Adolescência: investir em convivência escolar e social é antídoto ao extremismo
Casos de violência no ambiente escolar cresceram ao longo dos últimos anos, envolvendo discursos de ódio, misoginia, racismo e bullying, entre outros temas. A série de sucesso da Netflix apresenta esses assuntos e estimula o debate sobre o papel da escola nesses contextos
por Ruam Oliveira 28 de março de 2025
Não se pode resumir a série “Adolescência” a um produto audiovisual muito bem feito. Recorde de audiência da Netflix, a produção foi vista por mais de 66 milhões de espectadores nos 10 primeiros dias desde o lançamento, em 13 de março. Nos quatro primeiros dias, 24 milhões de pessoas assistiram à série, o que a coloca em um panteão de destaques recentes dos streamings de vídeo.
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Os temas abordados não são leves: machismo, misoginia, extremismo e bullying estão entre eles. O próprio fio condutor da produção – o assassinato da estudante Katie Leonard, cometido por Jamie Miller, seu colega de escola de 13 anos – também não é de fácil absorção. A escola, que fica em uma cidade inglesa, está envolta em certo caos, com professores e equipe pedagógica um pouco atrapalhados sobre como lidar com a situação.
Mas o que levou a série a ser vista por tanta gente?
“É uma produção fictícia, mas que se ampara na realidade que explica muito o que está acontecendo aqui no Brasil, nos Estados Unidos e em outras partes do mundo. Explica, também, o que está acontecendo com vários jovens”, afirma a pesquisadora Marcela de Oliveira Nunes, do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo). Sua pesquisa de pós-doutorado investiga os ataques ocorridos em escolas no Brasil, analisando e buscando compreender o perfil dos jovens envolvidos nesses atentados.
De acordo com o relatório “Ataque às escolas no Brasil: análise do fenômeno e recomendações para a ação governamental”, do Grupo de Trabalho de Especialistas em Violência nas Escolas, entre 2022 até a data de conclusão do relatório, outubro de 2023, houve 164 pessoas vítimas deste tipo de violência escolar, sendo 49 casos fatais e 115 feridos.
Segundo dados do Instituto Sou da Paz, organização com foco em ações de efetivação de políticas públicas sobre democracia, direitos humanos e justiça social, em 2003 havia sido registrado apenas um caso de ataque em escolas, esse número saltou para nove até outubro de 2023. Em 2024 não foram registrados casos.
ESCOLA LIVRE DE ÓDIO |
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O Porvir publicou um projeto especial dedicado ao tema das violências no ambiente escolar. Intitulado “Escola Livre de Ódio”, o guia multimídia reúne entrevistas, materiais de apoio e exemplos de casos que atuaram no combate às violências no Brasil. O conteúdo também traz definições sobre o universo do extremismo, além de recomendações para identificar códigos que são utilizados nas redes sociais e reconhecer situações de violência extrema. Acesse o especial completo aqui |
Adolescência em foco
A advogada Cléo Garcia, doutoranda em educação pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e especialista em Justiça Restaurativa e Direito Educacional, também dedicou sua pesquisa de mestrado a entender esses ataques e pensar em caminhos para a prevenção. Da série exibida pela Netflix, o que chamou a atenção da pesquisadora foi a ênfase na faixa etária que abrange a adolescência, algo semelhante ao que vinha descobrindo em seus estudos. “Dos 45 casos que mapeei, 35 tinham sido cometidos por menores de 18 anos”, conta.
“Precisamos focar na questão de que [quem comete esses ataques] são adolescentes, em uma fase de desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e afetivo – e são vulneráveis”, diz. Cléo ressalta que os desafios enfrentados nessa etapa da vida, portanto, precisam ser compreendidos dentro de um contexto ainda mais amplo.
A escola no centro do debate
Apesar de o crime ocorrido na série não ter acontecido dentro dos muros da escola, ele também pode ser entendido como uma violência escolar, explica Catarina Gonçalves, coordenadora do NEPEVE (Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Violência Escolar) e docente do Centro de Educação da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
Doutora em educação, Catarina destaca: quando os ataques são observados e analisados por pesquisas acadêmicas, é possível perceber que a gênese das motivações se dá em fatos ocorridos dentro do ambiente escolar e, por isso, são finalizados nele.
Mas, é também nesse espaço que os jovens descobrem diferentes adolescências e maneiras de existir no mundo.
“A escola é o lugar desse encontro, tanto de constituição da própria adolescência, como da oportunidade de aprendizagem sobre outras formas de ser adolescente.”
