O Futuro se Equilibra #011 - Direito à educação e à cidade - PORVIR
Jéssica Figueiró / Porvir

Podcast O Futuro se Equilibra

O Futuro se Equilibra #011 – Direito à educação e à cidade

Neste episódio conversamos com a diretora da ONG Redes da Maré, Eliana Silva, para entender como a cidade se relaciona com a educação.

por Redação ilustração relógio 30 de março de 2022

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Podcast O Futuro se Equilibra

Ir à escola pode significar correr alguns riscos. A depender de como esteja a situação de segurança do seu bairro ou de sua cidade, o caminho até a escola pode ser perigoso. É sobre o direito à cidade que o Futuro se Equilibra vai tratar neste episódio. Com a participação da diretora da ONG Redes da Maré, Eliana Silva, vamos refletir como a negação a direitos como segurança pública e a transitar por diferentes espaços da cidade impactam na vida e trajetória de estudantes.

A Camille Soares Figueiredo, moradora da Maré, compartilhou conosco sua história de vida e como foi para ela crescer e estudar em um dos maiores complexos de favelas do Brasil.

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Apresentação: Tatiana Klix
Produção: Gabriela Cunha e Larissa Werneck
Edição: Gabriel Reis
Roteiro: Ruam Oliveira e Tatiana Klix
Concepção: Ruam Oliveira, Tatiana Klix e Vinícius de Oliveira
Apoio estratégico: Vinícius de Oliveira e José Jacinto Amaral
Música: Unicorn Heads, Asher Fulero, Babylon, Dan Henig, Septahelix, Darkroom, Apoxode e Airtone.

 

Links Úteis

Pesquisa mostra que violência afetou a saúde mental de 31% dos moradores da Favela da Maré – Projeto Colabora

O que é direito à Cidade? – Instituto Polis

 

identidade visual de o futuro se equilibra - o podcast

[início do episódio]

[Tatiana Klix]
As coisas estão interligadas.

Talvez você já tenha ouvido aquela história do efeito borboleta, de que o bater de asas do inseto pode provocar um tornado em algum lugar do mundo. Também deve conhecer a Teoria do Caos, que diz que um pequeno detalhe pode provocar grandes resultados ou estragos. Essas são teorias da ciência, papo de física. Mas também servem, em parte, para o que vamos falar neste podcast.

Por ora, eu peço apenas que guarde com você que as coisas estão interligadas.

[música de fundo]

[Eliana Silva] 

O fato de não existir nas regiões de favelas e periferias, o direito à segurança pública estabelecido dentro desse escopo do Direito Humano faz com que outros direitos não se estabeleçam. O direito à educação, direito à saúde, que muitas vezes passa pela questão de existirem esses equipamentos nas regiões de favelas e periferias, eu vou estar aqui me referenciando no Rio de Janeiro, na minha experiência de favela, da experiência de ter inclusive crescido numa favela, de ser uma pessoa que tem toda uma inserção no trabalho das ajudas comunitários na Nova Holanda, que é uma das que faz parte do conjunto de favelas da maré que são dezesseis favelas.

Então, com toda essa trajetória, toda essa referência eu posso dizer que o lugar onde você mora na cidade, lugar onde você transita na cidade, a mobilidade que você tem na cidade e o lugar onde você vive interfere, sim, o fato de não ter políticas públicas estabelecidas. E eu trago uma política pública que é a falta do direito à segurança pública, a falta desse direito pode, sim, influenciar no seu processo educacional, na sua trajetória e com isso, na sua trajetória educacional e com isso se materializar numa falta concreta de efetivação do seu direito à educação.

[Tatiana Klix]

A educadora e diretora da ONG do Rio de Janeiro Redes da Maré, Eliana Silva, que você acabou de ouvir, repetiu diversas vezes ao longo de nossa conversa: As coisas estão interligadas. E não foi difícil concordar com ela, enquanto insistia o quanto o acesso a direitos básicos como saúde e segurança influenciam diretamente o direito à educação, e o quanto esses direitos todos se relacionam com o direito à cidade, tema deste episódio de O Futuro se Equilibra.

Eu sou Tatiana Klix, diretora do Porvir.

[música de fundo]

[Tatiana Klix]

Marcos Vinícius da Silva estaria na casa dos 18 anos em 2022. Sorridente, ele vivia no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, quando aos 14 anos foi atingido por uma bala durante uma ação policial. ‘Ele não viu que eu estava com roupa da escola, mãe?’, perguntou o menino após ser baleado. Outras seis pessoas também morreram nesta operação.

