Inovação curricular começa pela sintonia entre gestão e comunidade escolar - PORVIR
Crédito: Divulgação/Colégio Rio Branco

Diário de Inovações - Gestão

Inovação curricular começa pela sintonia entre gestão e comunidade escolar

No texto de estreia da seção "Diário de Inovações - Gestão", Esther Carvalho, diretora-geral do Colégio Rio Branco, em São Paulo, detalha o processo de remodelação de tempos, disciplinas e espaços de aprendizagem que permitiu a realização de projetos mais integrados aos interesses dos estudantes

Parceria com Isaac

por Esther Carvalho ilustração relógio 19 de julho de 2023

Ao longo de minha carreira profissional, sempre enxerguei a questão da inovação como uma atitude das pessoas de não se contentarem com o que está posto, de olharem os problemas sob a ótica das possibilidades, mais do que pelos limites, de fazer perguntas, boas perguntas, para compreender seu contexto, sua cultura organizacional e percorrer novos caminhos. 

Compartilho aqui uma experiência que entendo ser uma das mais importantes como gestora: a criação da função coordenador de projetos na escola. Até o início de 2017, eu contava com uma assessora pedagógica com foco em avaliação e aprendizagem, para pensar e apoiar definições e implementações de processos de inovação e melhoria contínua. Com sua saída, fui buscar, na sala de aula, professores destacados, comprometidos, inquietos, criativos, com potencial de inovação, para ajudar a pensar nossa realidade. Com uma pequena ampliação de carga horária, transformei o recurso de 44 horas em 48 horas, divididas em 12 horas semanais para quatro professores.

Atuando mais proximamente a mim, os coordenadores de projeto mantiveram suas atribuições de professor, mas passaram contribuir para a evolução de nossa escola sob uma nova perspectiva: a da gestão. Essa iniciativa trouxe uma nova dinâmica de atuação da equipe técnica e trouxe novas perguntas. Muito disponíveis para o trabalho colaborativo, os coordenadores propuseram caminhos que impactaram, significativamente, a realidade do Rio Branco nos anos subsequentes. 

Uma das frentes de desenvolvimento foi denominada “currículo flexível”, conduzida por dois coordenadores. Eles iniciaram sua atuação com vistas a pensar o currículo do Novo Ensino Médio que estaria por vir. Entretanto, na evolução desse olhar, viram que precisaríamos preparar os alunos para chegar nesse novo modelo. Nesse sentido, debruçaram-se a pensar sobre os anos finais do ensino fundamental. Para isso, fizeram um diagnóstico com alunos e professores de ambas as etapas, por meio de dinâmicas e questionários, procurando desenvolver uma escuta atenta sobre interesses, anseios, críticas e sugestões a respeito da experiência escolar. 

Como gestora, entendia meu papel como alguém que trazia também as inquietações, alguns alinhamentos conceituais e institucionais, assim como perguntas.

Como gestora, entendia meu papel como alguém que trazia também as inquietações, alguns alinhamentos conceituais e institucionais, assim como perguntas. Trazia-lhes, também, a minha motivação de que sim, era possível pensarmos diferente e fazer a metamorfose da nossa escola: uma instituição de mais de 70 anos com seu legado e seus desafios e que, sem perder sua identidade, precisava continuar evoluindo para dar conta das demandas de um mundo conectado, de rápidas mudanças. A questão não era se. Era como! Temos uma brincadeira até hoje: quando surge uma nova ideia frente aos desafios, costumamos chamá-la de interessantíssima, ainda que tenhamos muito trabalho para implementá-la. 

Algumas perguntas que fui trazendo: por que tudo o que é interessante está fora da sala de aula? Por que desenvolvemos propostas incríveis de contraturno e nos contentamos com um modelo de sala de aula que, sabemos, não dá mais conta das necessidades de nossos alunos? Como implementar propostas curriculares inovadoras em horário regular? Essas perguntas nortearam a decisão de que tudo o que fizéssemos deveria impactar a sala de aula, em horário regular. 

Outro questionamento que já vinha sendo feito por mim nos períodos de planejamento escolar e que continuou sendo trazido: o que o aluno fará na sua aula? Essa pergunta tinha por objetivo deslocar o olhar do professor no momento de planejar, procurando imaginar sua sala de aula sob a perspectiva do estudante, buscando incentivar maior proatividade do mesmo, rompendo com a prática da aula expositiva e incentivando diferentes metodologias. Cabe destacar que sala de aula não se restringe ao espaço físico conhecido, mas aos diferentes espaços, inclusive virtuais, em que se estabelece a intencionalidade da relação de aprendizagem. Portanto, sala de aula no sentido mais amplo.

