Banir ou não banir? Celular na escola precisa ter função educacional, dizem especialistas
Especialistas ouvidos pelo Porvir afirmam que se não há intencionalidade pedagógica, os celulares podem ficar de fora da sala de aula
por Ruam Oliveira / Ana Luísa D'Maschio / Vinícius de Oliveira 21 de fevereiro de 2024
O debate sobre o uso, limitação parcial ou proibição de celulares em sala de aula retornou com mais força neste início de ano. O tema é complexo: proibir ou não que estudantes levem os dispositivos para a escola, ou até mesmo que os utilizem somente durante os intervalos, tem movimentado não apenas o debate entre professores e gestores, como também as redes sociais, envolvendo diferentes atores da comunidade escolar.
Recentemente, redes do Rio de Janeiro e de São Paulo instituíram medidas restritivas. No fim de 2023, a Secretaria Municipal de Educação do RJ promoveu uma consulta pública sobre o banimento dos aparelhos durante o período de aulas. O resultado apontou 83% dos entrevistados favoráveis à medida, que entrou em vigor este ano e restringe o uso inclusive durante o recreio. Os aparelhos devem permanecer guardados nas mochilas dos estudantes, desligados ou em modo silencioso. Há, porém, algumas exceções: o acesso só é permitido com autorização expressa do professor para fins pedagógicos.
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Na mesma esteira, o governo de São Paulo vetou o uso de redes sociais via Wi-Fi em toda a rede de educação estadual. A medida vale tanto para alunos quanto para professores. O Projeto de Lei 1222, de 2023, que tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo, visa regulamentar a presença de tais dispositivos em ambiente escolar, defendendo algo na linha do “uso consciente”. Na Bahia e no Ceará, os ministérios públicos estaduais também recomendam o acesso restrito a atividades pedagógicas.
Esse movimento de restrição ou proibição tem se ampliado em escolas por todo o país, tanto na rede pública, quanto na rede privada. Entre as maiores preocupações, estão o comportamento de dependência em relação a esses dispositivos e o impacto que eles têm na saúde mental dos alunos. Dados da FGV (Fundação Getúlio Vargas) de 2023 sobre hábitos online mostram que os brasileiros passam em média 9 horas e 32 minutos por dia no aparelho. Ou seja, quase 60% do tempo em que estão acordados.
O xis da questão
Consultora de políticas de educação digital do Banco Mundial e conselheira do Porvir, Lucia Dellagnelo integrou o time de especialistas internacionais do Relatório Global de Monitoramento da Educação, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Intitulado “A tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?”, o documento identificou que um a cada quatro países já proibiu ou restringiu os celulares nas escolas, mas reforça que os aparelhos eletrônicos devem ser utilizados apenas como recursos na aprendizagem.
Em conversa com o Porvir, Lucia afirma que a discussão sobre banir os aparelhos está sendo feita de um ponto de vista superficial, sem que sejam observados os propósitos de ter ou não um celular em sala de aula. “É óbvio que se um celular não tiver nenhuma função educacional ele tem que ser proibido nas escolas, como seriam proibidas quaisquer distrações que tiram a atenção dos estudantes”, pontua.
Há, de acordo com a especialista, uma mistura de argumentos entre os impactos do uso de celulares para a saúde mental, a aprendizagem dos estudantes e o uso da tecnologia para fins educacionais. “Proibir o celular na escola não deveria ser negar o potencial da tecnologia”, afirma. “Trata-se de uma oportunidade de instruir a turma sobre cidadania digital, uso excessivo, vícios e diferentes formas de socialização.”
Nas escolas brasileiras, professores relatam perder muito tempo tentando mediar a indisciplina, e o celular é frequentemente apontado como vilão. Lucia discorda. “O problema da disciplina está muito mais ligado à falta de uma proposta pedagógica e de uma atividade que engaje os estudantes. A culpa não é do celular em si, mas sim da ausência dessa proposta engajadora”, enfatiza.
