Alfabetização integral vai além da leitura e da escrita, abrangendo múltiplas linguagens  - PORVIR

Inovações em Educação

Alfabetização integral vai além da leitura e da escrita, abrangendo múltiplas linguagens 

A alfabetização integral amplia o ensino tradicional ao incluir linguagens como a matemática, a digital, a científica e a artística, promovendo uma formação completa e alinhada à BNCC e aos desafios do mundo atual

por Ruam Oliveira ilustração relógio 28 de maio de 2025

Certa vez, Kátia Smole, diretora do instituto Reúna, foi ao banco. Ao chegar ao local, conta ter encontrado uma menina diante do seguinte dilema: precisava sacar R$ 500, mas não conseguia. O motivo, segundo a garota, era que o caixa só possuía notas de R$ 50 e de R$ 20. Kátia então decidiu ajudá-la com um processo de soma. Em outra ocasião, a diretora do Reúna, que também já atuou como professora de matemática na rede pública de São Paulo, conta que foi comprar sorvetes e gastou R$ 20, dando à atendente uma nota de R$ 50. Como resposta, recebeu um pedido: “Você me ajuda a calcular o troco? Estou sem calculadora”. 

Kátia compartilhou essas histórias do cotidiano para reforçar um ponto: a urgência da alfabetização matemática. Durante o Seminário Alfabetização 360°: Políticas e práticas para uma alfabetização integral, organizado pelo Instituto Ayrton Senna, a representante do Instituto Reúna destacou que não é possível avançar na área sem incluir a matemática nesse processo. 

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“Não faltam dados para a gente dizer que matemática é um desastre absoluto no nosso país”, disse. E o exemplo de uma ida ao banco não é caso isolado. No último PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), avaliação aplicada pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) para medir o desempenho de estudantes de 15 e 16 anos em matemática, leitura e ciências, o Brasil ocupou a 65ª posição em matemática.

No Brasil, apenas 27% dos estudantes alcançaram o nível 2 em matemática no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), considerado o patamar mínimo de proficiência esperada. Nesse nível, os alunos conseguem aplicar procedimentos básicos em situações do cotidiano e contextos familiares.

A média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é de 69%. A avaliação classifica os estudantes em uma escala que vai do nível 1 ao nível 6, sendo este último o mais alto, reservado àqueles que demonstram domínio avançado de raciocínio matemático e resolução de problemas complexos, raciocinar logicamente, comunicar com clareza e resolver problemas inéditos com criatividade.

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“O sentido mais profundo da alfabetização matemática está em compreender, utilizar e comunicar conceitos matemáticos em situações dentro e fora da escola. Não se trata de memorizar contas. Trata-se de pensar matematicamente, entender o que os conceitos dizem, resolver problemas reais”, afirmou a educadora. 

Kátia considera que, quando o assunto é alfabetização, até mesmo os dados relacionados à matemática devem ser interpretados sob outra perspectiva. 

“Nos acostumamos com os dados. A cada edição do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica, conjunto de provas aplicadas em larga escala para estudantes), repetimos: poucos estudantes do 5º ano dominam matemática; menos ainda no 9º ano; e a situação é crítica no ensino médio. É diferente da alfabetização em língua materna, onde conseguimos estabelecer políticas públicas, pactos e programas. Vemos estados e municípios comprometidos com a alfabetização das crianças. Mas não temos nenhum pacto para garantir que os jovens aprendam matemática no tempo certo da escola.” 

Alfabetização integral dos estudantes

A visão de Kátia vai ao encontro à proposta do painel, que buscava destacar elementos que contribuem para uma alfabetização plena. Na abertura da atividade, Inês Kisil Miskalo, diretora de educação do Instituto Ayrton Senna, conceituou a alfabetização 360º, que se refere a um esforço para alfabetizar para além da simples decodificação de símbolos. 

A concepção apresentada por ela prevê uma alfabetização que abrange diferentes linguagens: digital, científica, artística, corporal e matemática. Ao ampliar o conceito tradicional de alfabetização, essa proposta contribui para o desenvolvimento de competências essenciais previstas na BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e promove uma educação mais significativa e contextualizada.

“A alfabetização, até pouco tempo atrás, era entendida apenas como a apropriação de códigos — a mecânica da relação grafema-fonema. Posteriormente, passou-se a falar em letramento, compreendendo a alfabetização também como uma prática social. Ao pensarmos em uma alfabetização plena, reunimos esses dois elementos: dominar o código e utilizá-lo em contextos significativos, sociais, comunicativos”, destacou Inês. 

A educadora defende que os tempos atuais exigem dos estudantes habilidades diversas de comunicação e expressão. Com o avanço da tecnologia e da inteligência artificial, os estudantes vão necessitar cada vez mais de ferramentas que os ajudem a se colocar no mundo.

