Professores contam o que o livro 'O Avesso da Pele' tem a ensinar - PORVIR
Crédito: Elisangela Aparecida Lopes Fialho

Inovações em Educação

Na contramão da censura, professores refletem sobre o livro ‘O Avesso da Pele’

Professores relatam experiências que tiveram com o livro de Jeferson Tenório em sala de aula

por Ruam Oliveira ilustração relógio 18 de março de 2024

Henrique era um homem negro, professor de literatura em uma escola pública, que vivia em Porto Alegre (RS) quando foi assassinado a tiros durante uma abordagem policial. Quem conta esta história é seu filho, Pedro, sentado no quarto, enquanto remexe nas coisas deixadas pelo pai. 

Este é o enredo apresentado em “O Avesso da Pele”, do escritor Jeferson Tenório (Companhia das Letras, 2020), obra selecionada em 2022 para integrar o PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) e voltada para alunos do ensino médio. O livro, que ganhou Prêmio Jabuti na categoria Romance Literário de 2021, recentemente foi alvo de censura nas redes de educação do Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná. 

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Apesar da solicitação de recolhimento em algumas redes, o título continua fazendo parte da lista de obras do PNLD. O Porvir ouviu educadores que trabalham com “O Avesso da Pele” em sala de aula para entender como tem sido a experiência.

Elisangela Lopes Fialho, professora de educação básica, técnica e tecnológica no IFSULDEMINAS (Instituto Federal – Sul de Minas), campus Pouso Alegre, trabalha em 2024 pela segunda vez com o livro com os alunos do 3º ano dos cursos técnicos integrados. 

“O principal motivo desta escolha foi justamente o impacto da primeira leitura com os alunos”, conta a docente. Uma foto de sua turma segurando o livro foi compartilhada pelo autor e viralizou recentemente. 

O escritor comentou a ação da professora em entrevista à jornalista Miriam Leitão, da GloboNews: “É uma imagem muito simbólica, a gente vê uma professora trabalhando com alunos do ensino médio e vê-los segurando o livro simboliza toda a reação e atos de solidariedade, notas de repúdio e posicionamentos de instituições e uma série de pessoas que perceberam a gravidade de promover a recolha de livros nas escolas”, afirmou. 

As demonstrações contrárias à censura, para Jeferson, são reflexo de um aprendizado que o Brasil teve a partir de experiências em outros países com relação ao autoritarismo, entendendo que é preciso reagir de forma mais rápida contra tais investidas. 

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“A primeira vez que li ‘O Avesso da Pele’ foi em 2021. Fiquei impactada pela história, principalmente porque sou uma pesquisadora da literatura afro-brasileira e leitora assídua da boa produção contemporânea. Naquela época, em plena pandemia, tive a honra de realizar um bate-papo com Jeferson Tenório sobre o livro por meio de uma live com meus alunos”, relembra Elisângela.

Para esse trimestre, a proposta da professora é analisar outras obras literárias levando em consideração a representação do negro. 

“Para colocar a literatura canônica em diálogo com a afro-brasileira – o que sempre faço em minhas aulas, visando o cumprimento da Lei 10.639 – nada melhor do que o livro de Jeferson Tenório, no qual dois homens negros são protagonistas de suas vidas e se concretizam como vozes potentes da negritude”, relata a docente. 

Existem diversas maneiras de aproveitar o conteúdo do livro para discussões que caminhem nessa direção. Elisângela, que também é pesquisadora do Portal Literafro, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), propôs a leitura dos dois primeiros capítulos em sala de aula, fazendo perguntas disparadoras tanto sobre o texto em si, quanto sobre as representações e simbologias encontradas na obra. 

“Ler o romance em sala com os alunos, tendo todos um livro em mãos, foi muito emocionante, eu diria até que um marco na minha carreira docente, porque o acesso à leitura, sobretudo à leitura literária, passa pela posse do livro físico também”, afirma. 

Outras experiências 

Arthur Cunha, filho de Eliane Cunha, que é professora do 5º ano na E.E Maria Odila Bueno, em São Paulo (SP), teve acesso à obra. Ele está no 2º ano do ensino médio. A professora, que havia lido o livro, também se animou com a escolha: “Achei ótima indicação, fiquei feliz achando que aconteceria uma discussão sobre as diversas situações de racismo citadas no livro. Porém, a dinâmica adotada pela professora dele foi pedir que lessem em casa para que ela pudesse aplicar uma prova depois”, relata a educadora. 

Ela afirma que o filho chegou em casa “indignado”, porque também tinha expectativas de poder discutir a respeito da obra para além das questões mais textuais. 

O site da Companhia das Letras, editora responsável pela publicação, possui uma série de recursos para o uso da obra em sala de aula. Além de um vídeo, há um material digital de apoio que trata de questões como cidadania, inquietações da juventude, bullying e respeito às diferenças. A editora também disponibilizou a versão digital gratuitamente. Acesse aqui.

Os livros do catálogo da editora selecionados pelo PNLD possuem os mesmos recursos. Confira aqui.