Importância dos limites
Daniel Helene, coordenador do 6º ao 9º ano do ensino fundamental na Escola Vera Cruz, em São Paulo (SP), entende que determinados dispositivos estão sendo pensados para produzir consumismo e aumentar o vício de crianças, adolescentes e jovens nessas tecnologias. “É um problema real e urgente. Se você me perguntar se este é o principal problema das escolas e da educação no Brasil, eu vou dizer que não. Mas é uma questão importante”, pondera.
Escolas particulares estão abordando esta temática em diferentes estágios e várias delas já desenvolveram medidas para lidar com a questão, segundo comenta o coordenador. No caso do Vera Cruz, um material sobre cidadania digital determina que alunos até o 5º não podem sequer trazer dispositivos para a escola e do 6º ano em diante o uso é proibido em sala de aula. Agora, com a questão de volta à tona, Daniel afirma que o colégio está revendo a postura e avaliando se deve ou não ampliar essa proibição para as demais etapas e por todo o período letivo.
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Para o coordenador, Daniel, o contexto das escolas também influencia a restrição do uso dos celulares, especialmente ao considerar a questão sob a perspectiva da estrutura das escolas privadas, como é o caso do Vera Cruz, e das escolas públicas.
Pelo uso dos dispositivos
José Carlos Alexandre Soares, professor do ensino fundamental 2 na Escola Municipal Professor Nivaldo Xavier de Araújo, em Itambé (PE), diz que não é contra o uso de celulares dentro da sala de aula. Ele atua com metodologias ativas e faz uso dos aparelhos para apresentar os conteúdos de forma gamificada. “Eu não faço um planejamento de aula engessado, eu quero que os alunos participem dos projetos e pesquisem. Peço para verificarem se o que estou falando é verídico, por exemplo”, destaca.
Sua preocupação é que a restrição pode impedir o desenvolvimento de habilidades no uso de tecnologias. “Às vezes, a escola não tem laboratório de informática ou computadores”, ressalta, em referência à baixa infraestrutura das escolas públicas brasileiras.
De acordo com a pesquisa TIC Educação 2022, realizada anualmente pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, 58% das escolas brasileiras de ensino fundamental e médio têm computadores e internet para os alunos. Mesmo que 94% delas contem com conexão, a qualidade do sinal não é suficientemente boa para ser utilizada como ferramenta educacional.
Neste cenário, os celulares podem ser fundamentais para desenvolver alguma atividade envolvendo tecnologia na escola, defendem os entrevistados. José Carlos faz uma ponderação: sugere que as restrições sejam estratégicas e pontuais, pois existem alunos que se dispersam mais quando estão com os celulares, desviando assim o foco de um uso mais pedagógico desses aparelhos.
Daniel também acredita que para toda interdição sempre há perdas e ganhos. Impedir o uso de celulares em determinados contextos escolares – como os descritos pelo professor Carlos – pode significar o não desenvolvimento de competências digitais importantes, que as crianças precisarão para a vida em sociedade.
“Aqui no Vera Cruz nós temos condições de, se for o caso, comprar aparelhos para o uso dos estudantes, sem que haja a interferência das notificações dos celulares pessoais deles. Mas sei que ao olhar para outras realidades, não funciona assim. Então acho bastante desafiador pensar em como equilibrar isso”, diz.
Acesso seguro e responsável
Daniela Costa, coordenadora da TIC Educação, reforça que as medidas restritivas devem, de fato, ser tomadas de forma consciente.
“O que os dados mostram é que existe uma necessidade de refletir sobre o uso do celular nas escolas. Como e por que ele acontece. Quando há uma restrição ou proibição ao uso, corremos o risco de inviabilizar oportunidades de aprendizagem para estudantes que enfrentam outras dificuldades”, ressaltou em reportagem do Porvir. “Professores e alunos fazem uso desse dispositivo, então escolas devem promover um maior debate sobre como pode ser mais bem aproveitado, com um uso crítico, seguro e responsável”.
Fundadora do Instituto Travessias da Infância, a psicanalista Julieta Jerusalinsky afirma que as proibições são frequentemente vistas sob uma ótica restritiva, sendo comumente interpretadas como uma perda de direitos.
“A gente precisa pensar que uma lei restringe satisfações, mas também nos protege. A pergunta que devemos fazer é se essa decisão seria para produzir qual proteção em relação aos jovens”, diz.
