Projeto desafia estudantes a questionar identidade no mundo digital

Diário de Inovações

Algoritmos e autoestima: projeto desafia estudantes a questionar a construção de identidade no mundo digital

Proposta integra arte e tecnologia (audiovisual, mídias digitais) para promover o protagonismo estudantil. A metodologia guia os jovens na construção da identidade digital e desenvolve as competências BNCC Computação de forma prática e crítica

por Otávio Neves ilustração relógio 10 de outubro de 2025

Em 2022, a direção da Escola Municipal George Chalmers, em Nova Lima (MG), apresentou à Secretaria Municipal de Educação um diagnóstico alarmante: mais de 100 estudantes com quadros de ansiedade, automutilação e sofrimento psíquico. Em entrevistas e investigações realizadas com os estudantes, a gestão e a equipe escolar perceberam que muitos não conseguiam nomear os seus conflitos internos. Não se reconheciam, não se escutavam e nem sabiam expressar o que sentiam.

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Esse vazio identitário estava diretamente ligado à falta de pertencimento e à ausência de ferramentas para se compreender no mundo contemporâneo, sobretudo no espaço digital. Vi, então, uma oportunidade transformadora: unir arte, escuta e inovação para ajudar os estudantes do 9º ano a refletirem sobre quem são, tanto no mundo real quanto no online. 

A arte, nesse contexto, teve um papel fundamental como ferramenta de expressão e elaboração emocional. Para os estudantes que experimentavam fragilidade e sofrimento, a arte abriu um espaço simbólico e sensível para que essas experiências pudessem ser comunicadas por meio de imagens, sons e narrativas visuais.

Desenhar, fotografar, filmar ou criar algo sobre si mesmo foi, para muitos, um modo de se reconhecer, de ressignificar vivências e de reconstruir o sentido de pertencimento. Assim, a arte funcionou como um caminho de escuta e cura, ajudando os jovens a transformar dor em criação e silêncio em expressão.

Expressão com tecnologia

A necessidade de aprofundar esta reflexão levou à inclusão de um componente tecnológico. É importante que os estudantes desenvolvam habilidades digitais, pois este desenvolvimento permite-lhes construir uma narrativa própria e crítica sobre si mesmos, os outros e o mundo.

Esta foi a base para a criação do projeto “Eu digital: tecnologias e identidade”, um desdobramento de outra proposta da aula, intitulada “Eu, o Outro e o Mundo: arte como expressão da identidade e cultura”. Nela, os estudantes criavam desenhos e pinturas sobre esses três olhares, após mergulharem em reflexões visuais sobre quem somos, como vemos o outro e como enxergamos o mundo. Ao documentarem com celulares e câmeras o processo artístico dos colegas, perceberam que suas identidades também se manifestavam nas imagens que produziam e compartilhavam.

Reflexão crítica sobre a identidade digital

Esse exercício provocou novas perguntas e fez com que os estudantes começassem a refletir sobre como a realidade de cada um estava atravessada por redes sociais, telas e algoritmos

Perguntas como: será que se reconheciam nas imagens que postavam? Como as tecnologias influenciavam o modo como se viam, se representavam e eram vistos? serviram de mote para o início de debates mais aprofundados sobre o tema. 

As principais reflexões dos estudantes giraram em torno de como a imagem digital molda a identidade e influencia a forma como se percebem e são percebidos. Muitos relataram que nas redes sociais costumam mostrar apenas o que consideram “aceitável” ou “bonito”, escondendo fragilidades e inseguranças.

Perceberam, então, que o “eu digital” nem sempre corresponde ao “eu real”. Outros destacaram como os padrões de beleza, curtidas e algoritmos afetam a autoestima e o modo de se relacionar uns com os outros. Ao mesmo tempo, compreenderam que o ambiente digital também pode ser um lugar de expressão e pertencimento, onde podem contar as suas histórias e afirmar as suas identidades de forma criativa e crítica.

A partir dessas inquietações, compreenderam que o “eu digital” também é um espaço de construção de sentido, memória e subjetividade.

Momento mão na massa e produção autoral

Com essas questões em mente, decidimos investigar mais a fundo o impacto das tecnologias digitais na construção das identidades, valorizando a produção autoral de vídeos, fotografias e montagens gráficas como formas de expressão cultural e pessoal.

Começamos, então, o projeto “Eu digital: tecnologias e identidades” com reflexões em grupo sobre o que significava ser digital no nosso tempo. As reflexões foram guiadas por perguntas que incentivaram a turma a pensar de maneira crítica a respeito do que significa ser digital nos dias de hoje, como a tecnologia e as redes sociais influenciam quem somos e como nos apresentamos, o que decidimos compartilhar na internet, entre outras.

