Há lugar para os homens na educação infantil? - PORVIR
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Inovações em Educação

Há lugar para os homens na educação infantil?

Segunda reportagem da série sobre educação infantil analisa a presença masculina nesta etapa de ensino

por Ruam Oliveira / Mayara Penina ilustração relógio 8 de outubro de 2025

Entre os intervalos das aulas, o professor de educação física Paulo Maia senta-se no pátio para conversar com as crianças. Dessas conversas, saem as mais diferentes pérolas. Foi pensando nelas que ele decidiu gravar alguns trechos: “se eu contasse, as pessoas não iam acreditar”. 

Perguntas como “Professor, o senhor trabalha ou só fica na escola?” provocam risadas não apenas do docente, mas também de quem o acompanha no Instagram. Seu perfil, com mais de 400 mil seguidores, atrai o público interessado em ver as interações anedóticas entre ele e as crianças.

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Na educação infantil, não é comum encontrar figuras masculinas dando aula. De acordo com o último Censo Escolar, o Brasil conta com 687 mil docentes atuando nesta etapa, sendo que 96,1% são do sexo feminino. Essa etapa também é marcada pela forte vinculação entre o ato de cuidar e o universo feminino.

Momento de decisão

Vindo de uma família de professores, Paulo percebeu a reticência de seus parentes quando comunicou que seguiria na mesma direção.. Em conversa com o Porvir, ele explicou que a reação não se deu por desgosto pela profissão, mas pelo entendimento de que é uma área bastante difícil. 

A educação infantil não era a primeira opção dele. “Sempre mirei o ensino superior, não porque considero os adultos melhores do que as crianças, mas pela qualidade de vida”. No IFCE (Instituto Federal do Ceará), onde teve uma breve passagem, o docente tinha uma carga horária de 20 horas semanais. Hoje, dedica o dobro desse tempo: 27 horas dentro da sala de aula e outras 13 envolvido em outras atividades na escola. 

Foi só quando passou em um concurso público que descobriu seu lugar na educação infantil. O professor lembra que sempre gostou de crianças, mesmo quando ele próprio ainda era uma. A aprovação no concurso lhe deu a oportunidade de escolher em qual etapa atuar, e ele não teve dúvidas: trabalharia com crianças pequenas.  

Cuidar é coisa de mulher?

Entre os motivos para a baixa presença de homens na educação infantil está a ideia preconcebida de que essa é uma etapa essencialmente do cuidado, que, por sua vez, é percebido como algo exclusivo das mulheres. 

“É do senso comum que com criança pequena quem tem mais ‘jeito’ para isso são as mulheres, como se por gerarem filhos já sejam aptas a cuidar das crianças. Faz parte do nosso contexto histórico de longa data”, aponta Cisele Ortiz, diretora do Instituto Avisa Lá, organização referência em formação continuada de educadores.

“Outra questão grave é o preconceito da sociedade e de algumas famílias que acreditam que homens cuidando e educando crianças pequenas sempre tem ‘segundas intenções’. Muitos gestores preferem não enfrentar esse preconceito e não trazer essa discussão à tona, e acabam por rejeitar a contratação de homens”, complementa.

É do senso comum que com criança pequena quem tem mais ‘jeito’ para isso são as mulheres, como se por gerarem filhos já sejam aptas a cuidar das crianças

A educadora pontua que essa falta de diversidade de gênero acaba representando uma perda para as crianças, pois ter contato com profissionais de ambos os gêneros pode auxiliar a ensinar sobre convivência e sobre o respeito a diferentes maneiras de ser e estar no mundo.

Gênero e cuidado

Pesquisadores da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), no artigo “Desconstruindo a ‘Pedagogia da Virilidade’: conversação sobre masculinidades de professores homens na educação infantil”, afirmam que historicamente houve um processo de “feminização do magistério, que colaborou para que houvesse uma espécie de imposição do distanciamento das figuras masculinas da educação infantil, ocasionando uma generificação do cuidado”.

O estudo com oito professores homens revela que suas experiências se organizam em três eixos. Primeiramente, eles enfrentam o “problema” de serem vistos como uma ameaça — a figura do “bicho-papão” —, o que os força a provar constantemente suas intenções. Ao mesmo tempo, suas práticas pedagógicas marcam uma “diferença” e se revelam uma “potência”, pois suas presenças no ambiente escolar questionam ativamente os estereótipos de gênero. Por isso, os pesquisadores concluem ser fundamental uma formação em Pedagogia que acolha as masculinidades e promova a desgenerificação do cuidado na primeira infância.

