Daniel Becker: “Não podemos delegar à escola toda a responsabilidade do cuidar”
Em webinário do Porvir realizado com o LIV, o pediatra Daniel Becker e a psicóloga Juliana Hampshire falam sobre a importância – e a urgência – da educação socioemocional para educadores, alunos e famílias
por Ana Luísa D'Maschio 16 de setembro de 2022
O ambiente de agressividade nas escolas após o retorno das aulas presenciais tem sido manchete quase diária dos jornais. O aumento da violência está, inclusive, registrado em pesquisas: recente estudo da Associação Nova Escola, com mais de cinco mil entrevistas realizadas pelo Brasil, mostra que 7 em cada 10 educadores acreditam que os estudantes voltaram mais agressivos. Outro levantamento, liderado pelo Instituto Ayrton Senna com a Secretaria de Educação de São Paulo, aponta que 69% dos estudantes da rede estadual paulista apresentam sintomas de ansiedade e depressão.
Quais as causas dessas agressões? Como saber se os alunos estão adoecendo? Esses foram os temas do webinário realizado nesta quinta-feira (15) pelo Porvir, em parceria com o LIV (Laboratório Inteligência de Vida). O debate reuniu o pediatra Daniel Becker e a psicóloga e coordenadora pedagógica do LIV, Juliana Hampshire, e contou com a mediação da jornalista Tatiana Klix, diretora do Porvir.
Origens pré-pandemia
Para Daniel, é preciso entender as origens da crise de adoecimento mental e emocional, em suas palavras, uma espécie de nova pandemia da infância, da adolescência e do mundo adulto. “A crise generalizada de saúde mental está atingindo as crianças e, principalmente, pré-adolescentes. É um motivo de preocupação em muitos países”, relata. “No Brasil, vivemos um momento sem precedentes, com o aumento da fome, ministérios abandonados, cidades violentas e crianças confinadas. A troca afetiva está precarizada. Crianças ficam presas em suas telas de celulares; só faltam as grades. São aparelhos construídos para nos viciar e geram o excesso, que é tóxico”.
Trata-se, portanto, de uma crise pré-pandemia agravada pelo distanciamento social, acredita o pediatra. Quando as crianças são sugadas pela tela, o brincar fica abolido. “Não podemos aceitar o TikTok como brinquedo para uma criança de 5 anos”, avalia. Tampouco os corpos sequestrados pelo sofá. “Mas as famílias estão sobrecarregadas, as escolas fizeram milagres ao se adaptarem para o ensino online. É óbvio que essa crise tem motivo para existir. É impossível ser são nesse ambiente. Quem adoece é mais sensível a esses fatores e, por isso, precisamos ter tolerância e cuidado”, sugere.
O aumento da violência nas escolas reflete o ambiente de ódio político, opina. “Isso tem de ser conversado com as crianças: não adianta tapar o sol com a peneira. Isso tem de ser processado, sem nenhum partidarismo”. Para Daniel, muito ainda deve ser conquistado no sentido de apoiar crianças, educadores e professores a atravessar este momento.
A importância do convívio
Juliana Hampshire também reforça como o confinamento ajudou a piorar o atual cenário escolar. “É difícil pensar que as crianças e os adolescentes foram retirados do espaço de socialização. A escola é o lugar da infância e da adolescência.”
Quando nos encontramos com o outro, é preciso negociação; quando somos privados da convivência, temos dificuldades em lidar com as diferenças, explica a psicóloga. “Existe intolerância ao que me é estranho, ao outro, porque fiquei muito tempo sem aprender a conviver”, exemplifica.
Ela ressalta, ainda, a importância das escolas que se responsabilizam em criar espaços de escuta, permitindo que o afeto e a emoção apareçam tanto quanto as dificuldades e o aprendizado. “Tem uma frase da escritora Aline Bei da qual eu gosto muito: ‘gente é que nem música, só existe se a gente escuta’. Quando conseguimos escutar, reconhecemos e validamos essa existência”, comenta Juliana.
Pensar em cuidado é refletir sobre quem está na linha de frente: os professores. Ao reforçar que a escola é o espaço público por excelência, onde se aprendem as habilidades mais essenciais para a vida, Daniel comenta que cabe aos educadores não o diagnóstico, mas sim a detecção dos sintomas e o cuidado com as crianças que estão adoecendo, encaminhando-as de maneira correta. “Não se pode delegar à escola toda a responsabilidade do cuidar”, diz.
“Muitas vezes, o professor tem muito mais contato com a criança do que os próprios pais, que não conseguem dar conta do papel educativo da família. A escola oferece um ambiente mais leve, com educadores mais atentos. Temos de ajudá-la, e esse cuidado passa pela escuta, atenção, abertura de um espaço de privacidade, para que ela saiba que, com aquele professor, tem espaço de confiança e vínculo profundo”, complementa Daniel.
Cuidar de quem cuida
Juliana comenta sobre a carga gigante que professores carregaram ao reinventar a maneira de ensinar em meio aos dois anos de pandemia. “Não existe possibilidade de os educadores darem conta de tudo, em meio a uma vida de múltiplas jornadas. Mas sugiro: coloquem na agenda um momento só para você, como compromisso. Isso fará a diferença. Cuidar de nós mesmos é a primeira coisa que deixamos cair no esquecimento.” A gestão escolar também precisa pensar no cuidado com a equipe. “Não existe aprendizagem sem um olhar cuidadoso”, pontua.
A infância e a adolescência são etapas para serem vividas integralmente, sem hierarquias subjetivas, concordam os especialistas. “O adulto não sabe mais do que uma criança. Ela traz o olhar do inédito, encontra outras possibilidades para algo que, para o adulto, já está posto”, afirma Juliana. “Na mente do expert, existem poucas possibilidades. Na do iniciante, elas são infinitas”, complementa Daniel. “É papel do professor plantar essa semente – sem ele, a engrenagem não anda. Precisamos debater nossas escolhas e não há lugar melhor para isso do que a escola”, finaliza o pediatra.