Independência ou Morte! Como o 7 de setembro pode ser visto à luz da atualidade
O Porvir ouviu o historiador Luciano Mendes, do Portal do Bicentenário, que analisa o 7 de setembro como oportunidade para discutir identidade nacional em sala de aula
por Ruam Oliveira
5 de setembro de 2025
O que uma imagem, perpetuada ao longo de séculos, significa para um país? Ao observar o quadro “Independência ou Morte!”, feito pelo artista paraibano Pedro Américo em 1888 a pedido do governo de São Paulo, é possível ver um Dom Pedro I imponente. Ele aparece no topo de uma colina, rodeado por cavaleiros de uniformes brancos, empunhando uma espada. A cena transmite à nação a ideia de que algo grandioso havia acontecido naquele momento: o Brasil se tornava independente.
Contudo, a história real é outra. Não havia colina, mas sim um terreno plano. O jovem príncipe usava uma farda simples e montava uma mula, não um bonito e alvo corcel. Dom Pedro I também enfrentava problemas gástricos.
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Para Luciano Mendes de Faria Filho, professor aposentado da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pesquisador do projeto Portal do Bicentenário (site dedicado aos 200 anos da independência do Brasil, completos em 2022), esse tipo de iconografia (conjunto de imagens, símbolos e representações visuais que ajudam a contar ou reforçar uma história) merece destaque e debate nas aulas, sobretudo porque pode disseminar uma versão única da história.
“A pintura cumpre o papel de uma invenção que, como em toda política de memória, busca criar e fixar uma tradição”, diz. Segundo o professor, ao buscar fixar determinado discurso, a obra acaba dificultando o surgimento de outras narrativas.
“Vivemos em uma sociedade fortemente marcada pelas imagens: elas funcionam como textos. Nesse contexto, é difícil escapar do poder simbólico dessa pintura, que se consolidou como a representação oficial do episódio.”
Nesta entrevista ao Porvir, Luciano avalia que esse cenário coloca os professores diante da tarefa de problematizar uma imagem tão consolidada, o que envolve discutir as “invenções da Independência”. Ao mesmo tempo, considera que isso abre espaço para uma reflexão mais profunda sobre o país, que vai além de uma data específica.

Leia a entrevista:
Porvir: De que maneira o ensino da História do Brasil nos ajuda a entender o presente?

Luciano Mendes: Acredito que uma das formas mais interessantes de envolver os estudantes no conteúdo de História é mostrar o vínculo com o mundo presente, sem cair no presentismo [quando julgamos o passado com os olhos de hoje] ou no anacronismo [quando tiramos os acontecimentos do seu tempo e contexto]. Ou seja, não se trata de projetar para o passado categorias e formas de pensar próprias do nosso tempo, mas sim evidenciar como ele [o tempo histórico] se relaciona com a nossa realidade.
Essa ideia de que apenas o presente importa e de que o passado deve ser mobilizado como instrumento para agir hoje é limitada. O passado importa em si mesmo, porque é a partir dele que nos constituímos como indivíduos, como coletividade e, em certo sentido, como nação. Não é possível expurgar o nosso passado de nós. Mesmo diante de grandes transformações e mudanças, ele continua a nos atravessar e precisa ser pensado com seriedade.
Porvir: Como os professores podem trabalhar a Independência do Brasil estabelecendo uma conexão com a contemporaneidade?
Luciano Mendes: Uma das formas mais interessantes de iniciar essa discussão com os estudantes é fazer um inventário das maneiras pelas quais, no presente, percebemos a presença desse acontecimento. Um bom ponto de partida é a própria ideia de independência. O que significa independência?
Atualmente, se essa pergunta for feita, especialmente a crianças e jovens, surgirão respostas muito diversas. Ser independente pode remeter a diferentes sentidos: autonomia pessoal, liberdade política ou ainda a Independência do Brasil. Esse exercício é importante porque, assim como hoje, também no período histórico da Independência havia muita controvérsia sobre o significado desse processo.
Porvir: Por quê?