Em 2021, Kaio Guilherme da Silva Baraúna morreu aos 8 anos de idade. Ele foi baleado enquanto participava de uma confraternização na escola que frequentava em Vila Aliança, zona oeste do Rio de Janeiro.

Fatalidades como essas acontecem frequentemente, infelizmente. Mas nem sempre é necessário uma tragédia para comprovar que quando o direito à segurança pública é negado, todos os outros direitos são influenciados. Inclusive o de ir, estar e voltar da escola. É o bater das asas de uma borboleta.

Na história que você vai ouvir a seguir, a Camille conta um pouco de sua vivência na Maré e como era, para ela, estudar ali.

[RELATO]

[música de fundo]
A gente enfrenta, sim, muitas dificuldades para estudar. Acho que não só para estudar, como também para fazer muitas coisas como trabalhar ou procurar algo para o lazer.

Eu, Camille Soares Figueiredo, que tenho 18 anos, gostaria sim de pegar uma praia de vez em quando, ir ao cinema, essas coisas… Mas o transporte é bem demorado por aqui.

Eu cresci na Maré, moro na comunidade de Nova Holanda. Para ir nesses lugares que eu comentei, a gente usa transportes alternativos como vans. Dá para pegar dois ônibus também. Mas aí, a conta já aumenta, né? Então não dá para ir sempre.

Por aqui a gente se diverte e consegue praticar alguns esportes, claro. A Vila Olímpica fica mais perto e dá para usar as quadras. Eu fiz natação lá. E balé também.

E tem também a Redes da Maré, que é uma ONG. Eu vou sempre à biblioteca de lá. Na Redes tem a Lona Cultural e o teatro onde a gente pode fazer aulas.

E por falar em aulas, aí está uma coisa! Eu me formei no ensino médio em 2021. Foi meio estranho, tinha toda essa coisa de pandemia pelo meio e tal.

[pausa]

Eu fiz ensino médio técnico, que era integral, e a ideia era aprender empreendedorismo. Esse era o meu curso, mas não tive professor, o que aliás é um problema que sempre me acompanhou, viu?

Meu ensino fundamental foi no bairro Bonsucesso, perto da passarela 10 e fora da Maré. O ensino médio é dentro. Os professores que são da Maré, comparecem. Mas aqueles que não são, nem sempre querem vir. Têm medo de vir.  E como não querem, a gente perde muita aula. Eu tive uma professora de português que também dava aulas de literatura, por exemplo, porque não tinha gente de fora que quisesse vir.

Eu não tive um ensino médio de todo ruim, mas acho que ele poderia ter sido melhor se a escola fosse um pouquinho mais organizada. Quando não faltava professor, faltava água, faltava luz…

E o medo de muitos professores virem para cá é por conta dos conflitos internos. Aqui quando acontece algum conflito, a gente sabe que tem que ir pra casa e a escola precisa garantir a nossa segurança na volta. É difícil.

[música de fundo]

A gente acaba perdendo muito mais aula do que em outros lugares por conta desses conflitos. Se estamos em aula e acontece algo, precisamos ir embora. Se estamos em casa e está acontecendo algum conflito, não podemos ir à escola. Não dá para se expor ao risco.

A escola nem abre quando isso acontece.

Apesar disso, os professores que tive sempre foram muito compreensíveis. Se tinha prova marcada e rolava um conflito, eles remarcavam. Esse tipo de imprevisto era sempre contornado.

[música de fundo]

Mesmo com todos esses desafios, eu ainda quero entrar em uma faculdade. Estou esperando sair o resultado. Como tive aulas de robótica no ensino médio, acho que meu caminho é na tecnologia.

Fui ver engenharia de software, mas eu precisaria mudar de estado – e ter um emprego pra me manter também. Aqui perto tem a UFRJ, que é uma opção. Mas se eu não passar, vou continuar tentando. O importante é não desistir.

Enquanto isso eu vou me preparando como posso, melhorando meu currículo…

E buscando, vez ou outra, conhecer a minha cidade. Existem museus e parques arqueológicos que eu gostaria de visitar, nem sempre dá porque a passagem é cara, mas é uma coisa que eu quero fazer.

[música de fundo]

[Tatiana Klix]

Quando a gente pensa em direito a cidade, não dá para deixar de observar como existem desigualdades e como determinados territórios não dispõem de condições mínimas de segurança, equipamentos culturais, estrutura para permitir a mobilidade etc.

