Como a educação precisa reagir em um país diante de grandes transições - PORVIR
Crédito: Divulgação/Instituto Unibanco

Inovações em Educação

Como a educação precisa reagir em um país diante de grandes transições

Aspectos políticos e demográficos se encontram com o debate sobre gênero e raça no primeiro dia do "Seminário Educação na Era das Transições", organizado pelo Instituto Unibanco, em São Paulo

por Ana Luísa D'Maschio / Vinícius de Oliveira ilustração relógio 4 de outubro de 2023

O dicionário define a palavra transição como a passagem de um lugar, de um estado de coisas, de uma condição a outra. “Essa onda de transições — sociais, demográficas, tecnológicas, democráticas e ambientais — exige ação imediata para moldarmos o futuro no caminho de uma sociedade mais justa, próspera e sustentável. Parte fundamental desse esforço passa pela mais estrutural das políticas públicas: a educação”, escreveu Ricardo Henriques, superintendente do Instituto Unibanco, em recente coluna para o jornal O Globo.

Para entender como a educação brasileira vem se transformando em diferentes aspectos e em diversas pautas, o Instituto Unibanco abriu o debate em um grande encontro. O “Seminário Educação na Era das Transições”, realizado em São Paulo (SP) nesta quarta e quinta-feiras (4 e 5), contou com a participação de especialistas, professores, acadêmicos e um público estimado de 750 pessoas por dia.

Transição demográfica

A primeira mesa, intitulada “Transição demográfica: bônus educacional?”, foi mediada por Ana Inoue, superintendente do Itaú Educação e Trabalho. Ela relembrou que 88,8% dos jovens brasileiros estão em escolas públicas. “É nessa escola que temos de pensar. Não é só figura de linguagem dizer que a educação é estratégica para pensar o país que queremos ser.” 

A despeito da queda da população jovem no país (49,9% de jovens em 2012 para 43,3% do total dos brasileiros em 2022) e o encaminhamento para o aumento de idosos (de 11,3% para 15,1% da população no comparativo entre a mesma década), Ana ressaltou a vantagem de o Brasil ser um país jovem e contar com inteligência e criatividade em formação. 

Pesquisadora do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Ana Amélia Camarano apresentou dados do regime demográfico atual, como o aumento de famílias com filho único e a elevada expectativa de vida ao nascer e nas idades avançadas, apesar da pandemia. “A era do declínio populacional despertará a atenção dos formuladores de políticas e dos estudos acadêmicos de forma semelhante como despertou a do crescimento populacional?”, questionou Ana Amélia, alertando para outro fenômeno que pode ser potencializado pela mudança demográfica: indivíduos com mais de 50 que não estão trabalhando e nem conseguiram se aposentar. Uma de suas recomendações é a inclusão produtiva dessa população.

Ao longo dos últimos anos, o noticiário destacou a parcela de jovens que não trabalha e nem estuda. A mais recente edição do relatório Education at a Glance, de 2022, publicado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, uma organização internacional que reúne diversos países com o objetivo de promover a cooperação econômica e social), mostrou o fenômeno “nem-nem” (nem trabalha, nem estuda) afeta 36% dos jovens brasileiros entre 18 e 24 anos, algo que só não é mais grave do que na África do Sul, entre os países analisados.

No aspecto educacional, Ana Amélia ressaltou a importância do ensino em tempo integral, do ensino médio profissionalizante para a formação dos jovens, da capacitação continuada dos educadores e das creches em horário estendido, que beneficiam tanto as mães quanto as crianças. Por exemplo, em São Paulo, existem 13 creches que funcionam das 7h às 19h, permitindo que as mães trabalhem. Para a especialista, que avalia o modelo como uma política de cuidado, a garantia de acesso contribui para a erradicação da pobreza.