Luciano Mendes: Não existia um entendimento único sobre o que era a Independência do Brasil, nem mesmo sobre a data que a simboliza. O 7 de setembro foi uma construção posterior, elaborada como marco oficial, e isso revela como os sentidos atribuídos ao passado são resultado de disputas e interpretações que se prolongam no tempo.
| Independência como símbolo |
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O 7 de setembro acabou ganhando força como símbolo de unidade para a nação que se formava, mas isso não aconteceu de imediato. No começo, a data escolhida para celebrar era 12 de outubro, dia da aclamação de Dom Pedro I como imperador. Mesmo depois de entrar no calendário oficial, o 7 de setembro precisou disputar espaço com outras comemorações espalhadas pelo Brasil. Na Bahia, por exemplo, o 2 de julho tem peso equivalente, já que foi nesse dia, em 1823, que os baianos expulsaram definitivamente os portugueses de suas terras. As festas baianas ainda trazem algo único: elementos populares e da cultura afro-brasileira que não aparecem no 7 de setembro. Saiba mais neste texto do Portal da USP |
Porvir: O que mais é possível fazer em sala de aula em relação ao 7 de setembro?
Luciano Mendes: Outro caminho é lidar com a iconografia que se tornou onipresente nos espaços de cultura e memória, em especial o quadro de Pedro Américo sobre a Independência do Brasil. Essa pintura é fascinante justamente porque ultrapassou os limites dos livros didáticos e dos museus: ela aparece em sites, redes sociais e praticamente em qualquer lugar em que se busque essa representação.
No entanto, trata-se de uma invenção. O quadro foi produzido anos depois do acontecimento, encomendado para expressar o que o pintor imaginou que deveria ter sido a cena. Aquela cena jamais aconteceu. Ainda assim, tornou-se a imagem dominante do que seria a Independência do Brasil.
Vivemos em uma sociedade fortemente marcada pelas imagens, nas quais elas funcionam como textos. Nesse contexto, é difícil escapar do poder simbólico dessa pintura, que se consolidou como a representação oficial do episódio. Esse é um desafio para professores e professoras, pois problematizar a Independência exige desconstruir uma imagem tão arraigada. Justamente por isso, discutir as “invenções da Independência” [modos como o acontecimento foi construído e reinterpretado ao longo do tempo] pode ser uma forma poderosa de reflexão em sala de aula.
Porvir: Poderia nos contar a história da pintura e de que maneira essa construção imagética influencia a maneira em como percebemos o Brasil?
Luciano Mendes: O quadro é uma encomenda concebida no âmbito de uma política de memória do Segundo Reinado. Esse período se caracterizou por uma forte produção imagética, algo que a historiadora Lilia Schwarcz destaca ao analisar a construção da imagem de Dom Pedro II. Quase ninguém o conhece em sua juventude; a representação consagrada é a do senhor de barba imponente, assim como ocorreu com outras figuras cuja iconografia foi inventada para estabilizar sentidos, como Tiradentes ou mesmo Jesus Cristo. São imagens construídas para cumprir funções simbólicas e políticas.
Nesse sentido, o quadro confere centralidade à Dom Pedro I em um gesto majestoso, rodeado de sujeitos representados em posição gloriosa. Do ponto de vista historiográfico, sabemos que aquela cena, com toda a pompa e circunstância, seria impossível nas condições reais em que se deu o processo. Mas a pintura cumpre o papel de uma invenção que, como em toda política de memória, busca criar e fixar uma tradição.
Assim, o quadro não é apenas a sua produção material, mas também a forma como foi disponibilizado e difundido ao longo de quase 150 anos, presente em museus, livros didáticos e, mais recentemente, na internet. Ele estabiliza um certo sentido para a independência, destacando determinados sujeitos e conferindo a eles uma centralidade que sustenta uma narrativa mítica do processo.
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Porvir: Para além do imagético, quais outras oportunidades uma efeméride como o 7 de setembro pode trazer para a sala de aula?
Luciano Mendes: É fundamental incluir uma discussão historiográfica sobre a Independência do Brasil, abordando os debates do período, os arranjos políticos estabelecidos e as diferentes propostas que estavam em disputa. Algumas alternativas não eram radicais, mas tampouco representavam a simples continuidade do que existia até então.