A partir dessa iniciativa, o currículo veio se transformando com mudanças significativas que trago brevemente:

Novos componentes curriculares:

  • Cotidiano em Questão – CoQuest: como o nome sinaliza, procura investigar o cotidiano sob três perspectivas: o da Ciências Humanas, das Ciências da Natureza e da cultura maker. Desde 2018, faz parte da experiência escolar do 6o ao 8o ano do ensino fundamental. Desde sua concepção, tem uma abordagem interdisciplinar, procura trazer temas ligados à sustentabilidade, ao empreendedorismo e aos direitos humanos. A experiência do aluno com essa proposta também é diversa em termos de vivência com os professores, pois a cada ciclo do ano letivo eles exploram uma área diferente, com um professor diferente. No quarto e último ciclo do ano, denominado Síntese, o aluno explora a área que mais lhe interessou.

Para desenvolver essa proposta, foram escolhidos professores talentosos de história, geografia, biologia, física, química e tecnologia que, motivados pela proposta, se lançaram a planejar e aprimorar o novo componente.

  • Jovem em Perspectiva: procurou trazer os dilemas e inquietações da adolescência para que os alunos do 8º ano possam fazer boas escolhas frente aos desafios a que estão expostos e fazer o exercício de projeto de vida. Alguns temas abordados foram: bullying e conflitos, sexualidade, drogas, cultura da vaidade e consumo, redes sociais, dentre tantos outros. Entre as características para escolher os professores desse componente, estão: interesse pelo desenvolvimento da proposta, bom relacionamento com os alunos, criatividade para promover e mediar o diálogo de maneira consistente e técnica, segurança, disponibilidade para tratar de temas complexos e sensíveis aos adolescentes.
  • Janelas de oportunidades: desde 2018, a escola organizou-se em módulos interdisciplinares propiciando condições efetivas de professores de componentes curriculares diferentes estabelecerem conexões e novas propostas de organização do tempo didático e da metodologia de trabalho. Durante a semana, há módulos de três aulas consecutivas para três turmas da mesma série, de maneira que, por exemplo, professores de história, geografia e inglês, possam utilizar esse tempo didático de várias formas, como por exemplo, com todas as turmas juntas numa parte da aula, depois fazendo atividades em grupo, depois fazendo fechamento do trabalho, com o uso de várias metodologias. Sem aumentar o custo, apenas alterando o horário da escola, os módulos interdisciplinares passaram a compor a rotina escolar. 

Esses módulos foram ampliados, sofreram algumas alterações ao longo dos anos e, atualmente, temos no horário da escola: inglês, matemática e ciências (do 6° ao 8° ano); inglês, história e geografia (do 6° ao 9° ano); espanhol, jovem em perspectiva e arte (8° ano); espanhol, história e arte (9° ano); inglês, matemática e biologia (9° ano). 

AulaSegundaTerçaQuartaQuintaSexta
1I-M-CJOV-E-ART
2I-M-CJOV-E-ART
3I-M-CJOV-E-ART
4I-H-G
5I-H-G
Legenda: I – inglês; M – matemática; C – ciências; H – história; G – geografia; JOV – jovem em perspectiva; E – espanhol; ART – arte. 

A sala de aula ressignificada

A experiência com os novos componentes curriculares trouxe a oportunidade de professores e alunos se organizarem de novas maneiras e ocuparem diferentes espaços físicos da escola. Ainda assim, o modelo de sala de aula com alunos enfileirados era predominante e muito natural nas vivências escolares. Desde 2011, eu vinha buscando diferentes caminhos para romper com esse modelo tão cristalizado na cultura escolar. A busca por práticas que “transbordassem” a sala de aula foram alavancadas por essa construção pedagógica feita a muitas mãos. Corredores, pátios, rampas e jardins se transformaram em ambientes flexíveis de aprendizagem. Diversos ambientes, presenciais e virtuais, tornaram-se salas de aula. 

Corredores, pátios, rampas e jardins se transformaram em ambientes flexíveis de aprendizagem. Diversos ambientes, presenciais e virtuais, tornaram-se salas de aula. 

Nessa perspectiva, duas mudanças foram feitas para romper com os modelos tradicionais de sala de aula: em 2018 foram retirados os sinais sonoros que marcaram tantos anos da rotina da escola. Embora os tempos didáticos ainda sejam marcados por hora-aula, com horários de intervalos entre eles, não existe mais sinal de nenhuma natureza para marcar esses tempos. Nem mesmo música! Estávamos falando de mais de 2000 alunos e de 250 professores, sem contar as equipes! E, embora a medida tenha gerado certa preocupação à época, foi incrível como todos se adaptaram rapidamente. 

