“Avaliação medieval era muito mais avançada” - PORVIR
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Inovações em Educação

“Avaliação medieval era muito mais avançada”

Pesquisador defende o fim da reprovação nas escolas e diz que exames de avaliação são bons, desde que na dose certa

por Tatiana Klix ilustração relógio 24 de junho de 2013

Equívoco, absurdo e lamentável são alguns dos adjetivos usados pelo educador, coordenador pedagógico e gestor escolar Celso Vasconcellos para designar a prática da repetência nas escolas. O diretor do Libertad – Centro de Pesquisa, Formação e Assessoria Pedagógica, doutor em didática pela USP e mestre em história e filosofia da educação pela PUC-SP diz é preciso existir alegria nas escolas, e não aquela alegria criada no humor barato, na palhaçada, mas no sentido de crescimento da potência, de aprendizado. “O aluno vai ficar feliz porque está aprendendo, se desenvolvendo, sendo capaz de enfrentar melhor os conflitos na sala de aula. Dá uma alegria muito grande quando você consegue produzir um texto, resolver uma equação”, diz o pesquisador.

O autor de diversos livros como Avaliação: Superação da Lógica Classificatória e Excludente, surpreende a maioria dos espectadores de suas palestras ao dizer que é possível fazer uma escola do futuro com uma avaliação medieval. Vasconcellos explica que durante a idade média já existiam práticas mais avançadas de avaliação, por ciclos,  que as usadas hoje.

Para o educador, avaliar os alunos sem classificá-los ou excluí-los é fundamental para construir uma escola que foque no essencial: a aprendizagem, o desenvolvimento humano e a alegria.

Leia a entrevista que o educador concedeu ao Porvir:

O que é uma escola do futuro para o senhor?

É aquela que garante a função social da escola, que não vem sendo cumprida historicamente. Basicamente é o aluno aprender os saberes necessários, se desenvolver como ser humano e ser feliz. Mas muitas vezes eles não aprendem nem sequer os saberes básicos. Outros aprendem, são verdadeiras máquinas de fazer exames e vestibulares, mas são topeiras humanas, pessoas que não têm visão de mundo. E é importante também a alegria crítica, porque a maioria é feliz antes da aula, no intervalo e depois da aula. Acho importante que eles tenham alegria dentro da sala de aula, não através do humor barato, da palhaçada, mas no sentido dado por Spinoza (Baruch Spinoza), quando ele diz que alegria é o crescimento da potência. O aluno vai ficar feliz porque está aprendendo, se desenvolvendo, sendo capaz de enfrentar melhor os conflitos na sala de aula, na família. Dá uma alegria muito grande quando você consegue produzir um texto, resolver uma equação matemática ou entender as relações da natureza. Para mim, a escola do futuro propicia isso para o conjunto dos seus alunos, não para apenas um ou outro.

E o que é uma avaliação medieval?

De modo geral, as pessoas têm uma conotação negativa da Idade Média, mas eu costumo brincar que, em alguns casos, quando falamos que uma escola é medieval, estamos ofendendo os medievais, porque há práticas da época mais interessantes do que as aplicadas hoje. Tomo como referência o período que vai do século 11, quando ocorre a retomada das cidades e surgem as universidades, até o 16, em que existia uma organização da escola elementar muito ligada à universidade. Era possível ir da gramática ao doutorado sem nunca repetir de ano. Existia um ciclo inicial, para dominar os instrumentos da leitura, depois vinha o ciclo intermediário, das artes liberais, para formar o homem livre em contraponto ao homem manual. E o terceiro ciclo dava conta da teologia, medicina e direito, as áreas nas quais era possível se tornar mestre ou doutor. Existia exame, o aluno até podia ser reprovado, mas não repetia. Em determinado momento, o aluno e o professor marcavam o exame e, se o estudante fosse reprovado, continuava frequentando as aulas até que ele e o orientador considerassem que era possível fazer a prova de novo. Mas não tinha um programa fixo, não tinha uma seriação.

