rua. Você vai para um site e compra suas férias. É possível fazer digitalmente quase tudo. Isso mostra, ao menos na minha opinião, que o futuro será mais digital do que algumas pessoas disseram. A única coisa de que podemos ter certeza sobre o futuro é que será mais digital do que agora.

Porvir – E qual o impacto que chegará à escola?

Peter Karlberg – Em um sentido mais pedagógico, essa é a vantagem: quando você tem uma escola digitalizada, você leva muito tempo para os professores se adaptarem ao uso de recursos digitais. Se você continuar a ensinar da maneira que costumava fazer, não se beneficiará muito, ou talvez até descubra que é perturbador porque os dispositivos digitais permitem que você jogue jogos ou o que quiser como criança na sala de aula. É preciso ser capaz de manter o interesse pelo assunto para ter um método bem pensado para o ensino e a aprendizagem nesse tipo de ambiente.

Porvir – O que destacaria nesse sentido?

Peter Karlberg – Você deve ter a possibilidade de dizer: “Ok, agora não vamos usar laptops, vamos ler um livro ou fazer um debate.” Exige-se dos professores, eu diria, descobrir como isso pode ser feito de uma maneira interessante. Outra vantagem é que os recursos digitais são muito fáceis de transportar. Portanto, se você tem um laptop e tem seus materiais de ensino como estudante, você pode levá-los para casa e pode fazer o trabalho da escola em casa. Novamente, temos uma situação muito favorável porque cerca de 99% das casas suecas com crianças têm boa conectividade. Os alunos contam com um iPad ou um laptop que podem levar para casa e pesquisar o que precisam. 

Porvir – Ao longo dos anos, o Porvir conversou com educadores finlandeses e eles trabalham com uma metodologia que podemos traduzir, no nosso vocabulário de educação, como aprendizagem baseada em projetos. Como você descreve as características mais importantes da educação sueca? 

Peter Karlberg – Para nós, eu diria que há uma grande diferença entre as salas de aula. Isso se deve ao fato de os professores terem autonomia como profissionais. Eles estão no comando do que está acontecendo em sua sala de aula, decidem como ensinar. Temos um currículo nacional e também um programa nacional para cada disciplina. E o currículo é mais geral, que aborda todos os professores e todas as pessoas que trabalham nas escolas, promovendo algo como as habilidades do século 21. Temos isso desde os anos 1980: algo que você deve aprender a ser, adquirir habilidades socioemocionais que não são específicas de uma disciplina. Todos os professores devem pensar nesses objetivos, tentando ser inclusivos: não importa se você é o melhor ou o pior, ou aquele com os maiores problemas da sala – tanto alunos como educadores também precisam crescer como indivíduos. 

Porvir – Há referência ao aprendizado baseado em problemas, então?

Peter Karlberg – Isso foi muito popular durante um período de tempo, as escolas suecas têm a tendência de serem fascinadas por ideias como o aprendizado baseado em problemas. Elas incorporaram algumas coisas, mas há outras propostas, como a aprendizagem visível, do pesquisador australiano John Hattie. Seu livro “Aprendizagem visível para professores: como maximizar o impacto da aprendizagem” se tornou extremamente popular. Os professores sempre deram feedback (retorno avaliativo), claro, mas houve um foco nisso, no feedback formativo versus avaliação formativa. Temos um currículo nacional que não prescreve nenhum método específico. 

Porvir – Poderia exemplificar?

Peter Karlberg – Se você considerar professores que trabalham nas séries iniciais do ensino fundamental, eles podem escolher qualquer método que considerem bom para ensinar como ler e escrever. Pode haver diferença até mesmo na mesma escola entre as salas de aula. Mesmo que realmente tenhamos tentado promover isso, trabalhando com seus colegas no nível da escola para que se ajudem e depois visitem outros professores para falar sobre o que foi bem, o que não foi tão bom, o projeto sueco acha que você pode se inspirar por você mesmo.

Porvir – E em relação às ferramentas digitais?

Peter Karlberg – Quando os professores voltaram das férias de verão (meio do ano), de repente se viram em uma sala de aula onde havia 30 alunos com um laptop na frente deles. E isso foi, claro, uma loucura, porque professores não estavam preparados. Acharam difícil atrair a atenção dos alunos porque estavam mais voltados para a tecnologia. Eu costumo argumentar que é possível oferecer um laptop ao professor, um projetor na sala de aula ou um quadro branco para ajudá-los a encontrar maneiras de fazer apresentações que não eram possíveis antes. Assim, começam a se acostumar e ter tempo para colaborar com seus colegas sobre como encontrar coisas que podem ser úteis com mais equipamentos e materiais digitais. Na Suécia, temos uma série de editoras que fornecem recursos digitais para todas as disciplinas e para todas as séries nas escolas. Então você pode comprar de um editor e todos usarão o mesmo, as editoras estão muito interessadas em obter receita de licenças para todos os alunos nas configurações escolares. Então é ainda uma questão se as editoras podem encontrar outra maneira de serem pagas para que possam dar mais liberdade aos professores.

Porvir – Como você mencionou, a despeito da cobertura de internet, a adoção de tecnologia nas escolas está mais relacionada a dispositivos do que à conexão. Você poderia mencionar quais tipos de comportamentos de educadores ou diretores precisaram ser alterados?

Peter Karlberg – Pesquisas também apontam que, se você quiser ser bem-sucedido na introdução ou promoção do uso da digitalização nas escolas, você precisa ter todos os atores a bordo. Não é suficiente ter um ou dois professores entusiastas; é preciso ter diretores comprometidos e oferecer aos educadores a oportunidade de participar de cursos de treinamento. Você também precisa fazer com que professores ganhem um tempo extra para compartilhar suas experiências e discutir como isso pode ser feito. Aqui na Suécia, a junta no nível do município também deve estar comprometida, para que forneça o financiamento necessário. A agência onde eu trabalho fornece muitos recursos, principalmente voltados para professores, mas também voltados para aqueles que estão em papéis de tomada de decisão nos municípios. Mostramos a todos o que é a sociedade digital e no que ela se tornará, para que tenham essa ideia de que estamos fazendo isso para o futuro das crianças. Assim, você pode começar a discutir o que são os passos em relação à compra de hardware, conexões sem fio em todos os edifícios, etc. É preciso definir um objetivo de onde você quer estar no futuro e depois começar seu plano de tecnologia.


TAGS

aprendizagem baseada em projetos, educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, tecnologia

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