Catarina Gonçalves, coordenadora do curso “Violência Escolar”, da UFPE
“A escola não é só palco das relações interpessoais, mas um lugar onde também vamos para aprender a conviver. E, nesse sentido, essa é uma função prioritária da escola contemporânea”, afirma a docente. “Para ajudar os estudantes a conviver, precisamos considerar os contextos onde eles têm se construído, inclusive, os de convivência externa, do que é produzido nas redes sociais”, complementa.
A docente reforça que o enfrentamento das violências não é papel exclusivo da escola, mas que ela não pode se isentar de seu papel formativo, comprometido com um modelo de sociedade mais justo e que valoriza as diferenças. Para construir essa sociedade, a escola deve ser um espaço de pertencimento e de segurança, que possibilite aos jovens aprender a conviver.

“A convivência não é um dado, é uma aprendizagem. Ela não vai ocorrer na escola apenas porque os alunos estão juntos. A experiência de estar junto favorece a convivência, mas não assegura aprendizagens importantes para que a gente possa aprender a conviver. Convivendo, os alunos aprendem sobre diálogo, o respeito mútuo, a generosidade, a empatia e tantos outros valores que nos convocam a agir na relação com as outras pessoas”, ressalta.
Pelo fortalecimento da convivência
Para Catarina, a postura da escola não deve ser a de que evita o assunto, entendendo a violência como algo a ser debatido apenas pela polícia. Ela argumenta que as escolas podem adotar um caráter preventivo, seguindo a ótica de fortalecer as convivências – diminuindo, assim, fatores como sentimento de exclusão ou baixa autoestima, tão presentes em indivíduos que cometem ataques.
“Esse jovem que não é reconhecido de forma valorosa pelos seus pares tende a buscar a reparação dessa sua identidade fragilizada, nem que seja pela violência. A violência é eleita intencionalmente como recurso para o resgate desse valor que ele perdeu perante seus colegas”, diz.
Quando as escolas investem na convivência, elas diminuem esses outros sentimentos.
“Embora a família tenha um papel importante na formação moral e no desenvolvimento social, por ser um espaço de socialização primário, oferece às crianças convivências que são limitadas no seu próprio universo. Enquanto isso, a escola é o laboratório social mais potente pelo qual a gente transita. E por que ela tem essa potência? Porque dentro da escola coexistem as diferenças que marcam a sociedade”, ressalta.
A pesquisa feita por Cléo também aponta que investir em uma convivência sadia é fundamental para combater as violências. A implementação de práticas colaborativas e inclusivas e o investimento em esportes e artes, por exemplo, são algumas das sugestões da pesquisadora. Ações que direcionem a energia dos adolescentes para atividades presenciais, e menos para as redes sociais.

“Porque é só ali (nas redes sociais) que eles são aceitos. Não é possível que a gente continue a ignorar esses alunos que sofrem na escola. É uma minoria, mas olha o estrago que pode causar quando chega nesse ponto extremo”, reflete.
Diminuir tempo de tela e explorar atividades presenciais e ao ar livre é também uma proposta do Guia sobre Usos de Dispositivos e Telas, publicado recentemente pelo governo federal, que orienta o uso saudável das tecnologias digitais, além de promover práticas que reduzam os riscos associados ao tempo excessivo diante dos dispositivos como celulares, tablets e computadores.
Tempo de formação
A produção da Netflix mostra educadores e adultos que não estão preparados para lidar com conflitos e outros tipos de violência. Desconectados também de sinais importantes, como o silenciamento e o isolamento dos jovens. Isso exige dos professores conhecimentos sobre desenvolvimento social, afetivo, relacional e moral.
“Infelizmente no Brasil, a formação de professores, tanto no ponto de vista da formação inicial como continuada, ainda é muito precária no sentido de disponibilizar ferramentas eficazes para que ele lide com essas situações. Ele fica mesmo sem saber o que fazer diante de uma situação de conflito, de bullying, violência extrema ou outras manifestações de agressão”, afirma Catarina.
Para ela, a série “Adolescência” faz um convite ao espectador, para que possa refletir sobre diferentes tipos de violências e como cada uma exige uma intervenção distinta por parte do educador. Em referência a Paulo Freire, patrono da educação brasileira, Catarina destaca: educar requer amorosidade e rigorosidade.
“A amorosidade de se importar com o outro, com a sua vida, com a sua experiência e rigorosidade no sentido de saber o que precisa ser feito e fazer do ponto de vista da atuação profissional.”
Catarina Gonçalves, coordenadora do curso “Violência Escolar”, da UFPE
Catarina coordena o curso “Violência Escolar”, na UFPE, voltado para educadores de todas as etapas de ensino. A primeira turma, que contou com 50 vagas, recebeu cerca de 300 inscrições, o que fez a coordenação duplicar a quantidade nessa nova edição, agora com 700 inscrições. Entre os critérios de seleção, a equipe responsável pela formação prioriza professores de escolas públicas e principalmente os que lidam com estudantes na fase da adolescência, quando há maior prevalência dos casos.
