Propostas históricas de Paulo Freire voltam ao debate no Ministério da Educação
Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo é lançado depois de anos de escanteamento da EJA. Especialista na obra freiriana, Sonia Couto explica, em entrevista ao Porvir, as oportunidades com a retomada dos investimentos na modalidade
por Ana Luísa D'Maschio 5 de julho de 2024
“Você consegue escrever um bilhete simples?” De tempos em tempos, o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa) bate à porta dos brasileiros e faz essa pergunta. Em 2023, “não” foi a resposta de 9,3 milhões de pessoas com mais de 15 anos de idade – deste total, 8,3 milhões têm mais de 40 anos. No país de Paulo Freire (1921-1997), patrono da educação brasileira, reconhecido mundialmente pelo método de alfabetização de adultos que leva seu nome, quase 10 milhões de analfabetos ainda estão à margem da sociedade, alijados do direito à educação.
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Contudo, a EJA (Educação de Jovens e Adultos), modalidade menosprezada pelos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro, vem recobrando a força e o espaço nos debates educacionais. São dois os marcos recentes: a volta da Secadi (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão) no ano passado e, mais recentemente, no início de junho de 2024, o lançamento do Pacto Nacional pela Superação do Analfabetismo e Qualificação na Educação de Jovens e Adultos.
A iniciativa prevê estratégias para apoiar estados e municípios a ofertarem mais vagas de EJA, além de estimular o público adulto a voltar a estudar e permanecer em sala de aula por meio de ações de apoio financeiro, como o Programa Pé de Meia. Estima-se um investimento total de R$ 4 bilhões ao longo de quatro anos, o que deve gerar 3,3 milhões de novas matrículas na EJA, além da oferta da modalidade ligada à educação profissional. Estados e municípios podem aderir ao pacto nacional até o dia 31 de julho, diretamente no Simec (Sistema Integrado de Monitoramento, Execução e Controle do Ministério da Educação).
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“O pacto representa a retomada da construção e implementação de uma política nacional para a EJA. Trata-se de um conjunto de ações articuladas que fortalecem a EJA como política pública tendo o MEC (Ministério da Educação) como indutor. Representa o esforço do governo federal na eliminação do analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais e a elevação da escolaridade para essa população”, avalia Sonia Couto, coordenadora do Centro de Referência Paulo Freire, em São Paulo, que tem como missão socializar e dar continuidade ao legado do educador pernambucano.
Sonia é mestre e doutora em educação pela Universidade de São Paulo, autora do livro “Método Paulo Freire” (Editora Autores Associados) e de livros didáticos para EJA na perspectiva freiriana. Atualmente, coordena o Centro de Referência Paulo Freire, e é integrante da Cnaeja (Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos), que subsidiou o MEC na elaboração dessa nova política. Em entrevista ao Porvir, ela fala sobre os desafios e as expectativas da retomada dos investimentos na modalidade.
Porvir – Em linhas gerais, o que representa o Pacto Nacional para a valorização da EJA? Como o Cnaeja avalia essa retomada de investimentos?
Sonia Couto – Em 2012, a Cnaeja iniciou a construção de um documento, em diálogo com a equipe da Secadi da época, baseado na necessidade de discutir de maneira integrada o PBA (Programa Brasil Alfabetizado), criado em 2003, e a Educação de Jovens e Adultos. Naquele momento, a Cnaeja já tinha clareza em analisar a alfabetização no âmbito da EJA, pois alfabetizar sem promover a continuidade nos estudos seria propor um conjunto de ações desarticuladas que não propiciaria a conclusão da educação básica. O pacto retoma essa premissa e propõe uma política integrada, que permita aos educandos e às educandas exercerem o direito à educação ao longo da vida.
Porvir – O retorno do Programa Brasil Alfabetizado prevê 60 mil bolsas para educadores populares. Como será essa formação?
Sonia Couto – A formação para os 60 mil educadores populares está prevista para acontecer em quatro anos, não será simultânea. Eles serão contratados por meio de bolsas pelos municípios que aderirem ao PBA e a formação vai acontecer localmente. O MEC fará a indução, mas a formação será realizada pela governança de gestão e formação. No caso da alfabetização, serão 650 formadores que irão trabalhar regionalmente articulando esses processos. A Secadi já está formatando material para alunos do PBA, a fim de dar suporte aos educadores, e está produzindo um curso de formação que será feito pelo Avamec (Ambiente Virtual de Aprendizagem do MEC). Fora isso, os educadores populares terão formação presencial que vai acontecer localmente por meio de arranjos locais que serão feitos com essa equipe de 650 pessoas.
Porvir – Qual a importância do trabalho intersetorial que baseia essa política?
Sonia Couto – O pacto articula diferentes parceiros propondo ações intersetoriais, com a participação de diferentes ministérios: Desenvolvimento Agrário, Direitos Humanos, Saúde, Justiça, Planejamento e Orçamento. Também reúne as Secretaria Geral da Presidência e a Secretaria Nacional da Juventude, movimentos sociais, empresariado, entes federados (estados,municípios e Distrito Federal), organismos internacionais, como a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). A governança consultiva cabe à Cnaeja.
A participação da sociedade civil é igualmente fundamental no sentido de fortalecer a política de EJA e garantir a sua concretude. Isso fica claro nos objetivos do pacto, dentre eles o compromisso de superar o analfabetismo entre os jovens, adultos e idosos e elevar a escolaridade deste público por meio da ampliação da oferta de matrículas nos sistemas públicos de ensino, inclusive entre os estudantes privados de liberdade, destacando a oferta integrada à educação profissional. A concretização dessa política demanda investimento e para isso foram criados incentivos para ampliar as matrículas e garantir a conclusão na EJA.