Titular da Academia Brasileira de Ciências na área de ciências sociais, Eduardo Rios-Neto foi presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Entre os números apresentados, falou sobre a redução no tamanho das famílias brasileiras: o número de filhos por mulher caiu de 4, em 1980, para 1,7, em 2015. As brasileiras vêm tendo filhos mais tarde e é preciso respeitar as diversas configurações familiares. “A educação é causa e consequência dessas transformações. Não há como pensar na volta do aumento dessa taxa de fecundidade; reverter isso é um pensamento terraplanista”, afirmou. 

Já Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, dedicou sua fala à importância de garantir direitos para as mulheres menos favorecidas. Reforçou que em um país de baixa mobilidade social como o Brasil, a taxa de crescimento entre os mais pobres e menos escolarizados é maior, basta que se lembre que o país tem altas taxas de gravidez na adolescência. “Isso acontece com as mulheres mais pobres. Não damos atenção aos direitos reprodutivos, não oferecemos informação também para os homens da periferia. A gravidez na adolescência impacta a evasão escolar, tanto da mãe quanto do pai. Isso gera uma armadilha brutal da pobreza”, ponderou. 

Michael sugere o repensar do sistema educacional. “A pobreza atualmente passa pelo processo de exclusão: os mais pobres não conseguem trabalhar. Antigamente, fazer o curso técnico trazia competências. Hoje, é possível que essas competências fiquem obsoletas em um prazo mais rápido. Importante repensar o processo para que os indivíduos possam se reciclar ao longo de suas vidas.”

Equidade racial

Mediada por Marlova Jovchelovitch Noleto, diretora e representante da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil, a segunda (e mais aplaudida) mesa de debates trouxe o tema Do mito da democracia racial ao antirracismo – onde estamos?”. Marlova relembrou o quanto a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira em sala de aula, ainda não é cumprida em 71% dos municípios brasileiros.

Ednéia Gonçalves, coordenadora executiva da Ação Educativa, destacou outra falha no sistema político brasileiro. Paralelamente ao desafio da superação do mito da democracia racial, existe aquele da construção da educação antirracista. “Esse mito se renova continuamente, principalmente na negação da centralidade do racismo na construção das desigualdades do Brasil. Falamos na luta pelo reconhecimento das desigualdades. Se olharmos o racismo brasileiro como grande desafio da democracia, o movimento realizado pelos grupos sociais negros e indígenas disseminam uma narrativa de luta contra opressões”, disse. 

O mito da democracia racial sempre encontrou espaço privilegiado de permanência, reforçou a pesquisadora. “Essa permanência não ocorre do nada. A gente não chega na escola e diz: ‘Vamos falar do mito’. Ela acontece no silenciamento das manifestações de racismo institucional no ambiente da escola, nos currículos, no distanciamento da rede de garantia de direitos e na dificuldade que as escolas encontram em articular aprendizagem significativa com os saberes do território. Somente quando a escola fizer essa articulação, presente nas culturas e nas diversidades, que todos vão conseguir vivenciar o direito à educação.” 

A recente pesquisa “Percepções sobre o racismo no Brasil” revelou que 38% da população negra vivenciou experiências traumáticas de racismo na escola. “Não é possível que continuemos romanceando a experiência escolar”, pontua Ednéia. Educadora popular, ela também enfatizou a importância de investir na EJA (Educação de Jovens e Adultos). “Naquele espaço [EJA], encontramos diversidade, racismo e desigualdade na história da educação brasileira. É preciso formar profissionais de educação para emergir ali o conhecimento.”

➡️A Unesco fará, entre 29 de novembro e 1 de dezembro, a terceira edição do Fórum Global Contra o Racismo. O evento acontecerá em São Paulo. 

Ex-ministra da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e do Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos, Nilma Lino Lopes, professora emérita da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), relembrou o pensamento de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, quando fala de utopia como sonho do presente para construir outro futuro. “Há grupos que não desejam um país igualitário, com relações étnico-raciais mais justas e cumprimento dos direitos”, lamenta. 