Contendo propostas de atividades, o conteúdo traz um contexto sobre o autor, sugestões prévias e pós leitura e a construção de uma relação com outras disciplinas, dentro das ciências humanas e sociais aplicadas. 

“A obra é excelente para essa discussão e a forma com que o texto foi escrito é muito impactante. Eu mesma me encontrei em diversas passagens. Parecia que estava lembrando da minha adolescência”, relata Eliane. 

Em entrevista ao site Opera Mundi, Jeferson argumentou que a rejeição a seu livro também está associada a um despreparo para lidar com temas como o racismo. 

“A gente não pode querer uma literatura higienizada, uma literatura em que você não possa trazer determinadas palavras porque isso vai chocar as pessoas. Agora, o racismo não choca. A violência policial não choca. A morte de pessoas negras não choca. A fome e a miséria não chocam. Tudo isso não choca. O que vai chocar é o palavrão”, disse.

Sugestões para a sala de aula
A pedido do Porvir, a professora Elisângela Lopes Fialho listou algumas recomendações para o debate sobre “O Avesso da Pele” com as turmas do ensino médio. Confira: 

É muito importante que o professor realize uma aula depois da leitura concluída para abordar os aspectos estruturais e de conteúdo do romance. Isso promove a interação, auxilia uma melhor compreensão da história e pode promover diálogos intertextuais.

Sempre peço a produção de alguma atividade depois da leitura dos livros que indico. No caso de “O Avesso da Pele”, é possível que o professor oriente essa atividade em torno da produção de textos diversos, tais como:

a) escrita de resenha crítica do livro;
b) criação de um capítulo que dê continuidade à história, sob a perspectiva do narrador que afirma: “Tenho Ogum em minhas mãos, e agora é a minha vez” (p.188);
c) produção de uma carta do pai ao narrador (podendo ser esta uma carta pós-mortem ou produzida por Henrique após o clímax profissional que experimenta em sala de aula);
d) escrita de um texto comparativo do romance com outras artes, como a música “Ismália”, de Emicida;
e) produção de artigo de opinião sobre a “necropolítica” (conceito formulado por Achille Mbembe) concretizada na história. 

Professor no IFRS (Instituto Federal do Rio Grande do Sul) – Campus Feliz, e doutor em Letras pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Giovani Forgiarini Aiub atua com estudantes do 4º ano do ensino médio técnico e vê nesta etapa uma boa oportunidade de trabalhar com temas que podem ser considerados mais sensíveis, como os abordados em “O Avesso da Pele”. Ele comenta: “Por terem mais bagagem, vi a chance de abordar temas que os façam entender o lugar do outro e que eles ocupam um lugar de privilégio”.

Com maioria dos alunos composta por pessoas brancas em sala de aula, o docente vê no livro a possibilidade oferecida pela literatura de mostrar outros contextos às pessoas. Giovani também atua com formação de professores e avalia que temas considerados mais difíceis tendem a ser evitados por muitos docentes. 

“O que sinto hoje com relação aos professores é que eles, de modo geral, evitam temas polêmicos, mesmo sendo assuntos extremamente relevantes para a sociedade, para pensar e formar cidadãos”, comenta. 

O professor destaca que o atual interesse no livro, impulsionado por um aumento de 400% nas vendas após notícias sobre sua censura em espaços públicos, cria uma oportunidade propícia para discutir seus temas em sala de aula. Isso se deve à possibilidade de os estudantes já estarem familiarizados com a obra por acompanharem os meios de comunicação.

Como sugestões para usar o livro, Giovani afirma que pensar na construção da narrativa, fazendo uma análise psicológica dos personagens, pode ser um bom caminho. 

“Na hora de produzir seu texto, Jeferson deixa muito explícita a forma como o personagem principal se sente com relação às questões do mundo”, diz. “Outra possibilidade é verificar como um livro, enquanto um mecanismo de denúncia social, evidencia aquilo que a sociedade tem vivido”, complementa. 

Eliane faria um uso diferente da obra em relação ao usado na escola de seu filho. “Principalmente a questão do racismo em toda a vida do personagem, muitas vezes velado, muitas vezes explícito, muitas vezes passando despercebido pela própria pessoa que sofre, mas não tem consciência do que está passando. Acho uma obra excelente para iniciar uma conversa”, reflete. 

A narrativa se expande ao explorar a jornada de Henrique ao descobrir sua negritude. Esse elemento da história captura a atenção de Eliane, que se aprofunda no tema em conversas com seu filho em casa.

“Eu não tive essa oportunidade e agora que estou estudando e lendo muitas obras, assistindo vídeos e filmes, vejo que algumas vezes passei por situações que se encaixam com a narrativa. Nunca sofri racismo ‘explícito’, mas agora vejo quantas portas se fecharam sem explicação, quantas oportunidades me foram tiradas em várias situações na adolescência e na fase adulta”, relata. 

Na última semana, Arthur começou o cursinho pré-vestibular na UneAfro e o livro foi indicado como uma das leituras. “Creio que lá o debate será diferente”, conta Eliane.

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Dia Nacional do Livro, educação antirracista, ensino fundamental, ensino médio, literatura, material didático

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