‘A leitura de quadrinhos leva sempre a outros tipos de leitura’
Em entrevista ao Porvir, o coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da USP, Waldomiro Vergueiro, fala sobre a relação entre tirinhas e educação no Brasil
por Ana Luísa D'Maschio 30 de janeiro de 2022
Trinta de janeiro é o Dia Nacional dos Quadrinhos. Desde 1984, a data celebra as primeiras tirinhas publicadas no país: intituladas “As Aventuras de Nhô-Quim ou Impressões de uma Viagem à Corte” e assinadas pelo italiano radicado no Brasil Angelo Agostini, foram divulgadas na revista “A Vida Fluminense” em 1869 e contavam (ainda sem os balões como conhecemos hoje) a saga de um caipira que se muda para o Rio de Janeiro.
Ferramentas de apoio educacional, oficialmente reconhecidas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 1996, as histórias em quadrinhos estão presentes em sala de aula bem antes disso (saiba mais nesta matéria). E é sobre a relação entre HQs e educação essa entrevista do Porvir com Waldomiro Vergueiro, um dos principais pesquisadores do assunto no Brasil. Fundador e coordenador do Observatório de Histórias em Quadrinhos da USP (Universidade de São Paulo), Waldomiro é organizador dos livros “Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula” e “Quadrinhos Na Educação: Da Rejeição à Prática” (ambos pela Editora Contexto), entre outros títulos, além de orientador de teses e dissertações sobre o tema.
“Felizmente, eu tenho presenciado cada vez mais professores se aproximando dos quadrinhos com olhos mais críticos, buscando compreendê-los, conhecê-los mais a fundo, entender seu potencial como linguagem e como meio de comunicação e assim conseguindo obter muito mais deles em suas aulas”, ressalta Waldomiro, que também é professor da Escola de Comunicações e Artes da universidade. “A leitura de histórias em quadrinhos leva sempre a outros tipos de leitura. Muitas vezes, à leitura de livros, mas não apenas a eles, também à leitura de outras formas de manifestação artística, como filmes, teatro, jornais, revistas informativas, produtos televisivos, música, etc.” Confira a entrevista:
Porvir: Quando temos as primeiras experiências com publicações em quadrinhos em sala de aula no país?
Waldomiro Vergueiro: Antes mesmo da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, já tínhamos professores que utilizavam quadrinhos em sala de aula no Brasil. Eram profissionais visionários que apreciavam quadrinhos e viam o benefício que podiam trazer ao ensino. Enfrentaram dificuldades e rejeições, vendo-se muitas vezes envolvidos em conflitos com colegas, direção da escola ou pais de alunos que não compreendiam seus objetivos. Também nessa época, algumas editoras publicaram livros didáticos nos quais inseriam páginas de quadrinhos feitas por grandes quadrinistas do país, como Rodolfo Zalla (1931-2016) e Eugenio Colonnese (1929-2008) [argentino e italiano radicados no Brasil, respectivamente] .
Porvir: Como o senhor analisa a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) quando ela reconhece a linguagem dos quadrinhos atrelada ao ensino?
Waldomiro: Eu avalio positivamente. Todo reconhecimento que a linguagem dos quadrinhos obtém formalmente dos órgãos responsáveis pela educação no país é bom, pois ajuda a derrubar barreiras. Quando uma legislação da área reconhece que não existem motivos para excluir a linguagem dos quadrinhos do ensino formal, os professores passam a ter autonomia para incluí-la em sua prática didática, em momentos que acharem apropriados.
Porvir: Praticamente todas as disciplinas podem ser trabalhadas pelas histórias em quadrinhos. Como vê essa ferramenta de apoio aos professores?