O movimento sem diálogo com a comunidade escolar falhará em alcançar os benefícios esperados de tal iniciativa, pontua Julieta. “Durante muito tempo as escolas procuraram não restringir o uso e isso produziu, inclusive, um jogo de empurra entre a família e a escola. Porque os pais diziam que quem tem que decidir é a escola e ao mesmo tempo muitos deles acabavam cedendo e dando um celular aos filhos. A escola, na medida em que os pais permitiam, também não se via autorizada a restringir”, relembra.
O papel da família
A falta de diálogo entre escola e família é também um ponto de atenção para Daniel. Como coordenador de um colégio, ele percebe que há um jogo de forças entre o que as famílias esperam, o que a escola decide fazer e também como é importante envolver os estudantes nessa conversa.
“Eu me oponho a fazer essa proibição sem discussão, sem envolver os alunos nessa decisão e sem estudar o tema para compreendê-lo melhor, porque ele não é simples. Quem diz que é, certamente não entendeu”, reforça Daniel.
Mostrar aos alunos que a restrição pode abrir espaço para outras formas de aprender e de se relacionar uns com os outros é um caminho indicado pela psicanalista.
“Diversas comunidades escolares falaram sobre como estar com uma tela produz a ilusão de que nós podemos ser multitarefas. Na prática, o que se revela é que isso faz com que estejamos mal em todos [os espaços]. O desdobramento de um trabalho dentro de uma sala de aula exige concentração, estar ali disponível para o encontro com o outro e o acesso às telas torna tudo isso extremamente difícil”, ressalta a psicanalista.
Impactos na socialização e saúde mental
Entre os argumentos para eliminar os celulares das salas de aula, está a maneira como eles afetam as habilidades sociais dos estudantes, assim como os impactos na saúde mental.
Um estudo recente desenvolvido pelas universidades de Chicago, Cambridge e Minnesota, nos Estados Unidos, com 3.400 estudantes, apontou que o uso excessivo de smartphones pode desenvolver problemas com bebidas, nos relacionamentos e até afetar as notas, além da aparição de ansiedade e depressão.
Julieta Jerusalinsky destaca que, muitas vezes, é preciso desligar os celulares, porque eles roubam a possibilidade de construir relacionamentos, estabelecer conversas ou momentos de diálogo, seja entre colegas e professores ou até mesmo nas famílias.
Para a psicanalista, o uso de celulares em atividades pedagógicas é viável, visto que tratam-se de ferramentas presentes na modernidade, mas deve ser visto sempre do ponto de vista do coletivo, e nunca de maneira individual. “O que está sendo discutido é que cada aluno permaneça com seu celular, em sala ou no recreio, produzindo uma pulverização da possibilidade de estarmos juntos, pensando, pesquisando, conversando e construindo em conjunto”, observa.
Múltiplos atores e contextos
Essa mistura de diferentes atores é também fundamental para que os estudantes entendam os diferentes momentos e maneiras de usar o celular.
O coordenador do Vera Cruz acredita que se há uma regulação na escola, é preciso, também, que exista algo semelhante em casa. “Como nós conseguimos fazer isso? Chamando as famílias para discutir junto com a gente. Proibir por proibir não me interessa muito, mas organizar eventos sucessivos como temos feito desde 2020 para discutir a importância de entender os riscos relacionados ao uso de celulares, principalmente das redes sociais, eu acho muito poderoso”, afirma.
Para Julieta, há também uma via de mão dupla quando a proibição acontece somente com as crianças, adolescentes e jovens – e não com os adultos. Na busca por melhorar a socialização, se os responsáveis também não fizerem um esforço de buscar esses encontros, os mais jovens não vão entender tão bem.
“É um ato de responsabilidade que não deve ser feito simplesmente como um submetimento vertical em relação aos mais jovens. Isso precisa ser problematizado junto com eles, situando o porquê, abrindo lugar para que eles avaliem essa experiência”, destaca. Esse trabalho, para Julieta, também deve ser feito com as famílias, de modo a fazê-las refletirem sobre como circulam e se comportam com seus próprios aparelhos celulares.
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