[Eliana Silva] 

A gente reconhece nesse trabalho que eu faço a partir da redes da maré, eu fui entendendo, como moradora, de uma favela, uma pessoa que cresceu numa favela. Fui entendendo que o direito à segurança pública é um direito que não está, não existe de forma equânime na cidade, para todos os bairros da cidade. Existe uma região da cidade que esse direito não se estabeleceu. Isso é um fato. E o outro fato é que a não existência desse direito vai influenciar na perspectiva de você ver outros direitos estabelecidos, dentre eles a educação.

Então eu diria que, numa perspectiva de acesso a direitos, a não existência de um vai influenciar em outros. E, no caso específico da educação, no fato, no caso específico da escolarização, da não existência desse direito compromete sensivelmente o acesso das crianças à escola, a permanência delas na escola e compromete o nível de violência que estabelece pela inexistência desse direito, acaba fazendo com que muitos tenham problemas de aprendizagem.

[música de fundo]

[Tatiana Klix]

A depender de onde se vive, fica mais fácil ou mais difícil conseguir estudar. A Eliana também reforça que existe, ainda, uma visão por vezes preconceituosa sobre as favelas e isso, também, dificulta que as pessoas transitem com mais liberdade pela cidade.

[Eliana Silva]

Quando a gente pensa na ideia de direito a cidade, a gente pensa na ideia de que todos os recursos que a cidade dispõe, uma cidade dispõe, qualquer pessoa de qualquer região da cidade, deveria acessar, a deveria ter mobilidade para acessar isso. Mas, na realidade, isso não é o que acontece. Então, quando a gente pensa na cidade do Rio de Janeiro e a gente pensa, mas mais de mil favelas que existem, a gente vê claramente que uma parte da cidade usufrui dos recursos, dos serviços e das políticas públicas estabelecidas que deveria estar na cidade inteira.

Então, isso é uma questão séria que faz com que a impossibilidade de você acessar esses recursos, traz como consequências justamente a falta, muitas vezes, de entendimento de que esses recursos existem para que qualquer pessoa da cidade acesse.

Então, isso é um aspecto. Como é que a cidade, ela é pensada para todos que moram na cidade. E o que a gente percebe no Brasil é que a gente, a gente tem sempre áreas que são mais privilegiadas que outras. E isso tem a ver com a questão econômica, a ver com o poder político, a ver  com questões de como as forças e poder está estabelecido.

A gente pode olhar para o Brasil, vê que isso é uma questão, o que é comum na maioria das cidades.

[música de fundo]

[Eliana Silva] 

Quando a gente está falando de favela da periferia e a gente está falando de acesso à cidade, a impossibilidade muitas vezes das pessoas que moram em favelas e periferias utilizarem o ou, enfim, se sentirem à vontade na cidade para estar em qualquer lugar. Tem a ver com essa questão de como essas pessoas são representadas dentro da lógica que está estabelecida. O que estou querendo dizer com isso? Que estou querendo dizer que muitas vezes morador de favela, ele não se sente à vontade para circular na cidade e acessar qualquer recurso que essa cidade possa oferecer.

Está falando, por exemplo, de uma escola melhor que ele possa querer estudar. A gente está falando de equipamentos culturais que existem na cidade, que muitas vezes as pessoas nem sabem da existência desses equipamentos. No caso da cidade do Rio de Janeiro, em uma região que é a zona sul, onde você tem estabelecido, a maioria dos equipamentos de cultura estão estabelecidos nessa região e que as pessoas das favelas e periferias não se sentem à vontade para circular. A praia, que é uma coisa, é muito característico do Rio, do que o Rio é, a gente vê muitos episódios, inclusive de preconceito, racismo em relação a quem frequenta. Assim, quando a gente tem uma frequência, uma presença de pessoas de periferia, de favela, a gente já viu inclusive movimentos aqui no Rio para que determinados ônibus não chegassem de determinadas regiões, não fossem determinadas regiões na praia. Então as coisas, elas estão interligadas.

[Tatiana Klix]

As coisas estão interligadas

[Eliana Silva] 

Então, o acesso à cidade, o uso da cidade, a ocupação da cidade tem muito a ver com as como as políticas públicas são implementadas historicamente nessa cidade e isso vai fazer com que uma escola pública, dentro da favela, ela tem uma qualidade diferenciada de uma escola pública na região da zona sul.

As duas são escolas públicas. Você pode ter o mesmo professor que têm um comportamento dentro de uma escola pública na zona sul, que dentro da favela, pela por toda a representação que a favela, muitas vezes, porque só vai ter outro comportamento.

Então, as coisas estão interligadas.

[música de fundo]

[Tatiana Klix]

A própria Eliana têm uma experiência pessoal sobre esse desfrutar a cidade. Moradora da favela da Maré, ela conta que, por vezes, sentiu certo desconforto após visitar outras regiões da cidade, principalmente a zona sul do Rio.