Por outro lado, práticas e políticas para combater o racismo estão mais presentes na escola, mas é preciso levar em consideração as desigualdades estruturais no país. “Nesse aspecto, não vejo uma transição e sim um momento de grande tensão. O antirracismo tensiona o mito da democracia racial, tensiona o branqueamento das nossas elites e tensiona a ideia da mestiçagem que apaga conflitos”, justificou. Para Nilma, é preciso aprender sobre as políticas e os currículos a serem desenvolvidos, “para que o antirracismo seja um dos valores mais caros da sociedade.” 

A atual secretária de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (SECADI/MEC), Zara Figueiredo, reforçou as falas de Ednéia e Nilma: o direito à aprendizagem e à trajetória de qualidade ainda não estão garantidos para a população negra.

Educação política

A mesa “Da redemocratização ao populismo reacionário: desafios de aprender a conviver” trouxe à tona debates políticos recentes. Ester Solano, especialista em pesquisas de opinião pública e coautora dos livros “The Bolsonaro Paradox” (Springer, 2022) e “The Right in the Americas” (Routledge, 2023), falou sobre a importância da reflexão. “Precisamos sair do efêmero e parar na reflexão. Estamos sempre presos à armadilha permanente do prático e não temos tempo de qualidade para a reflexão.”

Para tanto, e para que se avance democraticamente, ela recomenda uma nova forma de fazer política. “Temos que sair da política do pequeno, da burocracia, temos que lançar a política dos afetos, como dispositivo simbólico; fazer política em termos macro.”

Ao trazer o assunto para o chão da escola, Telma Vinha, professora da Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade de Campinas) trouxe dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) mostrando que o Brasil é o país no qual os problemas de convivência da escola são mais percebidos pelos professores. “Não se aprende quando se está sofrendo, quando se sente excluído, quando não se sente pertencente. A qualidade do clima não deve servir para melhorar desempenho, mas como função social da escola.”

Coordenadora do Grupo Ética, Diversidade e Democracia na Escola Pública, do Instituto de Estudos Avançados da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), e coordenadora associada do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Moral, da Unesp (Universidade Estadual Paulista)/Unicamp, Telma comentou que os registros de violência nas escolas aumentaram drasticamente depois da pandemia.

Em 22 anos no Brasil, foram 22 ataques de violência extrema nas escolas, sendo 19 deles ocorridos entre fevereiro de 2022 e setembro de 2023. “A escola foi palco de sofrimento como bullying, exclusão e humilhação para todos os autores e muitos dos gestores e docentes desses estudantes desconheciam esses fatos”, afirmou. “As propostas precisam atuar na ampliação das capacidades coletivas para lidar com tais questões, assim como as mudanças na cultura das escolas e das redes”, recomenda.

➡️Após extremismo, como a escola pode agir e dialogar com as famílias e os estudantes?

Diretor executivo do Grupo Dignidade e diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI, Toni Reis trouxe dados da pesquisa “As experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais em nossos ambientes educacionais”, realizada pelo grupo em 2016, para o cenário de violência na escola, citando o próprio exemplo quando estudante. O levantamento aponta que 73% dos entrevistados sofrem bullying e 37% já apanharam na escola por causa da orientação sexual.

“Um estudo da Unesco mostrou que 60% dos professores não sabem lidar com LGBTQI em sala de aula. Já 40% dos alunos não queriam conviver com essas pessoas e 35% dos entrevistados não gostariam que os filhos estudassem com LGBTQI. Imagine conviver com isso”, destacou. “Nascemos livres e iguais em direitos. A função da escola é fomentar o respeito e a tolerância. Queremos um PNE (Plano Nacional de Educação) que inclua a todos, sem esquecer suas especificidades.”

Educação para a tecnologia

O painel “A educação dos humanos na era da inteligência artificial” trouxe um tom crítico e, ao mesmo tempo, de novas possibilidades para a aprendizagem com a disseminação de ferramentas digitais com recursos de inteligência artificial.