“Esse ambiente virtual traz consigo a discussão entre o que é real e o que é simulado, o que é verdade e o que é mentira. Exige um posicionamento cidadão: saber escolher, dizer ‘quero’, ‘não quero’, ‘acredito’, ‘não acredito’”, afirmou.

Criança com uniforme escolar desenha ou escreve em uma mesa, ao lado de copos com lápis de cor e canetas.
tgthales@gmail.com/DepositPhotos Uma proposta de alfabetização integral prevê a compreensão de diferentes linguagens: digital, científica, artística, corporal e matemática.

Diferentes dimensões de alfabetização

A alfabetização voltada para a língua materna exige conhecimentos em leitura, escrita e oralidade. No entanto, sob a perspectiva de uma alfabetização integral, o desenvolvimento de outras linguagens também importante. A docente exemplifica como essas outras esferas devem ser levadas em consideração no momento de alfabetizar uma criança:

  • A linguagem científica, por exemplo, estimula a curiosidade, o pensamento lógico e o método científico, levando a criança a fazer perguntas, testar hipóteses, aceitar a frustração e trabalhar em equipe.
  • A linguagem artística desenvolve emoções, criatividade e cultura. Numa peça teatral, por exemplo, a criança pensa no texto, no cenário, no vestuário, compartilha espaços físicos e exercita a imaginação e a expressão simbólica. É também nessa linguagem que se manifestam ideologias, sentimentos e representações culturais.
  • Já a linguagem digital está relacionada ao pensamento computacional, mas não depende exclusivamente de equipamentos digitais. “Trata-se de uma estrutura mental que pode ser desenvolvida com papel e lápis. O importante é preparar a criança para esse mundo digital, com ética, criticidade e autonomia”, destacou.
  • A linguagem corporal, muitas vezes, é mais expressiva do que a verbal. O olhar, o sorriso e os gestos comunicam pensamentos e sentimentos. Crianças precisam aprender a transmitir suas ideias também por esse meio, em aulas de teatro, música ou educação física, por exemplo.

Em relação à linguagem matemática, Inês também afirmou que ela tem sido uma dimensão, por vezes, deixada de lado. ”Não basta saber ler e escrever: é preciso entender o sistema decimal, fazer cálculos, interpretar problemas”, disse Inês. Além de contribuir com o desenvolvimento do raciocínio lógico, alfabetizar para a matemática também é uma maneira de estimular habilidades práticas como fazer orçamentos, calcular descontos ou tomar decisões financeiras. 

Todas essas dimensões constituem o que se entende como uma alfabetização integral, que, segundo as especialistas presentes no evento, é essencial para além das tarefas de sala de aula.

“A vida não acontece compartimentada, como muitas vezes a escola propõe — com horários separados para português, matemática, ciências. A vida é integrada, simultânea, complexa. A escola precisa acompanhar essa lógica”, afirmou Inês. 

Olhar para o cérebro

Todas essas ações, segundo Inês, demandam intencionalidade e não são processos naturais. Ou seja, demandam sistematização, planejamento e organização – domínios que são conquistados na sala de aula, com a ajuda de professores e por meio de mediação pedagógica. 

Ana Zuanazi, gerente de pesquisa do Instituto Ayrton Senna, explica que os processos de leitura e escrita ativam áreas muito específicas do cérebro, como as relacionadas à atenção e ao visual. Contudo, há também uma região cerebral que se ativa particularmente no processo de alfabetização. 

“Diferente da habilidade de andar, que se desenvolve naturalmente em bebês com estímulos mínimos, a leitura e a escrita exigem mediação intencional. Sem essa mediação (do professor, do alfabetizador), o cérebro não desenvolve, por si só, a capacidade de reconhecer e diferenciar letras”, explica. 

Para ela, essas recentes descobertas apontam que há duas importantes implicações: a necessidade de estímulos adequados e a importância dos educadores nesse processo. Além dos aspectos cognitivos, Ana aponta que o desenvolvimento socioemocional e o ambiente escolar influenciam diretamente no desejo dos estudantes em aprender. 

“Um ambiente acolhedor motiva, tranquiliza e encoraja. Para a criança que enfrenta dificuldades com leitura ou com números, o ambiente pode ser o fator decisivo entre persistir ou desistir”, afirma. “É importante lembrar que, aos 6 ou 7 anos, a criança ainda está desenvolvendo a capacidade de regular suas emoções. O ambiente escolar funciona, muitas vezes, como um regulador externo. Os professores, por exemplo, têm um papel fundamental na mediação emocional e motivacional. Suas expectativas, acolhimento e incentivo fazem diferença no engajamento da criança”, conclui.


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alfabetização, ensino fundamental, matemática, socioemocionais, tecnologia

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