Porvir – Quais os destaques do Pacto Nacional, em sua opinião?
Sonia Couto – Um dos pontos altos do desenho do pacto é a estrutura de governança e participação composta por uma governança executiva, a CampEja (Câmara Permanente de Alfabetização e Qualificação da Educação de Jovens e Adultos), composta por MEC, Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) e Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação). Também há uma coordenação estratégica para implementação, com coordenadores e articuladores e regionais de gestão e formação, com procuradores gerais da justiça e controladoria geral da união. Os Fóruns de EJA também estão contemplados na proposta do pacto.
Porvir – Formado por organizações e movimentos sociais, os Fóruns de EJA têm um papel histórico importante na defesa da modalidade. Como devem atuar nesta nova política? Qual tem sido a primeira impressão?
Sonia Couto – Os Fóruns da EJA estão entre os principais movimentos sociais dessa modalidade. A eles, caberá contribuir com a articulação da demanda nos territórios e também com o chamamento público, conforme previsto no artigo 5 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), que diz: “O acesso à educação básica obrigatória é direito público subjetivo, podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público, acionar o poder público para exigi-lo”. Embora o pacto tenha sido lançado recentemente, já é possível perceber que os movimentos sociais avaliam positivamente a política e esperam que as ações previstas tenham concretude e continuidade.
Porvir – A oferta da EJA integrada à educação profissional é uma pauta antiga dos movimentos sociais, e está prevista pelo pacto. Como deveria funcionar a parceria entre as redes de ensino e instituições de ensino técnico-profissionalizante para a oferta da modalidade?
Sonia Couto – O pacto propõe que a oferta de ensino técnico-profissionalizante para EJA seja obtida por meio de parcerias entre redes de ensino e instituições que ofertam EPT (Educação Profissional e Tecnológica). A proposta é que sejam feitos arranjos curriculares de modo a integrar a formação geral e a capacitação profissional. Propõe-se cursos de 160 horas de modo a promover a elevação da escolaridade e, ao mesmo tempo, a qualificação profissional inicial. Questões relativas ao mundo do trabalho estão presentes na EJA uma vez que os sujeitos dessa modalidade não são estudantes que trabalham, e sim trabalhadores que estudam. Sendo assim, integrar a EJA à educação profissional é um importante passo.
Porvir – Outra demanda sempre feita pelas entidades que defendem a EJA é um suporte financeiro para os educandos. O programa Pé-de-Meia deve ser ofertado para mais de 135 mil alunos do ensino médio na EJA. É suficiente?
Sonia Couto – Não é suficiente ainda, mas é um passo importante que pode assegurar a permanência dos educandos e educandas até a conclusão do curso. Ao criar incentivos para ampliação das matrículas e conclusão na EJA, o pacto reconhece a necessidade de articular programas e ações que já existem em outros ministérios e que podem incidir sobre a indução da demanda ou oferta de EJA. É mais uma ação articulada que demonstra o caráter integrador do pacto.
Porvir – Dez anos depois, também volta o PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) para a EJA. Quais têm sido as dificuldades dos formadores sem um material específico para a modalidade?
Sonia Couto – As dificuldades na EJA são grandes em razão de diversos fatores, muito em função de sua especificidade: diversidade do público (etária, regional, entre outras), horário de trabalho e estudo (aulas noturnas, cansaço). A ausência de material didático apresenta-se como mais uma dificuldade. Além da ausência, nos deparamos também com a qualidade dos materiais que muitas vezes não contempla as especificidades do público da EJA. Tanto a ausência de um bom material quanto a oferta de um material não adequado exigem do educador um esforço criativo muito grande. Até que seja concluído o processo de elaboração, seleção e entrega dos livros aprovados no PNLD, a Secadi está trabalhando no sentido de elaborar materiais especialmente criados para os educandos e educandas do Programa Brasil Alfabetizado, cujas aulas já terão início no segundo semestre.
Porvir – E como vai ser a construção desse PNLD? Como as entidades e movimentos, como o Instituto Paulo Freire, devem participar?
Sonia Couto – O edital do PNLD da EJA foi lançado no final do ano passado e atualizado no início deste ano. As editoras já estavam produzindo os materiais mesmo antes de sair o edital, esperando apenas sua publicação para fazer ajustes. O Instituto Paulo Freire tem participado por meio da leitura crítica de alguns materiais, a fim de observar se utilizam temas de relevância social, linguagem inclusiva, reconhecimento da diversidade presente no campo da EJA. A equipe do instituto também está atenta se esses materiais refletem valores éticos e democráticos, apresentam abordagem interdisciplinar, são redigidos com clareza e coerência e propõem atividades desafiadoras.
Porvir – O pacto também marca a retomada da Medalha Paulo Freire, homenagem extinta no governo de Jair Bolsonaro, que reconhece educadores ou instituições que se destacaram na luta pela erradicação do analfabetismo no Brasil. O que representa essa volta?
Sonia Couto – A retomada da Medalha Paulo Freire é um incentivo para que as redes de ensino desenvolvam ações no sentido de superar o analfabetismo e qualificar a EJA. É uma oportunidade de dar visibilidade às ações em desenvolvimento. Há uma grande riqueza de iniciativas e práticas emancipadoras nas escolas brasileiras que merecem destaque e servem de referência para outras redes. A medalha visa reconhecer e valorizar essas práticas que estão em consonância com os princípios do patrono da educação brasileira.