Quem é responsável pelo cuidado?

Na primeira infância, cuidado e educação são elementos que se misturam. Cisele afirma que os profissionais da área precisam focar no “binômio cuidar-educar, entendendo corpo e mente como inseparáveis e sistêmicos”. Segundo ela, cada gesto de cuidado é também um ato de educar em todos os momentos da rotina. A criança aprende a refinar o paladar com alimentos novos, a servir-se sozinha e a fazer escolhas, a usar o banheiro e a lavar as mãos. Afinal, como resume Cisele, “quem é bem cuidado aprende a cuidar de si e do outro”.

Apesar dessa complexidade, a profissão é alvo de uma desvalorização histórica. “Em boa parte do Brasil, não é só a profissão que é vista como inferior, o cuidado na sociedade é visto como inferior”, pontua Cisele. Essa percepção se reflete diretamente nas condições de trabalho e na remuneração. 

A pesquisadora Lucimar Rosa Dias, professora da UFPR (Universidade Federal do Paraná), coordenadora do grupo ErêYá e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, avalia que as profissionais da educação infantil acabam recebendo os menores salários da carreira, muitas vezes por uma estratégia das administrações públicas. “Existe a criação de cargos com nomes como ‘auxiliar’ ou ‘cuidador’ para não remunerá-las como professoras, mesmo que já tenham formação em Pedagogia”, denuncia. 

Homem lê livro vermelho para grupo de crianças sentadas no chão
Crédito:monkeybusinessimages Momento de contação de histórias em sala de aula da educação infantil

Contexto e formação

Dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) apontam que o rendimento médio de professores da pré-escola é de R$ 3.627,74. No ensino fundamental, a média sobe para R$ 4.583,81. 

Esse cenário impacta também a formação docente. Cisele Ortiz critica a preparação inicial oferecida pelas universidades: “A formação falha quando não oferece oportunidade de analisar práticas e fazer estágios de qualidade. Um professor se forma olhando só para teorias, sem saber quais práticas elas embasam”. Para ela, a qualificação real acontece no dia a dia. “Nenhuma profissão se faz só com o diploma. A formação continuada, atrelada ao contexto de trabalho, é o que mais daria sustentação à profissão”, completa.

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Além da distância entre teoria e prática, outra falha grave é a ausência de um debate racial estruturado. A pesquisadora Lucimar defende a urgência de uma educação antirracista desde a graduação. “Não é possível, num país como o nosso, formar professores que não tenham uma discussão mínima sobre a questão racial. Se formos esperar que isso seja provocado por pessoas negras que ocupam esses lugares [nas universidades], vai levar mais 500 anos”.

A formação insuficiente colide com uma realidade de trabalho que ignora as necessidades das crianças. A professora Alessandra, da rede municipal de São Paulo, afirma que a própria estrutura física e organizacional das creches não foi pensada para os menores. “A fase de 0 a 3 anos não foi pensada de fato em suas especificidades. Ainda temos um formato escolar que reproduz muito o que já era o espaço do ensino fundamental, mas estamos colocando nesses espaços bebês”, lamenta.

Literatura, música e cuidado 

Foi cantando a valorização das diferenças que o educador Allan Pevirguladez ganhou a atenção do público, em especial daquele por quem era mais interessado: as crianças. Criador da “MPBIA, a Música Popular Brasileira Infantil Antirracista”, ele contou em entrevista ao Porvir que sua presença na educação infantil nunca o levou a passar por situações constrangedoras, mas reconhece que é necessário ampliar a presença masculina nessa área.

“Eu sei que há algumas problemáticas, principalmente no que concerne ao abuso, mas precisamos trazer novos olhares e debates para mostrar que é possível. É preciso desmistificar essa ideia patriarcal que coloca na mulher a responsabilidade única e exclusiva do cuidado e da construção da infância”, disse.

Atualmente, ele acompanha somente duas turmas de educação infantil e passa o restante de seu tempo circulando por diferentes escolas na rede municipal do Rio de Janeiro, levando seu projeto de arte, música e cultura focado no antirracismo. 

Além do gênero: outros marcadores

“Eu preciso abrir um parêntese aqui, porque eu não sou apenas só uma figura masculina, eu sou uma figura negra dentro da educação infantil, o que torna ainda mais difícil o entendimento da própria sociedade, ao me ver dentro desse lugar de carinho e de sensibilidade”, ressalta Allan.

