Em tese premiada, pesquisadora transforma vivências em pedagogia antirracista
Vencedora do Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog pesquisadora fala sobre os obstáculos de construir práticas pedagógicas emancipatórias em um país marcado pelo racismo estrutural
por Nicole Nicácio
4 de dezembro de 2025
Na fotografia que ilustra a primeira página de sua tese de mestrado, cuidadosamente guardada pela avó Mercina, a pequena Fabiana Rodrigues da Silva sorri. Ela veste uma beca azul e segura o diploma da educação infantil. Mas a aparente alegria da imagem oculta uma violência que a câmera não registrou: instantes antes do clique, os lindos cachinhos que sua mãe havia hidratado um a um para a festa de formatura foram desfeitos por uma professora, que penteou seu cabelo a seco, para “alisá-lo”.
Décadas depois, Fabiana reviveu essa dor ao ver seu filho Alex chorar e resistir em ir para a creche. Negro, o menino enfrentou situações de racismo que não passaram despercebidas pela mãe. Foram muitas conversas e mudanças de escola até encontrar o local que retomaria a alegria de Alex, hoje com 8 anos, em estar na sala de aula. Mesmo tão pequeno, sentiu na pele negra a falta de acolhimento que atravessa gerações.

Suas experiências pessoais se tornaram os grandes temas de estudo em sua carreira na pedagogia. A tese de mestrado, intitulada “Corpografias Negras: Afetividades e pedagogias emancipatórias em práticas antirracistas” e defendida na USP (Universidade de São Paulo) neste ano de 2025, ganhou o 5º Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog. A iniciativa valoriza pesquisas de graduação, mestrado e doutorado que fortalecem o compromisso entre universidade pública e sociedade na defesa dos direitos humanos.
Em seu estudo, Fabiana narra como violências cotidianas atravessam corpos negros desde muito cedo e propõe que a escola seja um espaço de afeto, pertencimento e resistência.
“A minha trajetória escolar foi marcada por violências raciais, principalmente relacionadas à estética e ao meu cabelo. Não guardo lembranças afetivas da escola”, afirma a professora. O incômodo voltou a ganhar força quando, já adulta e mãe, ela percebeu que o filho também começava a vivenciar o racismo. “Percebi que aquilo que eu vivi não era exceção, mas uma estrutura que continua atravessando gerações.”
Arte-educadora desde 2008, Fabiana atua em projetos voltados para mulheres negras e periféricas. Essa vivência mostrou a importância de reconhecer e levar diferentes saberes para o ambiente escolar. “A cultura hip hop e a dancehall foram fundamentais na construção da minha identidade como mulher preta”, conta.
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Com o tempo, surgiu o desejo de acessar a escola também de forma institucional. Por isso, decidiu cursar pedagogia. “Minhas experiências pessoais sempre mostraram a importância de trazer saberes plurais para o ambiente educacional”, afirma.
A maternidade ampliou esse compromisso. Mãe de um menino negro retinto, Fabiana viu o medo se transformar em urgência, já que sabia que ele enfrentaria violências ainda mais intensas. “Isso me mobilizou a criar práticas pedagógicas antirracistas, que valorizem a vida, a afetividade e a segurança. Ser mãe, educadora e pesquisadora se entrelaça nesse compromisso de construir espaços mais justos e afetuosos.”
Esse percurso a levou à reflexão sobre as “escrevivências”, termo criado pela escritora Conceição Evaristo. A palavra une “escrever” e “vivência” para definir a escrita que brota da experiência, especialmente da mulher negra. “A escrevivência traduz o cotidiano, as dores e as alegrias, convocando memória e ancestralidade para transformar o individual e o coletivo em um ato de resistência e afirmação, como metodologia: narrativas que resgatam memórias e colocam o protagonismo negro no centro”, explica.
A relevância da tese ganha força diante de pesquisas recentes. Uma em cada seis crianças de até 6 anos já foi vítima de racismo no Brasil, sendo as creches e pré-escolas os locais onde ocorreu a maior parte desses crimes, aponta o “Panorama da Primeira Infância: o impacto do racismo”, realizado pelo Datafolha para a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
“Desde a educação infantil, vivi experiências violentas relacionadas ao cabelo e à estética. Essas memórias são muito profundas e dolorosas. Na época, não eram vistas como violência, mas hoje sabemos o quanto isso impacta a subjetividade e a construção da identidade. Essas marcas permanecem na vida adulta e mostram como o racismo mata também pela memória”, complementa.

Antirracismo e pedagogia antirracista
Durante o curso de pedagogia, porém, ela notou a ausência de uma formação consistente sobre relações étnico-raciais.