Outro detalhe importante é que, desde 2019, definimos que não haveria mais sala de aula com carteiras alinhadas, exceção feita quando fossem realizadas avaliações com provas. Interessante que surgiu a seguinte argumentação entre os professores: “Sala de aula com carteiras não alinhadas não significa que houve inovação” e minha resposta foi: “É verdade! Não significa que houve inovação. Entretanto, manter a sala de aula alinhada é certeza de que não houve inovação!” Com a decisão, veio um conjunto de ações para amparar as atividades como atividades de desenvolvimento profissional docente com diversas organizações espaciais de alunos e suas aplicações. 

Crédito: Divulgação/Colégio Rio Branco Projeto de produção de vídeos

Uma nova organização do ano letivo

As experiências vividas em 2018 trouxeram novas inquietações e novas perguntas. Uma delas surgiu da constatação de que o ano letivo dividido tal qual conhecíamos, no formato dos chamados bimestres ou trimestres, não era mais suficiente para as necessidades que surgiam. Foi aí que fiz uma nova pergunta aos coordenadores de projeto: “Quem falou que o ano letivo precisa ser dividido em partes iguais?” 

A partir daí o grupo propôs a organização do ano letivo que temos desde 2019. É o que denominamos 3+1. São três ciclos de cerca de 11/12 semanas que chamamos de Ciclos Fundamentais. E, um quarto ciclo, com duração de cinco semanas, que denominamos de Ciclo Síntese ou C4. 

Após a realização dos três ciclos fundamentais, em meados de outubro, a partir do aproveitamento desse período, obtido pela média de cada componente curricular, o aluno vai para o Ciclo Síntese podendo percorrer caminhos diferentes. Caso tenha obtido a média no componente curricular ele faz APRIMORAMENTO. Caso não tenha obtido média ele faz CONSOLIDAÇÃO. O mesmo aluno pode estar fazendo aprimoramento em alguns componentes e consolidação em outros. O foco do aprimoramento é o desenvolvimento de projetos. Nesse sentido, professores e alunos passaram a viver novas experiências no cotidiano escolar com aulas e com projetos. Toda essa dinâmica foi estabelecida em horário regular de aula. 

Crédito: Divulgação/Colégio Rio Branco Inquietações levaram a mudanças na organização de sala de aula e na divisão curricular

A partir de 2019 o Ciclo Síntese, conhecido como C4, passou a fazer parte da experiência escolar de crianças e jovens da educação infantil ao ensino médio, com as adaptações necessárias. Essa experiência nos permitiu criar o que chamo de “musculatura pedagógica” para algo inimaginável que viria a seguir: uma pandemia em 2020.Durante o período de trabalho remoto, além de sermos uma Escola Referência Google, a trajetória percorrida para construção, desconstrução e reconstrução do currículo deu aos professores e alunos melhores condições para enfrentar os diferentes modelos de ensino que tivemos que experimentar. Mesmo em isolamento social, continuamos a desenvolver os projetos do C4 utilizando uma plataforma dedicada, que permanece até hoje. 

A inovação em uma escola ocorre de forma incremental e não disruptiva e se baseia, em minha opinião, em três pilares: desenvolvimento das pessoas, infraestrutura adequada e manutenção do propósito. Trazer as pessoas que estavam em sala de aula para aprimorar a sala de aula, desenvolver a gestão por meio de grupos de trabalho, repensar a infraestrutura sem necessariamente aumentar custo, e manter e comunicar o propósito foram elementos fundamentais para chegarmos até aqui. 

Não poderia deixar de mencionar a importância do envolvimento das famílias para compreenderem a proposta, sabendo que é mais natural manter-se o conhecido, ainda que não tão bom, do que trilhar novos caminhos. Neste sentido, muitos momentos de encontros com pais foram dedicados para apresentar a proposta da escola. 

A ideia de partilhar um pouco da minha experiência nesta estreia do “Diário da Gestão Escolar” do Porvir tem o objetivo de trazer possibilidades para que cada gestor, em sua individualidade e a partir de sua realidade, possa fazer boas perguntas e se motivar para encontrar caminhos e novas perguntas. Sigamos!

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Isaac

Esther Carvalho

Diretora-Geral e ex-aluna do Colégio Rio Branco. Doutoranda em Tecnologias da Inteligência e Design Digital e mestre em Currículo e Novas Tecnologias em Educação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), especialista em Tecnologias Interativas Aplicadas à Educação, graduada em Pedagogia. Participa de programas na Universidade de Harvard, tratando do aprimoramento da qualidade em Educação e das questões de aprendizagem e ensino no mundo contemporâneo. Dentre os temas a que tem se dedicado, estão: liderança e gestão; inovação curricular; IA e Currículo; aprendizagem para o futuro; ambientes de aprendizagem para o amanhã. Destaca-se o contato com sistemas educacionais e melhores práticas de diversos países, em especial, a Finlândia.

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ensino fundamental, gestão escolar, tecnologia

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