Duas alunas são filmadas enquanto trabalham em grupo na escola
Otávio Neves

A proposta aqui era fazê-los pensar no próprio uso da internet e das redes sociais, dando aos estudantes a possibilidade de observar como expressar emoções, sentimentos e construir suas identidades. 

Essas perguntas serviram como ponto de partida para debates, produções artísticas e reflexões sobre o “eu”, o “outro” e o “mundo” digital. 

Nas discussões, os estudantes levantaram questões como: 

  • Por que buscamos curtidas e validação nas redes sociais?
  • Como os filtros e edições mudam a forma como nos vemos e mostramos aos outros? 
  • De que maneira os algoritmos influenciam o que consumimos e o que pensamos sobre nós mesmos? 
  • Até que ponto o que postamos é real ou uma construção do que gostaríamos de ser? 
  • Como o som, a música e a imagem podem expressar emoções e histórias verdadeiras?

Esse tipo de ação foi fundamental para que a turma entendesse que o que acontece no ambiente digital nem sempre é neutro. Pelo contrário, ele molda percepções, relações e até a forma como construímos nossas identidades.

O resultado

As produções revelaram diferentes formas de se ver e representar e foram organizadas em três dimensões. A “Eu digital” voltou-se para os autorretratos e representações pessoais. A “Outro digital” trouxe o olhar sobre o colega. Já a “Mundo digital” expressou a tradução da arte e da cultura em pensamento compartilhado. 

Em cada uma das três dimensões trabalhadas, utilizamos materiais simples, acessíveis e já disponíveis na escola, aliados a recursos digitais. Por exemplo, na “Eu digital”, os estudantes usaram câmeras, celulares e tablets para registrar autorretratos durante o processo de criação de seus desenhos, explorando enquadramentos, expressões e luz. 

Na dimensão “Outro digital”, os colegas fotografavam e filmavam uns aos outros enquanto desenhavam — um exercício de observação e empatia, onde o olhar do outro se tornava parte da obra. Quanto à dimensão “Mundo digital”, os alunos fotografaram os seus desenhos finalizados, simulando o efeito de um escaneamento, criando um diálogo entre arte analógica e linguagem digital. Essas imagens foram posteriormente editadas e publicadas no site-repositório do projeto, compondo um mosaico coletivo de identidades e visões de mundo.

Intenção pedagógica: o “Eu Digital” verdadeiro

Como professor, minha principal preocupação era que os alunos não se prendessem a uma ideia de autoimagem padronizada ou estética de redes sociais. Busquei garantir que o processo fosse um espaço de autoconhecimento e liberdade expressiva, e não de comparação. Trabalhamos a ideia de que o “eu digital” não precisa ser perfeito, mas verdadeiro, um reflexo sensível de quem somos, com nossas potências, dúvidas e contradições.

A partir dessas experimentações, os alunos criaram um produto audiovisual. O processo de criação da obra foi totalmente vivencial e colaborativo. Após os registros digitais e discussões sobre identidade, realizamos oficinas de interpretação para audiovisual, nas quais os estudantes exploraram expressão corporal, voz e “mecânica emocional”, compreendendo como sentimentos e intenções podem ser comunicados pela imagem. Em seguida, fizemos uma introdução prática ao manuseio técnico de equipamentos, utilizando câmeras e celulares, aprendendo sobre enquadramento, iluminação e captação de som.

Jovem fotografa cartaz colorido em ambiente escolar
Otávio Neves

Durante as gravações, a turma se dividiu em funções como direção, atuação, filmagem e registro de bastidores, exercitando o trabalho em equipe e o olhar artístico. A etapa de edição foi feita com aplicativos gratuitos como CapCut e Canva, que possibilitaram cortes, trilha sonora, inserção de legendas e montagem final do curta. Todo o processo foi conduzido pelos estudantes, com mediação pedagógica voltada para o protagonismo juvenil e a autonomia criativa. 

O resultado foi um filme que expressa as múltiplas vozes e visões dos participantes, com forte dimensão estética e afetiva. Intitulado “Eu, o Outro e o Mundo”, o curta produzido e interpretado pelos próprios estudantes foi selecionado para o 17º Festival Internacional de Cinema Escolar MacacuCine 2025.

A participação no festival não ocorreu de forma presencial no estado do Rio de Janeiro, ela se deu virtualmente, por meio das exibições também promovidas de forma on-line pela organização. Essa modalidade possibilitou que toda a comunidade escolar acompanhasse o festival e interagisse com o público.