“Havia apenas uma disciplina obrigatória, e mesmo assim a professora questionava sua existência. Foi uma experiência de violência acadêmica: ela silenciava nossas vozes e deslegitimava a lei 10.639”, lamenta. Isso a revoltou e a levou a dedicar seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) para estudar a implementação dessa lei na educação básica. “Vi na prática como o racismo estrutural molda a formação docente.”
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Fabiana se aprofundou no tema ao ingressar no mestrado. Durante a pesquisa, percebeu que também era preciso enfrentar o racismo institucional presente na própria universidade. Na dissertação, ela evidenciou como o racismo estrutural e institucional atravessa a formação escolar desde cedo, impactando identidades e subjetividades de crianças e jovens.
“A ausência de disciplinas consistentes sobre relações étnico-raciais e a resistência de professores em abordar o tema foram violências que precisei transformar em combustível para a tese. Além disso, conciliar maternidade, trabalho e estudo exigiu muito esforço. Mas cada obstáculo reforçou a importância de seguir com a dissertação e dar voz às nossas experiências.”
Corpografias negras
Outro ponto apresentado é o termo “corpografias negras”. O conceito parte da ideia do corpo como território político. “Antes mesmo de falarmos, nossos corpos negros já são lidos e atravessados por imaginários coletivos que autorizam violências. Mas também podemos construir contra-narrativas, registros e memórias que afirmem nossa existência e potência. É compreender o corpo como produtor de saberes e disputar narrativas a partir da ancestralidade e da experiência negra”, explica. Na prática pedagógica, significa valorizar as histórias e as culturas negras, além de criar espaços de bem viver.
Fabiana também defende as práticas emancipatórias, que são aquelas que não reproduzem a lógica opressora do racismo estrutural. “Pedagogias emancipatórias reconhecem os saberes plurais, valorizam a cultura negra e criam espaços de bem viver. Em contextos antirracistas, elas são fundamentais porque permitem que crianças negras sejam vistas como sujeitos de potência, não como problemas. É uma forma de disputar narrativas e construir futuros diferentes”, pontua.

Na pedagogia antirracista, o afeto em primeiro lugar
Quando questionada sobre quais práticas educativas considera mais eficazes para promover a reexistência de corpos negros na escola, Fabiana é enfática: são aquelas que partem da afetividade, da escuta e da valorização da cultura negra. Oficinas de arte, dança, música, rodas de conversa e projetos que trabalham a autoestima são fundamentais. “É preciso criar espaços onde as crianças negras se vejam representadas e reconhecidas. A reexistência passa por afirmar que esses corpos têm direito ao bem viver e à dignidade”, sublinha.
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Para a pesquisadora, o afeto é uma forma de resistência porque rompe com a lógica da desumanização. “Crianças negras muitas vezes recebem menos carinho, menos atenção, menos cuidado. Quando a escola oferece acolhimento, escuta e valorização, ela transforma a experiência dessas crianças. O afeto fortalece a autoestima, cria vínculos e abre caminhos para que elas se sintam pertencentes e capazes.”

O que precisa ser feito
A formação docente atual não está preparada para lidar com o racismo estrutural nas escolas, defende a professora. Fabiana reforça que a formação ainda é muito limitada e muitas vezes reproduz o racismo institucional. “A ausência de conteúdos obrigatórios sobre educação étnico-racial mostra que os professores não estão sendo preparados para intervir em situações de racismo na escola. É urgente investir em formação continuada e garantir que a lei 10.639 seja efetivamente implementada.”
Para a pesquisadora, a principal contribuição de sua tese é mostrar que nossas experiências produzem conhecimento. “Ao trazer as escrevivências e corpografias negras para o centro, a pesquisa rompe com a lógica eurocentrada e valoriza narrativas que sempre foram silenciadas. Isso abre caminho para práticas pedagógicas que reconhecem a subjetividade das crianças negras e criam ambientes mais afetivos e emancipatórios”, acredita ela.
Ganhar o Prêmio Vladimir Herzog foi muito significativo para Fabiana. “Estar na academia nunca foi fácil. Sempre precisei conciliar trabalho, estudo e sobrevivência. Receber o Prêmio Vladimir Herzog representa um reconhecimento não apenas da minha trajetória, mas também da luta coletiva das mulheres negras na educação”.
Ela acredita que é uma forma de legitimar as narrativas e afirmar que a pedagogia antirracista têm potência transformadora. “Esse reconhecimento dialoga diretamente com a luta, porque amplia nossa visibilidade, fortalece nossas vozes e incentiva mais pessoas a se engajarem nesse movimento.”
Além de tudo, é preciso esperançar numa prática antirracista, como ensina o filósofo e escritor Renato Noguera.
Para 2030, Fabiana imagina uma escola que seja um espaço de bem viver, onde as crianças negras tenham acesso à cultura, ao lazer, à tecnologia e a uma educação de qualidade. “Uma escola que valorize suas histórias, que tenha professores preparados para lidar com o racismo e que ofereça segurança e acolhimento. Uma escola democrática, afetiva e antirracista, capaz de garantir que essas crianças cresçam com dignidade e esperança.”





