Paulo Freire 100 anos: por que ele permanece atual? - PORVIR
Crédito: Márcio Novaes

Inovações em Educação

Paulo Freire 100 anos: por que ele permanece atual?

Da inspiração às novas políticas curriculares ao reconhecimento internacional, professores e especialistas em educação ouvidos pelo Porvir debatem o legado freiriano no centenário do educador

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 17 de setembro de 2021

Maria de Nazaré Rocha e Houman Harouni ainda não se conhecem, mas têm algo em comum: são professores e entusiastas da obra de Paulo Freire (1921-1997). Com base no conceito de leitura do mundo, Maria está à frente de um projeto que fez crianças conhecerem e contarem as histórias dos ativistas sociais que dão nome às ruas onde vivem, na ocupação Olga Benário, localizada entre os municípios de Ananindeua e Belém, no Pará. Já Houman, em suas aulas na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, trabalha a bibliografia e as codificações freirianas ao pedir que os alunos gravem conversas com as comunidades para as quais colaboram, a fim de ouvi-las em conjunto e refletir sobre elas.

Do Pará a Massachusetts, o legado humanista do educador pernambucano Paulo Reglus Neves Freire, que completaria 100 anos neste 19 de setembro de 2021, sobrevive ao tempo. Democrática, dialógica e popular, focada no ensino atrelado à conscientização política, sua pedagogia lhe rendeu 29 títulos de Doutor Honoris Causa concedidos por universidades na Europa e nas Américas. Além disso, ele é o terceiro pensador mais citado em trabalhos acadêmicos na área de humanidades do mundo, de acordo com o Google Scholar.

Patrono da Educação Brasileira, ganhou notoriedade nacional e internacional nos anos 1960, ao alfabetizar 300 cortadores de cana em 45 dias na cidade de Angicos (RN) a partir do conhecimento da realidade desses trabalhadores. A educação libertadora que sempre defendeu, porém, o levou ao exílio em 1964, durante a ditadura militar. Foi no Chile que escreveu “Pedagogia do Oprimido”, seu principal livro, traduzido para 20 idiomas.

Chão da escola

Pesquisador em educação e tecnologia na New York University, Fabio Campos afirma que o olhar freiriano continua tão inovador e necessário quanto na década de 1960. “Uma das maiores inovações de Freire é assumir abertamente que a educação de crianças, jovens e adultos não é, nem deve ser, neutra ou apolítica. Dito isso, eu diria que não há época melhor para se reler Paulo Freire.”

Eu diria que não há época melhor para se reler Paulo Freire

Cada vez mais presentes nas escolas, os debates sobre temas sociais como feminismo e racismo estrutural reforçam o caráter político do ensino – algo, por vezes, tachado de doutrinação por conservadores. “É como se a escola devesse apenas ensinar os ‘fatos’. Mas onde fica o tal do ensinar a pensar e debater? Freire dizia que a realidade não está aí, parada, fixa, esperando apenas ser ‘aprendida’ pelo aluno, mas que pode e deve ser recriada todos os dias. Para isso, precisamos estar profundamente acordados e a escola deve ter papel fundamental”, afirma Fabio, também cofundador do Curso Invest, programa de educação popular no Rio de Janeiro.

Dennis Oliveira, professor da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), adiciona à lista de assuntos fundamentais na sala de aula as questões indígenas e as pautas sobre educação anti-LGBTfobia. Para ele, a abordagem desses temas, fomentados pelo caráter interdisciplinar da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e da reforma do ensino médio, é uma conquista em prol de uma educação mais inclusiva.

“Quando Freire aponta a educação crítica e a ação cultural pela liberdade, está pensando justamente na construção de um espaço de formação de pessoas que questionam e constroem dialogicamente”, diz. “A experiência freiriana é importante nesse cenário como um elemento de contraponto a tentativas, algumas infelizmente bem-sucedidas, dos conservadores que insistem em manter a escola como um espaço adequado à ordem social opressora”, acrescenta Dennis.


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Saberes e práticas

Para ser transformadora, dizia Freire, a educação precisa considerar as pessoas e suas culturas, respeitar o modo de viver dos sujeitos e promover a dignidade. “Paulo Freire é atual porque sua teoria do conhecimento explicita as relações de poder presentes na educação, porque ainda persiste a desigualdade, a injustiça, a opressão. Nesse sentido, é preciso reconectar a metodologia freiriana à educação pública: não há escolas freirianas, há educadores e educadoras freirianos”, aponta a coordenadora do Centro de Referência Paulo Freire, Sonia Couto. Localizado em São Paulo (SP), o espaço abriga as bibliotecas pessoais do patrono da educação brasileira (pré e pós-exílio) e está aberto ao público com agendamento prévio. “Freire é mais do que um educador. É um filósofo, um pensador da educação. Representa um modo de ser e de pensar o mundo”, ressalta Sonia.

Paulo Freire é atual porque sua teoria do conhecimento explicita as relações de poder presentes na educação

Professor de Educação em Harvard (onde Freire foi professor visitante), Houman Harouni apresenta outros dois pontos de vista sobre o legado freiriano. “O cerne da pedagogia de Freire está em uma crença básica: se as pessoas forem confrontadas com seu próprio pensamento sobre o mundo, elas mudarão essas ideias e, talvez, o próprio mundo. Essa é uma hipótese que vale a pena perseguir, principalmente em um momento em que faltam fontes reais de poder para transformar o mundo – partidos políticos, organizações independentes, entre outros”, diz.

