Como promover uma formação aberta à diversidade no ensino médio
Nesta terceira reportagem da série "Formação de professores para o ensino médio", conheça especialistas e experiências e que defendem a inclusão e as oportunidades iguais a todos os estudantes
por Ana Luísa D'Maschio 7 de agosto de 2023
“Ao considerar que a escola é um espaço de socialização, conhecimento e aprendizagem, seus portões devem estar abertos à diversidade, ao encontro, ao compartilhamento de ideias e à oferta de oportunidades iguais de realização do potencial humano.” Esse é um dos trechos da Política de Educação Especial, elaborada pela Secretaria de Estado de Santa Catarina, grifados pela educadora Rosana Aparecida Marcolino Balestrin. Seu exemplar do livro está repleto de marcações coloridas e parágrafos comentados: o material é referência para o trabalho de Rosana, assistente técnico-pedagógica da Escola de Educação Básica Ruth Lebarbechon, na cidade de Água Doce (SC).
Com pouco mais de 7 mil habitantes, o município catarinense se destaca pela escolarização da população entre 6 e 14 anos, que atinge 97,9%, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Dirigido por Elisete Balestrin, o colégio onde Rosana trabalha é referência de educação inclusiva: com turmas do ensino fundamental 2 ao ensino médio (e 340 alunos ao todo), os 27 estudantes com deficiência frequentam as turmas regulares, e têm atividades de AEE (Atendimento Educacional Especializado) no contraturno.
“Durante o ano, os professores contam com formações específicas para atuar da melhor forma possível. O objetivo da política pública aqui do estado é ter um olhar mais direto para as devidas adaptações e proporcionar a socialização e a inclusão do público da educação especial com o regular”, explica a educadora, que está à frente da coordenação pedagógica há 19 anos. “O segundo professor (que acompanha a classe) deve ter graduação em pedagogia ou educação especial para o AEE”, comenta.
Pedagoga, Rosana tem quatro especializações. Uma delas é em psicopedagogia clínica. “Queria entender melhor o universo da educação inclusiva e atender da melhor forma possível. É uma questão que não pode ser levada apenas no discurso. O público merece um olhar acolhedor e respeitoso, mostrando que a escola é deles, é de todos, de cada um em sua particularidade.”
Clique na imagem abaixo para conferir a galeria de fotos da Escola Ruth Lebarbechon:
Respeito e acolhimento
O acolhimento da comunidade escolar em relação à inclusão tem tido resultados tão positivos que o colégio se tornou um ponto de encontro de quem já concluiu os estudos. “Quando a filha chegou ao terceiro e último ano do ensino médio, uma mãe veio conversar conosco. A filha, com Síndrome de Down, tinha evoluído tanto com a convivência no colégio que já conseguia ir sozinha para a escola e não queria que as aulas acabassem. A mãe nos perguntou se ela poderia ser reprovada, para que pudesse frequentar as aulas por mais um ano”, conta a coordenadora. “Dissemos que a escola estaria sempre aberta para a estudante, e que não tínhamos qualquer motivo para reprová-la, pelo contrário. A menina até hoje vem nos visitar: inclusive, comemorou o aniversário de 15 anos aqui na escola. Foram criados laços de amizade e respeito que refletiram no crescimento pessoal e social da aluna”, diz Rosana, sem esconder a emoção.
Trabalhar com a diversidade, inclusive, é um dos eixos do projeto pedagógico da escola. Questões raciais, de gênero e sexualidade perpassam pelo currículo. “O componente curricular projeto de vida fortalece ainda mais a reflexão sobre a diversidade, o trabalho com os temas da atualidade nos planejamentos de aula”, comenta Rosana.
Todos os meses, a escola se organiza com o apoio do Nepre (Núcleo de Prevenção contra Violência na Escola) para abordar assuntos contemporâneos. No primeiro semestre deste ano, por exemplo, todas as turmas participaram de uma atividade conduzida pela professora de projeto de vida, Janete Rodrigues, com apoio das segundas professoras Jusara Karpsak e Joaquina Aparecida do Amaral Tonini. Trata-se do “Museu da Empatia”, no qual os alunos trabalharam o autoconhecimento, priorizando a socialização e integração do aluno no ambiente escolar. Cada aluno utiliza uma caixa colorida, colocando elementos de seu cotidiano e gravando sua história. Quando prontas, as caixas ganham QR Codes e os visitantes podem ouvir as histórias, colocando-se no lugar do outro. Ao final, deixam na lousa um recado sobre o que mais foi impactante.