O educador comenta que já recebeu comentários nesse sentido, que questionavam “um homem negro de 1,90m lidando com crianças de três a cinco anos”. Apesar disso, ele avalia que a música funciona como um atenuante dessa primeira impressão. 

“Minha habilidade musical faz com que esse olhar de alguém que não consegue entender como uma figura tão grande, masculina, negra ofereça um trabalho de excelência, seja ressignificado”. Seu projeto já alcançou mais de 130 mil crianças em escolas do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul e foi destaque nacional em diferentes veículos de imprensa, incluindo o Porvir

Allan é otimista quando se trata do futuro. Daqui a alguns anos, ele espera que essa balança entre homens e mulheres na educação infantil esteja mais equilibrada. 

“É uma construção social, porque a sociedade enxerga a educação infantil como um espaço de menor valor, de menor importância na formação do indivíduo, quando, na verdade, é o oposto. Justamente por não ser um cargo tão valorizado ou bem remunerado, cria-se uma percepção menos significativa sobre esse período da vida, que é, na realidade, fundamental para o desenvolvimento humano”, disse.

Primeira infância na escola

Pesquisa recente da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal mostrou que, para 41% dos entrevistados, a maior fase de desenvolvimento físico, emocional e de aprendizagem ocorre na fase adulta, a partir dos 18 anos. Somente 15% dos respondentes indicaram que é na primeira infância, idade que vai dos 0 aos 6 anos, que ocorre o pico de desenvolvimento. 

A primeira infância é considerada uma “janela de oportunidades”, sendo a fase em que os seres humanos se desenvolvem mais e mais rápido. É até os 6 anos que o cérebro cria 90% de suas conexões neurais.

“Falta um olhar social mais qualificado para esse espaço e para os profissionais que nele atuam. Isso também evidencia o machismo presente, que reforça a ideia de que esse lugar, considerado menor, não seria apropriado para que os homens desenvolvessem sua carreira”, aponta Allan.

A convivência mais tranquila, com uma dinâmica que envolve menor intensidade de conflitos, também acaba reforçando essa associação com um espaço feminino, e não para profissionais homens, ele argumenta.

Da desconfiança ao reconhecimento

Eduardo Souza, 42 anos, se formou em pedagogia em 2013 e ingressou em um CEI (Centro de Educação Infantil) conveniado em 2015, onde se deparou com os desafios de ser uma figura masculina na área logo em sua primeira reunião de pais, quando a presença de responsáveis foi de 100%. 

“Acredito que por desconfiança, por não estarem habituados a ter uma figura masculina na primeira infância”, relata. O preconceito também se manifestou quando uma família retirou a filha da unidade por se sentir incomodada com um professor homem.

A sociedade enxerga a educação infantil como um espaço de menor valor, de menor importância na formação do indivíduo, quando, na verdade, é o oposto

Apesar do impacto inicial e da própria insegurança, Eduardo destaca o papel fundamental de uma “diretora firme e segura” que o apoiou no processo. Com o tempo, a desconfiança deu lugar ao reconhecimento. “No final do ano, tinha pai e mãe pedindo para que eu acompanhasse os filhos nas próximas etapas na creche”, lembra. Para ele, a presença de homens na educação infantil quebra paradigmas, mostra às crianças que elas podem ser o que quiserem e supre, para muitos alunos, a ausência da figura masculina.

Uma reflexão sobre gêneros

Os autores do estudo sobre pedagogia e virilidade ressaltam que a ligação entre cuidado e o feminino também parte de uma busca por um modelo único de masculinidade, que coloca homens e mulheres em lados opostos. “A construção de um ideal de masculinidade hegemônica acontece em um contexto de objeção a outros tipos de masculinidades que não se enquadram nos padrões impostos e, também, à feminilidade, posicionando o hegemônico em oposição ao subalterno, em uma dinâmica de relações de poder assimétricas”, escrevem.

“Nesse sentido, estudos evidenciam que quaisquer manifestações de indícios de uma sexualidade masculina não são toleradas na educação infantil. Afinal, se por um lado professores mais masculinizados são percebidos como possíveis abusadores, por outro, homens mais identificados com o feminino e que representam socialmente certa feminilidade são percebidos como uma ‘má influência’ para seus/as alunos/as”.

Dessa forma, a presença de educadores como Paulo, Allan e Eduardo não é apenas uma questão de representatividade, mas um desafio direto a esses padrões. Ao ocuparem esses espaços, eles materializam um princípio fundamental: o cuidado não tem gênero e deve ser exercido por todas as pessoas.


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educação infantil, formação inicial

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