Questões centrais apareciam nesse contexto, como a manutenção ou não da escravização. O debate não se restringia ao comércio de pessoas escravizadas, mas à própria contradição entre proclamar a independência nacional e manter a escravização. Tornar o Brasil independente significaria preservar a escravidão ou avançar para a abolição?
Havia também uma dimensão mais pessoal ligada à formação da cidadania. No campo da educação, por exemplo, a ideia de construir uma nação independente passava pela necessidade de que seus habitantes fossem, de fato, independentes. Isso exigia o acesso à leitura, à instrução pública e ao desenvolvimento do que se chamava, na época, “tirocínio próprio”: a capacidade de raciocinar e pensar por conta própria.
Porvir: Como essa criação de imagens pode impactar no imaginário social e cultural de uma nação?
Luciano Mendes: Esse mecanismo é comum em diferentes tradições religiosas e políticas. No cristianismo, por exemplo, a figura de Jesus Cristo foi fortemente europeizada, e qualquer tentativa de representar um Cristo diferente é alvo de ataques, justamente porque deslocar a imagem significa também deslocar a história. O mesmo ocorre com o quadro de Pedro Américo: questioná-lo ou borrar sua centralidade implica abrir espaço para outras narrativas, e essa pluralidade é vista como perigosa, pois rompe com a ideia de um sentido único para a independência.
É nesse contexto que se entende como, entre 1822 e 1827, diferentes sentidos da independência estavam em disputa. O quadro contribuiu para apagar essa multiplicidade, impondo uma versão hegemônica que ainda hoje se mantém como referência dominante.
| Visite o Museu do Ipiranga, em São Paulo |
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| A pintura “Independência ou Morte!” foi criada quando o edifício-monumento do Museu do Ipiranga ainda estava em construção. Projetado para celebrar o marco da independência, o espaço viria a abrigar o Museu. A obra foi concebida para ocupar exatamente a sala onde permanece até hoje e integra o acervo desde a abertura ao público, em 1895. |
Porvir: Voltando à questão da data, o senhor mencionou que o 7 de setembro também foi uma escolha. Como se deu essa discussão?
Luciano Mendes: Durante o trabalho em torno do Portal do Bicentenário, grande mobilização realizada em 2022 por nós da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), essa discussão apareceu de forma recorrente: problematizar a ideia de que o 7 de setembro é uma data canônica, estabelecida desde o início.
Na realidade, a escolha dessa data está ligada às circunstâncias da viagem de Dom Pedro I a São Paulo e à interpretação de que naquele momento teria ocorrido a Independência do Brasil. No entanto, a estabilização desse marco se deu posteriormente, em meio a questionamentos vindos de várias províncias sobre o que, de fato, significava o 7 de setembro.
A consolidação dessa data está profundamente vinculada a uma narrativa do Sudeste, especialmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, que acabou se impondo como hegemônica. Isso é um ponto essencial para professores e professoras: compreender como determinados marcos históricos são estabilizados e transformados em referências nacionais.
Porvir: O ano de 1922 é bastante lembrado na escola pela Semana de Arte Moderna. Contudo, esse também foi o ano que marcou o Centenário da Independência. Qual era o contexto da época e por que o movimento modernista ficou mais conhecido do que as ações em memória do centenário?
Luciano Mendes: O destaque dado à Semana de Arte Moderna está ligado a um investimento, sobretudo paulista, reforçado pela concentração de editoras, jornais e meios de produção cultural. Isso fez com que a narrativa sobre o centenário fosse deslocada: fala-se muito sobre a Semana de 22, mas pouco sobre a Independência. Dessa forma, a memória do Brasil como um todo foi substituída pelo destaque a um evento regional, ainda que de grande importância, cuja relevância foi amplificada nas décadas seguintes pelas narrativas posteriores.