Formação gratuita |
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O que significa diversidade na escola? Por que levar em conta a diversidade dos estudantes é essencial para garantir que todos aprendam? O que diversidade tem a ver com inclusão e o que inclusão tem a ver com equidade? Acesse Nosso Ensino Médio e confira a trilha de aprendizagem (para professores e gestores escolares) e a pauta formativa (para formadores). |
Por mais vozes antirracistas
Professora do departamento de ciências da educação e do mestrado da UNIR (Universidade Federal de Rondônia) Rosângela Hilário tem um extenso currículo ligado aos direitos humanos. Ao lado do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde, que lidera na universidade, Rosângela notou a ausência de cursos para a diversidade. Junto aos colegas, elaborou duas formações em andamento: uma de letramento racial e outra sobre igualdade de gênero.
De acordo com a especialista, as escolas de Rondônia não têm aplicado o que diz a lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares. Seu grupo vem colocando em prática uma série de ações para manter a temática em foco. “Começamos pelas periferias, chamando os jovens para o debate, e chamamos a atenção das autoridades. Levamos as ações para a Ordem dos Advogados, para o Tribunal de Justiça, para a Defensoria Pública e para o Tribunal de Contas”, conta Rosângela.
O principal resultado foi a sensibilização dos servidores públicos além da própria formação e da certificação. “O Tribunal de Contas recomendou a criação de um curso voltado especificamente para professores e professoras, com atividades a serem replicadas com os estudantes, bem como a criação de material didático”, comemora. As cartilhas estão em fase de produção.
Docente do curso de pedagogia da UNIR, Rosângela crítica a ausência de disciplinas que promovam a equidade no currículo universitário, debatendo a história da cultura negra, do povo indígena e as diferenças que constituem o país. Ela diz que apenas uma ou outra aula aborda o antirracismo e a lei 11.645, sobre o ensino da história e cultura dos indígenas brasileiros.
“O povo brasileiro precisa aprender a se ler do ponto de vista racial”, pontua. “A formação para a diversidade na universidade ainda é ‘só para inglês ver’. O processo de formação de professoras e professores deve passar por um curso de letramento racial, que envolva a comunidade escolar como um todo, para que a gente comece a se entender enquanto nação. E comece, também, a criar estratégias para não deixar o racismo, a homofobia e a transfobia prosperarem.”
Para ela, a dificuldade em implementar e acolher a diversidade na escola, na universidade e na sociedade, passa por uma construção histórica ainda enraizada. “O mundo foi criado sob uma perspectiva de que existe um sujeito universal, que pauta direitos, aquilo que pode e o que não pode ser feito: o homem branco heterossexual, cristão e de classe média. Esse é o sujeito universal. Todas as outras identidades precisam se ajustar a ele”, lamenta.
Diversidade: indo além do senso comum |
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“O senso comum costuma admitir sob o guarda-chuva da diversidade apenas grupos minorizados, tais como mulheres, negros, pessoas com deficiência, comunidade lgbtqia+, dentre outros. Porém, um jovem não pode ser definido por uma característica que traz. Assim como qualquer pessoa, têm suas histórias de vida únicas e singulares. Todo cenário humano mostra sua diversidade.” O texto acima compõe uma trilha de aprendizagem gratuita para professores e gestores, oferecida pelo Nosso Ensino Médio. Baixe já este infográfico e aprofunde seus conhecimentos |
Por mais equidade
Ex-estudante e agora professor de sociologia da Escola Estadual Romualdo José da Costa, em Ribeirão das Neves (MG), Marcos Antonio Silva concorda com Rosângela no que diz respeito às lacunas na formação acadêmica. “Sou formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, que traz no currículo algumas disciplinas sobre questão racial no Brasil, por exemplo. Mas sempre de forma muito teórica e distante do que a gente encontra no espaço escolar. Isso gera conflitos: o professor, de maneira geral, sai bem militante da universidade e chegam a um contexto no qual as pessoas enfrentam esse tipo de preconceito”, explica.
“Existe uma tendência em dizer que alguns alunos são racistas ou sexistas. É preciso criar estratégias de diálogo. Na verdade, as pessoas não são – ao menos, é um preceito da sociologia, de que as pessoas foram socializadas em ambientes machistas, sexistas, racistas e preconceituosos de forma geral. O papel da escola é criar processos educativos para essa tomada de consciência. É o lugar central para isso”, complementa.
Para compreender ainda melhor os movimentos da comunidade escolar, Marcos fez seu TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) a fim de entender a relação entre professor e aluno por meio do ensino da sociologia. “Da mesma forma que eu sentia essa lacuna na formação, de estratégias metodológicas para lidar com o debate, os professores nas entrevistas mostraram essa dificuldade. Já os alunos foram muito receptivos ao debate, mas com limites, dependendo do grau de empatia do docente. O que chamou minha atenção foi o fato de a disciplina ser considerada por ‘abrir a mente’ das pessoas para questões ligadas à diversidade.”