O poder Executivo falha, o Judiciário, os meios de comunicação, os partidos, os sindicatos, o diretor, a família, o professor, a merendeira, o editor de livro didático falham e quem paga por isso? Quem é reprovado? O aluno. Como você pode fazer isso com uma criança de 7, 8, 9 ou 10 anos? É um grande absurdo

Isso vai surgir no século 15 com as escolas dos irmãos da vida comum, nos Países Baixos. Eram escolas com até 2.500 alunos e a seriação era feita para organizá-las. Então, no século 16, juntam-se as duas coisas – o exame e a seriação – e aí acontece a maldita da repetência, que é um grande equívoco, sobretudo do 1° ao 5° ano. O poder Executivo falha, o Judiciário, os meios de comunicação, os partidos, os sindicatos, o diretor, a família, o professor, a merendeira, o editor de livro didático falham e quem paga por isso? Quem é reprovado? O aluno. Como você pode fazer isso com uma criança de 7, 8, 9 ou 10 anos? É um grande absurdo. Nesse aspecto, a avaliação medieval era muito mais avançada.

Mas nas redes em que foram aplicados ciclos de ensino existe uma percepção de que o sistema não funciona, que os alunos seguem em frente sem aprender…

Isso é senso comum. E aliás, o senso comum é o que mais pauta as práticas escolares. Se você perguntar para um professor por que a aula tem que ter 50 minutos, ele não apresenta um fundamento epistemológico, psicológico e filosófico para a questão.

Por exemplo, as pesquisas mostram que o rendimento em sistemas seriados e não seriados é praticamente idêntico, o que eu acho lamentável. Para mim, os sistemas que adotam ciclos deveriam ter um rendimento muito melhor. O ciclo, quando bem compreendido, é uma fórmula muito mais poderosa, que respeita o ser humano. Era de se esperar até um aumento do rendimento, o que não ocorre pela falta de convicção do professor no sistema. Ele não acredita, passa essa descrença para os alunos e para a família e entende que o sistema quer apenas produzir números. Quando pergunto por que todos falham e só o aluno paga é um silêncio geral. Ninguém responde. Não tem uma resposta, é uma profunda injustiça.

Com a mesma ênfase que critico a reprovação, eu critico a aprovação. Você pode enganar o aluno reprovando ou aprovando. Quando você não engana o aluno? Quando você ensina. Ele não vai para escola para ser aprovado, mas para ser ensinado, para aprender de fato.

Mas o senhor não defende que não se faça avaliação, certo? Como ela deveria ser?

Não reprovar serve justamente para que se possa voltar ao essencial, ou seja, à aprendizagem, ao desenvolvimento humano e à alegria. Já que não estou mais preocupado em classificar o aluno, eu tenho que ensiná-lo. Avaliação é absolutamente fundamental, qualquer processo humano tem que ser acompanhado, o que critico é a avaliação classificatória e excludente.

Se escola boa é a que reprova, hospital bom é o que mata. Mas tem professor que se vangloria de reprovar alunos

Existem práticas muito simples, como a de pedir uma pequena síntese sobre o assunto que está sendo desenvolvido ao fim de uma aula. É só pedir para os alunos colocarem no papel o que entenderam e não entenderam. Assim, faço uma avaliação significativa, em cima do ato de aprendizagem. Em língua portuguesa ou história e geografia, os meninos podem produzir textos que o professor analisa, aponta problemas, conversa, então o aluno reelabora até chegar a um nível satisfatório. Assim ele vai aprender, não apenas passar. Gosto muito do que o Werneck [Hamilton Werneck] fala: “Se escola boa é a que reprova, hospital bom é o que mata”. Mas tem professor que se vangloria de reprovar alunos.

E como é possível melhorar a formação do professor e ensiná-lo a fazer um novo tipo de avaliação e construir uma escola que ensine, desenvolva os alunos e faça eles felizes?