Waldomiro: Eu continuo acreditando nisso. Não quer dizer que as histórias em quadrinhos podem ser trabalhadas por todas as disciplinas em todos os casos e ocasiões. Existem momentos em que talvez as histórias em quadrinhos não sejam a melhor solução, o professor deve buscar ajuda em outras mídias, como o cinema e a televisão, por exemplo, ou manifestações artísticas, como o teatro ou a música. Tudo vai depender do ambiente e da situação específica. Além disso, é importante que o professor tenha familiaridade com as histórias em quadrinhos e as formas de aplicá-la em sala de aula. Há um aprendizado, uma familiarização com o meio que não pode ser desprezado e é essencial para sua aplicação. Felizmente, eu tenho presenciado cada vez mais professores se aproximando dos quadrinhos com olhos mais críticos, buscando compreendê-los, conhecê-los mais a fundo, entender seu potencial como linguagem e como meio de comunicação e assim conseguindo obter muito mais deles em suas aulas.
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Porvir: O senhor tem alguns livros e já orientou muitas teses ligadas ao potencial dos quadrinhos na formação de leitores. A que ponto um quadrinho pode apoiar o gosto pela leitura?
Waldomiro: A leitura de histórias em quadrinhos leva sempre a outros tipos de leitura. Muitas vezes, à leitura de livros, mas não apenas a eles, também à leitura de outras formas de manifestação artística, como filmes, teatro, jornais, revistas informativas, produtos televisivos, música, etc. Em minha carreira, encontrei centenas de pessoas que me afirmaram ter aprendido a ler com as histórias em quadrinhos, que disseram ter se encantado com a leitura literária a partir dos quadrinhos que liam na infância. Inclusive, encontrei muitos que me afirmaram, até com um pouco de tristeza, ter deixado de ler quadrinhos quando passaram a ler livros. Talvez até existam aqueles que pararam na leitura exclusiva de histórias em quadrinhos e não passaram para outras leituras, mas acredito que são a exceção. Não acredito que a leitura de quadrinhos, como se dizia antigamente, afaste o leitor dos livros. Pelo contrário, ela vai quebrar algumas barreiras que o leitor possa ter em relação ao livro e à leitura literária. Mas se, eventualmente, a leitura dos quadrinhos não levar à leitura de obras literárias, isso não é um desastre, pois os quadrinhos são uma leitura tão digna quanto qualquer outra. Mais que tudo, acredito que a leitura de histórias em quadrinhos ajuda a formar leitores mais críticos e exigentes, não apenas de obras impressas, mas, como diria Paulo Freire, do próprio mundo.
Porvir: Em um mundo tomado pela tecnologia, o quadrinho corre risco de perder espaço?
Waldomiro: Existem duas coisas a serem consideradas aqui. A primeira delas é a história em quadrinhos como produto tradicional impresso veiculados em publicações periódicas (os gibis ou comic books) ou livros (os álbuns e graphic novels). Esses, dependendo do que ocorrer no mercado editorial como um todo, podem realmente perder espaço no futuro. O outro aspecto a ser considerado aqui, por sua vez, são as histórias em quadrinhos como forma de manifestação artística e como mídia popular. Nesse caso, a tecnologia, mais que uma ameaça, é uma oportunidade para os quadrinhos, pois possibilita que eles sejam produzidos e consumidos de muitas maneiras diferentes. Já vemos isso em muitos países, em que o consumo de quadrinhos por meios eletrônicos – como tablets e celulares –, ultrapassa em muito o consumo das produções impressas. Além disso, a tecnologia ajuda a diminuir muitas barreiras para a produção e disseminação dos quadrinhos – qualquer criador pode elaborar uma história em quadrinhos na forma de uma revista, de uma tira, de uma graphic novel, de uma série em vários capítulos –, e colocá-la à disposição dos interessados, sem necessidade do apoio de um intermediário, o editor, como ocorre no formato impresso. Eu acredito que as histórias em quadrinhos estão se beneficiando muito com os avanços tecnológicos e vejo o futuro nessa área com muito otimismo. A interligação das mídias, especialmente no que diz respeito a revistas, cinema, televisão, jogos eletrônicos, só tem beneficiado os quadrinhos nos últimos anos.