Marcos costuma dizer que não é professor de sociologia, mas de letramento para a cidadania, principalmente no componente curricular de projeto de vida, que permite discussões mais amplas. Para tanto, ele se apoia nas metodologias ativas, a partir da realidade dos alunos.
Agora no doutorado, o professor investiga outra dimensão da diversidade: o perfil religioso nas redes de ensino. “Muitas igrejas que os alunos frequentam têm oposição às pautas da diversidade. Algumas delas encaram a sociologia como uma espécie de adversário. É uma conclusão difícil, não quero generalizar de forma alguma, mas há essa discussão. Creio que a formação continuada para professores é fundamental, por isso é preciso entender o contexto sociocultural da sala de aula”, comenta.
Diversidade x diferença |
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“Ao contrário da diversidade, a diferença é um conceito aberto, está em constante transformação. A diferença é interior, é o que nos faz únicos no mundo. Não são os traços externos que definem que somos diferentes. Diferença é nossa capacidade de nos reinventarmos, de sermos sempre uma novidade, sem uma característica fixada.” Saiba mais sobre o tema neste infográfico do Nosso Ensino Médio. |
Por mais direitos
Ativista pela inclusão escolar e fundadora do Instituto Caue (organização sem fins lucrativos que trabalha por um Brasil anticapacitista), Mariana Rosa diz notar que algumas pautas, como o debate sobre gênero e antirracismo, estão um pouco mais avançadas do que as relacionadas à educação inclusiva. “Percebo que esse grupo é o que conseguiu menos conquistas. Está lá atrás… Hoje, 17% da população negra acessa o ensino superior. Quando pensamos em pessoas com deficiência, esse percentual cai para menos de 1%.”
⬇️ Infográfico: O impacto da pandemia e do racismo na trajetória dos jovens negros no ensino médio
Para Mariana, que também é jornalista e mestranda em educação pela USP (Universidade de São Paulo), o currículo é uma questão de poder. “O acesso ao currículo está posto pelos grupos considerados naturalmente estabelecidos. É preciso modificá-lo para que ele também possa refletir as experiências das pessoas minorizadas, dos grupos minorizados”, acredita. “A história da educação é uma história de exclusão. A garantia do acesso à escolarização é uma conquista recente do país e, portanto, precisa passar por transformações, trazer uma perspectiva decolonial, não ficar estritamente apoiada nas referências europeias.”
A dificuldade de atualizar as ementas nas universidades mostra o quanto ainda precisa ser feito para que os direitos sejam garantidos. Um exemplo atual (e inaceitável) vem de universidade privada de grande porte, com sede em um bairro nobre da capital paulista, que tem em seu currículo uma disciplina intitulada “psicologia do excepcional”. “Excepcional” foi o termo utilizado nas décadas de 1950 a 1970 para designar pessoas com deficiência intelectual.
“Uma pesquisa recente que revisa artigos e publicações no campo da educação especial, com recorte no autismo, mostrou que boa parte da produção acadêmica é feita por profissionais da saúde e não da área da educação. Isso também revela um modelo ultrapassado, o de entender o corpo com deficiência como um corpo desviante a partir do modelo médico, que tem que ser corrigido, habilitado ou reabilitado pelo campo da saúde”, comenta Mariana.
Para estudar a diversidade, no caso da educação inclusiva, Mariana reforça que a sociedade segue presa a currículos antigos. “Os cursos de especialização comumente estão organizados pela lógica médica: você encontra como ensinar para pessoas com autismo, como ensinar para pessoas com Síndrome de Down, como ensinar para pessoas com deficiência cerebral. É muito difícil encontrar um curso que aborde a pedagogia da diferença. Diferença essa que faz com que cada um de nós sejamos únicos no mundo.” Para Mariana, é preciso mudar as referências de sempre, que nos levam ao mesmo lugar: a uma educação excludente.
Mulher com deficiência desde 2019, com baixa visão, Mariana é mãe de Alice, uma menina com deficiência, em idade de escolarização. E enfrentou uma série de dificuldades para iniciar o percurso escolar da garota, que hoje está no ensino fundamental. “Foram mais de seis recusas de matrícula, com argumentos como ‘não trabalhamos com esse tipo de criança’ ou ‘por que você vai matriculá-la, sendo que ela não vai aprender?’ São embates cotidianos. Ainda esbarramos nesse tipo de discussão”, lamenta.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que todo ser humano tem direito à educação. “E a única condição para acessar a escola é ser gente”, complementa a ativista. “Pensar a diferença na sala de aula significa entender que todo mundo pode aprender, não há insucesso ou fracasso que se justifique por qualquer condição do estudante. O mundo é uma complexidade de relações, de credos, crenças, corpos, orientações sexuais. Aprendemos a partir delas, não apesar delas. Aprendemos em diálogo.”