Oprimidos e opressores

Há, porém, na visão do pesquisador norte-americano, outra razão para que as ideias de Freire se mantenham proeminentes na educação. “Ele divide o mundo em opressores e oprimidos, maus e bons, e, como tal, dá aos educadores a sensação de que, se eles apenas tentarem se juntar aos ‘oprimidos’, ficarão do lado certo da história e serão limpos de sua cumplicidade com os sistemas opressores. Essas simplificações têm sido extremamente atraentes para muitos. Em parte, é por isso que tantos estudiosos da educação aqui nos Estados Unidos falam do vocabulário idealista de Freire sem testar suas ideias pedagógicas mais rigorosas”, pondera Houman.

Dennis Oliveira relembra um trecho da “Pedagogia do Oprimido” para complementar o raciocínio do pesquisador de Harvard: ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão. “O que Freire propõe é uma mudança na tipologia de relações como forma de garantir a libertação, e não apenas uma troca de lugares onde o oprimido vira o opressor e vice-versa”, explica o professor da USP e autor do livro “Jornalismo e Emancipação: Uma Prática Jornalística Baseada em Paulo Freire”.

Freire e a tecnologia 

Outro aspecto bastante presente no legado freiriano é o olhar favorável à tecnologia. Secretário de educação do município de São Paulo à época do governo de Luiza Erundina, Paulo Freire foi pioneiro ao implantar salas de informática nas escolas públicas, ainda no fim dos anos 1980. Fabio Campos relembra que Freire, visionário, tratava a tecnologia e os meios de comunicação de massa como potenciais amplificadores de um projeto de educação progressista e transformadora.

“De fato, pensamento freiriano e tecnologia educacional podem, e devem, andar de mãos dadas”, diz Fabio. “Freire tratava de questões ainda bastante atuais como que tipo de mídia ou tecnologia educadores devem utilizar, como estimular a criticidade e manter espaço para a voz do aluno com tamanha massa de informações e até mesmo se histórias em quadrinhos ou desenhos animados deveriam ser permitidos ou proibidos na escola.”

Freire tratava de questões ainda bastante atuais como que tipo de mídia ou tecnologia educadores devem utilizar, como estimular a criticidade e manter espaço para a voz do aluno

Há modelos concretos de práticas freirianas facilitadas pela tecnologia, entre elas o trabalho do professor brasileiro Paulo Blikstein, da Universidade de Columbia (EUA), que aplica a pedagogia de Paulo Freire à educação maker. “Assim, alunos e educadores são capazes de criar artefatos físicos ou digitais enquanto exercitam suas identidades e refletem sobre o mundo de hoje”, ressalta Fabio.

Educar para transformar

Essa reflexão por meios impressos e digitais também foi proposta pela professora paraense Maria de Nazaré Rocha aos seus alunos da EMEIF (Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental) Olga Benário, localizada no bairro de Águas Lindas, em Belém (PA).

Em tempos de pandemia, os estudantes do 2º ao 5º ano trabalharam as biografias de Luiz Carlos Prestes, Rosa Luxemburgo e Tarsila do Amaral, entre outros nomes de ruas situadas no entorno da escola, por meio de pequenos vídeos enviados à professora pelos pais, via WhatsApp. Fotos e desenhos eram igualmente bem-vindos – até porque nem todos tinham fácil acesso à internet.

Freire nos ensinou que a leitura do mundo precede a leitura da palavra

“Freire nos ensinou que a leitura do mundo precede a leitura da palavra. Aqui é uma área de ocupação, de luta por melhores condições de vida. O objetivo, em momento algum, foi criticar as condições do território e, sim, contar essas histórias. O apoio das famílias foi fundamental nessa construção”, ressalta Maria. Todos os vídeos recebidos pela professora culminaram em um documentário de 23 minutos, intitulado “Minha rua conta uma história”.

“Nesta atividade, trabalhamos a oralidade, a leitura e a escrita. É muito bom ver as crianças narrando sobre suas ruas. É despertado o senso de pertencimento. Elas construíram esses materiais com muita vontade”, orgulha-se a professora.

Ler o mundo com seus alunos despertou o interesse da comunidade. “Moça, se eu te contar a quantidade de pais e responsáveis que têm procurado a escola pedindo para participar do trabalho, você não vai acreditar. É uma alegria”, comemora. “Paulo Freire nos deixou uma grande herança, nos mostrando o diálogo, a valorização da liberdade, o respeito ao outro. Ele nos ensinou o diálogo com o brilho no olhar que só a alfabetização oferece. Não falo por mim, mas falo por nós, porque só podemos falar de Paulo Freire de maneira coletiva.”

A práxis freiriana, aliás, inspira o projeto político-pedagógico das 203 unidades educativas da rede municipal de Belém, que conta com 72 mil estudantes. A mais recente iniciativa da pasta é a campanha de alfabetização de 11 mil pessoas que fazem parte do CadÚnico (Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal) e não sabem ler nem escrever.

“Belém Cidade Alfabetizada e Educadora é um projeto prioritário. Sabemos que o método Paulo Freire busca não só decodificar, não só ler, mas aprender na prática, ler a vida, ler aquilo que faz a diferença para transformar a vida das pessoas. Isso é muito importante para a transformação social da qual o Brasil precisa”, afirma a secretária municipal de Educação da capital paraense, Márcia Bittencourt.


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base nacional comum curricular, educação de jovens e adultos, paulo freire, tecnologia

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