Para Catarina, essa procura mostra que os professores têm buscado se fortalecer nesse assunto e se capacitar para lidar com esse desafio contemporâneo.
Você pode acessar todo o conteúdo da primeira edição do curso aqui
EXIBIÇÃO NAS ESCOLAS |
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O sucesso da série da Netflix e a grande repercussão sobre o tema chamou a atenção até de ministros de Estado. Keir Starmer, Premier do Reino Unido, endossou o pedido do ator e co-autor da produção Stephen Graham e do roteirista Jack Thorne, para que a série fosse exibida nas escolas. Jack defende que o governo tome ações radicais para lidar com situações representadas em “Adolescência”. Ele também defende que adolescentes com menos de 16 anos sejam proibidos de usar redes sociais, à semelhança de uma recente lei promulgada na Austrália. |
Questão de raça, classe e gênero
É possível descrever quem são os jovens que cometem atos de extremismo nas escolas brasileiras? As pesquisadoras ouvidas pelo Porvir concordam que não é possível estabelecer um perfil único.
Contudo, existem características que são predominantes entre essas pessoas como, por exemplo, a busca por valorização perante a comunidade escolar ou a grupos online; sensação de falta de sentido na vida e a apresentação de valores opressores como o racismo, o ódio ou aversão às mulheres e ao feminino, simpatia por ideias nazistas e desumanização de outros grupos.
“Ao mesmo tempo em que o adolescente acredita não ter nada a perder (entre matar e morrer), no mundo virtual, encontra um ambiente que o incentiva a práticas violentas, pelas quais pode ser glorificado e dar sentido à sua vida”
Cléo Garcia, em trecho de sua pesquisa de mestrado
Nos Estados Unidos, país recordista no número de ataques (em 2024 foram registrados 83 tiroteios em escolas no país), o perfil de quem comete essas violências é composto majoritariamente por meninos brancos.
Cléo argumenta que esse elemento racial também influencia na maneira como as pessoas vêem os perpetradores de crimes nas escolas. Em “Adolescência”, Jamie é interpretado por um jovem ator de pele e olhos claros e a pesquisadora lembra que a impressão de muitos telespectadores foi de ceticismo: “Será que ele fez isso mesmo?”. “Se fosse um menino negro, teríamos essas dúvidas?”, questiona a pesquisadora.
O que não significa que meninos negros, meninas e outros membros de grupos que geralmente são foco da violência premeditada não sejam capazes de se envolver e liderar esses atos . Segundo a pesquisadora da Unicamp, cerca de 5% dos ataques nos EUA foram cometidos por pessoas nesse perfil.

“É um fato que recai sobre a questão do pertencimento, da baixa autoestima. Você pode perguntar: ‘Mas encontrar meninos negros em grupos de supremacia branca ou neonazistas não é incoerente?’. Sim, mas há a questão de unir-se ao mais forte, além de muitos não se perceberem como meninos pretos”, explica a pesquisadora.
Marcela faz uma distinção entre os que estão envolvidos no discurso que promove as violências e aqueles que chegam às vias de fato. De acordo com a pesquisadora, no Brasil, os adolescentes que finalizam os ataques são quase sempre lidos socialmente como brancos, mas na verdade são meninos pretos e pardos, geralmente de classes mais pobres. Os que integram as classes médias, predominantemente brancos, encabeçam os discursos que alimentam as ações. Fora do país, sim, a prevalência de casos é com meninos brancos, ela afirma.
A família de Jamie Miller é de classe média baixa. O pai, que trabalha prestando serviços como encanador, é também parecido com muitos pais na Inglaterra e no mundo inteiro: sai cedo de casa, chega tarde. A série opta por mostrar uma família que pode ser entendida como comum para exemplificar que casos como os apresentados na produção podem vir de onde menos se espera.
Como denunciar?
Pensada para receber denúncias e atuar na segurança das escolas, o governo federal lançou a estratégia “Operação Escola Segura”, em 2023, um canal exclusivo para denúncias sobre ameaças ou ataques às escolas que são feitas de forma anônima. A iniciativa é coordenada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública em parceria com a Safernet Brasil e o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
Para contatar a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, basta ligar para o número 100 de qualquer telefone fixo ou celular. O canal também está disponível pelo WhatsApp ((61) 99611-0100), pelo Telegram (buscando “direitoshumanosbrasil” no aplicativo) e pelo site do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que oferece ainda a opção de videochamadas em Língua Brasileira de Sinais (Libras)