Um elemento básico é articular a formação do professor com estágio. O meu curso de pedagogia dos sonhos teria oito anos em tempo integral com estágio desde o primeiro ano remunerado. Ou seja, ele estaria estudando, indo para a prática, voltando e refletindo sobre ela. Por exemplo, hoje um professor que faz licenciatura em matemática está habilitado para dar aula na segunda fase do ensino fundamental e no ensino médio. Quando ele vai dar aula de conjuntos, usa a matéria que teve na quinta série, porque esse conteúdo não é trabalhado na licenciatura. Ele só vê a alta matemática, mas a que vai ensinar, não vai rever.

Na formação atual, ele vai ter só algumas aulas de metodologia e didática, mas desvinculadas do conteúdo. Aí tem outro problema, que está relacionado à falta de interesse na profissão, que se tornou pouco valorizada. A maioria nem liga para a pequena carga didática que recebe na licenciatura, porque não quer ser professor, quer ser pesquisador na IBM. Mas quando se forma, não consegue ser pesquisador e vira professor de matemática. Mesmo o pouco que teve, não aproveitou. É um problema gravíssimo.

E o que os governos deveriam fazer para que todo o sistema de ensino mude?

O primeiro papel do governo seria o de não atrapalhar, dar voto de confiança às escolas que estão querendo fazer. Nesse contrato, a escola se comprometeria a obter determinados resultados, mas teria liberdade na organização pedagógica.

Atualmente, um exemplo clássico de tentativa de mudança ocorre no ensino médio. Há propostas muito interessantes, de buscar princípios de fundamentação, articulação, mas quando você vê a grade curricular é a mesma de 200 anos atrás. É desanimador. No frigir dos ovos, o aluno tem aula de português, matemática etc., embora o discurso seja o de transdisciplinaridade, articulação com trabalho, do princípio da identidade, da participação e do protagonismo. Que raio de protagonismo é esse que o menino vai do primeiro ao terceiro ano sem fazer uma opção curricular? A coisa da burocracia pesa muito.

Depois, há as grandes questões importantes ao professor: a remuneração, formação, as condições de trabalho, que precisam ser revistas. Em muitas escolas, se vive um verdadeiro inferno para trabalhar.

E é possível mudar as avaliações dentro da escola sem mudar os exames classificatórios, como o vestibular e Enem, que os alunos se submetem depois?

Há uma grande diferença entre o vestibular e o Enem. A concepção do Enem, pelo menos em princípio – e a gente tem que lutar para que o Enem seja fiel aos seus princípios – é exigir que o aluno aplique o conhecimento, prove que pode estabelecer relações. O Enem dá a fórmula, dá os dados, não exige a memorização, dá a tabela periódica. Ele exige que você saiba pensar. Eu acho que o Enem abre uma janela de oportunidade interessante, dá uma certa liberdade para reorganizar a escola.

Você querer comparar o Brasil com a Finlândia, onde há um investimento maior no aluno e uma desigualdade social muito menor, é falho. Tem fatores que devem ser considerados

E as avaliações externas, como o Pisa e o Ideb, ajudam ou atrapalham?
São interessantes, no sentido de serem indicadores, mas focam só em português e matemática, o que estreita a concepção de formação. Além disso, seria necessário articular com o Pisa, por exemplo, indicadores de desigualdade social. Você querer comparar o Brasil com a Finlândia, onde há um investimento maior no aluno e uma desigualdade social muito menor, é falho. Têm fatores que devem ser considerados.

Avaliações externas têm uma função, mas se eu fosse ministro da Educação pararia com os testes nacionais por uns quatro anos. Vamos parar de fazer todos esses exames, já temos dados suficientes, vamos investir no que tem que ser feito. Em função dessas testagens, a liberdade curricular da escola é comprometida porque ela precisa se preparar para esses exames. Com a melhor das boas intenções, a escola funciona para o exame e não o exame para a escola. Inverte a lógica. Não sou contra os testes, mas têm que ser dosados.


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avaliação, enem, ensino médio, formação inicial

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