Trata-se de um caso emblemático de como os sentidos do passado são estabilizados. Hoje, nós nos lembramos de 1922 quase exclusivamente pela Semana de Arte Moderna, mas nos esquecemos que naquele ano houve, em todo o país, uma ampla mobilização em torno da Independência. Inclusive, a própria Semana fazia parte desse esforço de repensar o Brasil cem anos depois do processo de emancipação. Essa dimensão, no entanto, foi completamente apagada da memória coletiva.
| Acesse o Portal do Bicentenário |
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| O Portal do Bicentenário é uma iniciativa em rede que reúne universidades, grupos de pesquisa e movimentos sociais para disponibilizar conteúdos sobre os 200 anos da Independência do Brasil e seus desdobramentos. São vídeos, podcasts, planos de aula, jogos e muito mais, organizados para diferentes níveis de aprendizado. |
Porvir: De algum modo, essa perspectiva regional compromete o que entendemos como História do Brasil?
Luciano Mendes: Pensar uma História do Brasil é pensar em temporalidades, movimentos e narrativas muito diversas. Ao fim e ao cabo, uma única História do Brasil é quase impossível, pois o que existe, de fato, é a necessidade de conectar múltiplos processos. Como já afirmou [o revolucionário russo] Leon Trotsky, trata-se de um “movimento desigual e combinado”. A questão é: como articular essas diferentes narrativas?
Porvir: Qual o melhor caminho?
Luciano Mendes: É inviável reuni-las em um único livro ou síntese totalizante. Por isso, o caminho mais fecundo é pluralizar as narrativas, em vez de tentar encerrá-las em uma versão única e abrangente, que seria, por definição, impossível. No Portal do Bicentenário, buscamos justamente esse exercício: falar da Independência do Brasil e, ao mesmo tempo, incluir histórias que muitas vezes ficam invisíveis, como a dos rios.
Não se trata apenas de acrescentar detalhes, mas de reconhecer que uma história que ignora os rios, as florestas e a natureza como um todo deixa de lado elementos centrais para compreender nossa presença neste território, os constrangimentos do passado e os desafios que persistem no presente. Pensar a História do Brasil é, portanto, refletir simultaneamente em muitas direções, reconhecendo a complexidade que nos constitui.
Porvir: Quando o assunto é compreender a História, há um ditado sobre entendê-la para não repetir os mesmos erros. Qual sua visão sobre isso?
Luciano Mendes: A História não serve para aprendermos sobre o passado com a ilusão de que assim deixaremos de repetir os erros no presente. Essa ideia não se sustenta, pois continuamos a repeti-los. Além disso, a própria noção de “erro” é relativa. Aqueles que defendem as atrocidades da Ditadura, por exemplo, não consideram que tenha havido erros; pelo contrário. Basta observarmos, neste momento, o julgamento da tentativa de golpe contra a República, tentativa essa conduzida por pessoas que exaltam a Ditadura, a tortura e a violência.
Essa é uma questão central. Não podemos aceitar que, do ponto de vista dos direitos humanos e da democracia, tudo seja relativizado. O estudo da História é fundamental porque nos permite abrir perspectivas de futuros diferentes. Essas perspectivas, no entanto, dependem das leituras que fazemos do passado e da forma como o atualizamos, reinterpretando-o à luz das questões do presente.
Porvir: A História é caminho em direção à preservação da memória? Como aplicar isso à sala de aula?
Luciano Mendes: Quando pensamos em nossa ação no mundo, quanto mais conhecimento tivermos para orientar nossas perspectivas, melhor. No entanto, não é necessariamente o conhecimento que conduz nossas ações. Muitas vezes são as memórias que exercem esse papel, e por isso a discussão sobre memória é tão importante.
Novamente, exemplifico com uma outra forma de abordar a Independência, por meio de inventários de ruas ou nomes de escolas. Dom Pedro II talvez seja um dos nomes mais presentes na nomeação de instituições de ensino no Brasil. Mas quais outros nomes aparecem com frequência em nosso cotidiano? Esse exercício revela quais memórias são privilegiadas. Ao observarmos os nomes de ruas e escolas, percebemos que estamos cercados por determinadas figuras históricas.
Fazer esse inventário ajuda a compreender como somos educados a partir da memória coletiva. Muitas vezes, nossa ação no presente está mais relacionada a essas memórias, aos afetos e sensibilidades que elas despertam, do que ao conhecimento histórico em si.