O filme teve grande repercussão, recebendo a maioria dos votos na categoria de júri popular, o que lhes deu o 1º lugar no festival. Essa conquista representou o reconhecimento do envolvimento dos estudantes e da potência educativa do projeto, reforçando a importância do cinema escolar como meio de expressão e reflexão sobre identidade e cultura.

Repercussão e outras conquistas

O projeto “Eu digital: tecnologias e identidade” também foi selecionado para a 26ª UFMG Jovem (Feira de Educação Básica da Universidade Federal de Minas Gerais), levando os estudantes para um espaço de diálogo, reflexão e exibição de suas criações.

Os materiais produzidos incluíram fotografias dos processos artísticos e eventos da escola, produtos audiovisuais exibidos em telas interativas e tablets, além de materiais gráficos criados pelos próprios alunos. Todos os conteúdos foram reunidos e publicados no site oficial do projeto, que se tornou um repositório vivo das produções e um espaço de compartilhamento acessível à comunidade escolar.

A culminância foi marcada por uma grande exposição com exibição das produções, das fotografias dos processos criativos e do vídeo em tela interativa. O impacto foi imediato. Os estudantes se reconheceram nas obras dos colegas, os professores encontraram novas formas de trabalhar currículo e identidade e as famílias se aproximaram da escola por meio da arte e da tecnologia. 

Foi interessante ver como os estudantes chegaram a conclusões significativas sobre si mesmos e sobre o papel que ocupam no mundo digital e social.

Ao se reconhecerem nas obras dos colegas, compreenderam que suas experiências individuais não eram isoladas, mas faziam parte de uma construção coletiva de identidade. Perceberam que muito dos sentimentos, conflitos e inquietações que carregavam eram compartilhados por outros jovens, o que fortaleceu neles o senso de pertencimento e empatia.

Jovem grava vídeo com câmera em frente a painel de exposição educativa
Otávio Neves

Essa percepção os levou a valorizar a escuta e o olhar para o outro, entendendo que a produção artística e audiovisual não é apenas uma forma de expressão pessoal, mas também um espaço de diálogo e construção de sentido. Além disso, concluíram que a arte e a tecnologia podem ser caminhos potentes para transformar vivências subjetivas em narrativas coletivas, capazes de promover reflexão, conexão e transformação social.

Desafios e alinhamento curricular

Entre os desafios, destaco a ausência de equipamentos audiovisuais profissionais. Contudo, com criatividade e colaboração, transformamos tablets e celulares em ferramentas de cinema e arte. A maior conquista foi perceber o quanto os jovens se sentiram protagonistas da própria narrativa, ressignificando a sua presença no ambiente digital e físico.

O “Eu digital” demonstrou que é possível enfrentar desafios emocionais e identitários da juventude contemporânea com propostas integradas, sensíveis e tecnológicas. É um projeto que não apenas ensinou a usar a tecnologia, mas a se enxergar nela.

Além disso, a proposta se alinha diretamente à BNCC (Base Nacional Comum Curricular) no eixo da Computação, ao integrar os três pilares: 

  • Mundo digital, que incentiva o uso crítico e responsável das mídias;
  • Pensamento computacional, que estimula a resolução criativa de problemas; 
  • Cultura digital, que promove competências éticas, críticas e expressivas no uso das tecnologias.

Ao explorar temas sensíveis e vivências reais, os estudantes aprenderam a planejar, criar e compartilhar conteúdos digitais com responsabilidade, fortalecendo o vínculo entre arte, tecnologia e humanidade. Promovemos ações por meio das aulas de audiovisual, fotografia e arte digital, em que os estudantes criaram fotografias, documentaram vivências e produziram conteúdos sobre temas do mundo digital. Assim, o projeto foi replicado para toda a escola, ampliando o impacto da iniciativa e potencializando o protagonismo e a identidade dos estudantes.


Otávio Neves

Mestre em Artes Cênicas pela UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto), especialista em Ensino de Artes Visuais pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e em Linguagens, Suas Tecnologias e o Mundo do Trabalho pela UFPI (Universidade Federal do Piauí). É licenciado em Filosofia pela UFSJ Universidade Federal de São João del-Rei) e em CEUCLAR (Artes Visuais e Computação pelo Centro Universitário Claretiano). Idealizou e coordenou a primeira, segunda e terceira edição do FESTVESP (Festival de Audiovisual Estudantil de Vespasiano) e atua como professor efetivo de Arte do município de Nova Lima (MG).

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3ª edição - Prêmio Professor Porvir, competências para o século 21, ensino fundamental, Prêmio Professor Porvir, socioemocionais, tecnologia

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