Dora Kaufmann, professora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Faculdade de Ciências e Tecnologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), considera que a inteligência artificial pode ter um papel semelhante ao do carvão ou mesmo da energia elétrica, por se tratar de uma tecnologia de propósito geral e, por isso, capaz de transformar a economia e o modo de vida das pessoas.

“Mais do que saber como usá-la, é importante entender como ela muda a lógica das coisas. De uma máquina programada, estamos mudando para uma probabilística, de aprendizagem de máquina, que permeia todas as implementações. Neste último caso, a máquina se modifica à medida que mais dados são inseridos”, explicou. Para a professora, a gestão se complica, mas pode haver um bônus de eficiência ao simplificar grandes quantidades de dados.

Outra questão quando se trata de inteligência artificial é que o campo não possui uma teoria. Isso impede de prever como vai funcionar sem antes testar, acarretando riscos de segurança e de confiabilidade nas informações fornecidas ao usuário. “Nem mesmo criadores do ChatGPT sabem o que será entregue ao usuário”, exemplificou. “Os modelos (sistemas de inteligência artificial) estão sendo abertos aos usuários em beta (fase de testes), o que contraria a prática da área de tecnologia.”

Ivan Siqueira, professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e conselheiro do CNE (Conselho Nacional de Educação) considera que o país demorou para ter uma regra para regular o uso de inteligência artificial na educação, assim como já havia errado durante a fase inicial de disseminação das redes sociais. Agora, segundo ele, a relação entre tecnologia e educação tende a ficar mais complexa. “Vemos a Unesco (Nações Unidas para Educação e Cultura) lançar um documento atrás do outro dizendo que não há regulação exceto em um ou outro país e mesmo assim é insuficiente”, descreveu.

Ivan foi presidente da Câmara de Educação Básica do CNE (2018-2020) e presidente interino do CNE (Jul/Ago 2020). Ele afirmou que o Currículo de Computação que o país dispõe e que foi aprovado pelo órgão colegiado ainda não traz a ênfase necessária para a área de inteligência artificial porque a tecnologia não é pensada de uma maneira mais ampla.

“Quando se observa o que está sendo feito nos outros países, percebe que eles têm um projeto. Não temos um projeto de país. Precisamos nos perguntar para quê e para quem é importante ter inteligência artificial? Para fazer o quê? Quando? Como? Sem essas perguntas, não faz muito sentido dar continuidade ao processo, porque vão ser gastos recursos, o que implica fazer escolhas.” E escolhas, como diz Ivan, são políticas. E aqui ele retoma a necessidade de se ter um projeto de país.

Assim como Ivan, que vê a inteligência apoiando estudantes às vésperas do Enem (Exame Nacional de Ensino Médio) com explicação personalizada sobre as questões mais importantes da prova para a carreira desejada, o professor de língua portuguesa e empreendedor Luís Junqueira, também se considera entusiasta pelo uso de inteligência artificial na educação.

Autor do projeto Primeiro Livro, que já dedicamos posts aqui no Porvir, Luís avalia que a inteligência artificial pode dar escala ao que o projeto artesanal de escrita de narrativas sempre quis atingir, mas não a qualquer custo.

“Precisamos utilizar essa ferramenta como uma maneira de proporcionar protagonismo e combater a desigualdade social. Fizemos uma experiência no Espírito Santo com estudantes das escolas estaduais no terceiro ano do ensino médio, para incentivar a escrita de dissertações, por exemplo, baseadas em evidências”. Ao longo do processo, além de erros gramaticais mais comuns, também foi possível identificar padrões de oralidade e sugerir melhoria nas propostas de intervenção, critério que pode separar uma redação comum da tão sonhada vaga no ensino superior.

O “Seminário Educação na Era das Transições” continua nesta quinta-feira com debate sobre meio ambiente e considerações finais com especialistas de diferentes áreas.


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competências para o século 21, educação antirracista, educação infantil, empreendedorismo, ensino fundamental, ensino médio, socioemocionais, tecnologia

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