Para ela isso acontece com qualquer jovem de periferia. É o fato de não se reconhecer em outros espaços e isso causar um estranhamento muito grande.

[Tatiana Klix]
[música de fundo]

O direito à cidade é um conceito cunhado pelo francês Henri Lefebvre, em 1968. Em linhas gerais é o direito à não exclusão da sociedade urbana das qualidades e benefícios da vida urbana. Ou seja, se trata de viver a cidade em toda a sua potencialidade. Todo mundo. Independentemente de onde esteja morando, se na Maré ou no Leblon.

Mas, nem sempre a garantia a esse direito acontece. E não acontece por diferentes motivos: saúde, segurança, educação, cultura…

[Tatiana Klix]

A negação dos direitos mexe com a saúde mental. Não ter direito à segurança pública afeta a saúde mental.

Uma pesquisa feita em 2021 pela organização britânica People’s Palace Projects e pela Redes da Maré apontou que 71% dos entrevistados têm medo de que alguém próximo seja atingido por uma arma de fogo. 31% disseram sentir que a saúde mental foi afetada pela violência.

A Camille, personagem de nossa história, disse que às vezes o pensamento é rápido: entre ir à escola ou morrer, ela prefere viver.

[música de fundo]

[Tatiana Klix]

E como tudo está interligado, as políticas públicas de outras áreas também afetam o que acontece na educação.

[Eliana Silva] 

[música de fundo]

Eu entendo que tem uma política pública que não se estabeleceu que a política pública no campo da segurança tem que olhar melhor para as violências, instrutora, essa desigualdade que a gente vive olhar para isso não é uma coisa pequena.

A efetivação do direito à educação só acontece em relação com outras políticas públicas. A gente avançou muito a partida com a instituição de oitenta e oito. Essa ideia de que as políticas sociais básicas, elas são de responsabilidade do município, ou seja, da cidade, então as políticas, têm que ser articuladas ali, na comunidade, próxima das pessoas, a vida das pessoas, a gente criou, estabeleceu normas, leis. Tem o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, para garantir o direito à educação, para garantir o direito à proteção social das crianças. A gente avançou em determinados processos ligados ao acesso à educação. Então, a gente tem hoje noventa e sete por cento das crianças brasileiras no ensino fundamental.

Mas eu entendo que esses avanços, eles não foram acompanhados de uma perspectiva de uma perspectiva republicana de manter esses direitos naquilo, que precisa ser mais discutido diretamente. Isso é uma questão e também falta uma ideia assim de envolvimento da sociedade na melhoria da qualidade dessas políticas públicas que foram conquistadas, e comprometimento dos desafios que a gente tem como país. No momento em que essas políticas elas são questionadas.

Então, questionadas, elas são deixadas de lado. Elas são desprestigiadas, enfim. Então entendo que a gente precisa olhar para essa parcela da sociedade que não acessa as políticas públicas como deveria ser nesse campo do Direito, deveria olhar para isso com mais cuidado e pensar nessa ideia de que a gente vai poder acessar cidades, vai poder acessar a escola, Vai poder acessar a clínica da família, o posto de saúde. A gente vai poder acessar equipamento de cultura, viver numa cidade mais limpa. Quando a gente reconhecer que alguns direitos ainda não estão estabelecidos e que voltar por eles e dentro disso, acho que não tenho muito foco e tem a ver com a minha trajetória.

A minha experiência, no caso da Maré, que são dezesseis favelas, cento e quarenta mil pessoas tem cinquenta escolas de ensino fundamental, e a gente, por exemplo, tem ano que a escola fecha trinta dias por ano por conta de confrontos armados entre grupos civis armados, que estabelecem esses confrontos internamente e a partir da atuação da polícia quando faz operações policiais. Então, isso não é uma coisa menor, no caso do Rio de Janeiro, a gente precisa olhar que a gente só vai efetivada terminar os direitos quando a gente olhar para esse direito que está negligenciado, que é o direito à segurança pública.

[música de fundo]

[Tatiana Klix]

O Futuro se Equilibra é uma produção do Porvir com o apoio do Instituto Unibanco.

Obrigada Eliana Silva por esta conversa.

O roteiro deste episódio é meu e do Ruam Oliveira.

A produção é de Larissa Werneck e Gabriela Cunha e a edição de som é do Gabriel Reis, da Podmix.

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Eu sou a Tatiana Klix, diretora do Porvir.
Obrigada pela escuta!


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ensino fundamental, ensino médio, equidade, podcasts

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