‘É preciso entender a inclusão como um direito humano’ - PORVIR
Crédito: kali9/iStock

Inovações em Educação

‘É preciso entender a inclusão como um direito humano’

Neste 21 de setembro, Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, Marta Gil, uma das especialistas mais renomadas em inclusão, fala sobre a urgência do debate tanto na escola, quanto fora dela

por Ruam Oliveira ilustração relógio 21 de setembro de 2022

O acesso à informação garante que injustiças deixem de ser cometidas e que direitos sejam respeitados. Olhando para a inclusão, as escolas têm despertado mais atenção para o tema. No entanto, ainda há um caminho a ser percorrido. 

Neste 21 de setembro, Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência – instituído em lei com o objetivo de conscientizar a sociedade sobre a urgência da inclusão, o Porvir conversou com Marta Gil, uma das maiores referências nacionais no assunto. 

Socióloga e especialista em inclusão, fundadora, em 1989, do Amankay, Instituto de Estudos e Pesquisas, Marta ressalta que a falta de informação é, ainda, uma grande falha. E que é preciso entender a inclusão, definitivamente, como um direito humano. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil tem 17,3 milhões de pessoas (com dois anos ou mais de idade) com algum tipo de deficiência, o que corresponde a 8,4% da população. A ONU (Organização das Nações Unidas) registra 1 bilhão de habitantes no mundo com algum tipo de deficiência física ou intelectual.

Em pleno período eleitoral, políticas públicas de inclusão devem permanecer no radar. A Rede-In (Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência) entregou a todas as candidaturas e lideranças documentos com recomendações sobre como inserir a inclusão nos planos para os próximos quatro anos de administração. 

Nesta entrevista, Marta comenta a urgência em garantir a efetividade da inclusão, tanto na escola quanto fora dela. Confira:

Porvir – É cada vez mais importante debater a inclusão, e as escolas parecem começar a entender isso. Qual tem sido a principal falha das escolas em garantir uma inclusão efetiva?

É preciso entender a inclusão, definitivamente, como um direito humano
Crédito: Arquivo pessoal Marta Gil
Crédito: Arquivo pessoal

Marta Gil – Eu acho que a principal falha é a seguinte: a inclusão é muito mais do que importante, ela é um direito constitucional. Como os demais direitos, ela é igualmente importante. Primeiro de tudo, é entender a inclusão como um direito humano. Esse seria o primeiro ponto. Sobre as falhas, é difícil saber bem como começam, porque é um fenômeno multifacetado. Acho que começam pela falta de informação.

A inclusão é ainda um processo. Ela ainda é recente em termos de história humana. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi aprovada pelo Brasil e incorporada à Constituição Federal em 2008 e a gente está em 2022: em termos cronológicos, não dá para dizer assim: “Ah, foi anteontem”, porque não foi. E em termos de processo de mudança de pensamento, ela é recente. Eu começaria pela informação e a informação concreta, correta, atualizada, mostrando que, além de ser um direito, traz benefícios para todos: professores, escola, alunos sem deficiência, alunos com deficiência, famílias e a sociedade como um todo.

Porvir – Estamos em período eleitoral. Do seu ponto de vista, como as políticas públicas de inclusão podem ou devem aparecer nos programas de governo?

Marta Gil – A gente tem alguns documentos entregues para todos os partidos e para todas as lideranças. Participei da elaboração desses documentos com a Rede-In [Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência]. Ela congrega 18 movimentos e entidades e nós construímos coletivamente uma proposta. Foi um esforço grande. 

Porvir – Os políticos têm demonstrado mais abertura ao tema da inclusão?

Marta Gil – Varia muito. Na hora que a gente entrega o documento – na medida do possível em mãos, para garantir mesmo que iria chegar no destino –, todo mundo acha ótimo, né? Ninguém vai dizer: “Ah não, eu acho que devia ter escola especial, que devia ficar em casa porque aqui incomoda, atrapalha”. Ninguém vai falar isso nesse momento. Todo mundo já sabe que é politicamente incorreto. Assim como qualquer outro segmento invisibilizado e vulnerável. Não conheço quem fale em nome do partido dizendo “sou a favor do racismo” ou “sou contra as pessoas LGBT”. Nessa hora, são todos muito comportados… 

Porvir – Recentemente, tivemos o decreto 10.502/21, que institui o Plano Nacional de Educação Especial e que foi muito criticado, considerado um retrocesso por incentivar a separação das escolas e das salas de aula para crianças com deficiência. Como a sociedade civil e instituições ligadas à educação devem estar atentas para impedir futuras iniciativas como essa?

Marta Gil – Teve um movimento bastante forte contra esse decreto, inclusive com a palavra de pessoas com deficiência lá em Brasília. Há cinco anos a gente não veria um pronunciamento deles em primeira pessoa, né? Percebo que, apesar de todas as dificuldades, barreiras, preconceitos e capacitismo (discriminação e o preconceito social contra pessoas com alguma deficiência), estamos andando.  A sociedade civil deve ficar cada vez mais atenta mesmo. O Brasil tem uma das melhores legislações. Só que a legislação não é mágica, não resolve tudo – mas, sem legislação, você não faz nada.

Crédito: FG Trade/iStock Crédito: FG Trade/iStock

Porvir – Como enxerga o tema nas faculdades de pedagogia?

Marta Gil – Nos cursos de formação, de pedagogia e nos cursos de educação, a grade curricular atual fala de educação especial ou de inclusão apenas do ponto de vista teórico. Claro que a teoria é importantíssima e você tem que conhecer, mas é preciso ir adiante. É falar sobre práticas, fazer estágios… Tem uma universidade aqui em São Paulo, a Universidade Cruzeiro do Sul, que está fazendo uma experiência que eu achei muito interessante, como se fosse uma residência em educação inclusiva. Se você pensar no curso de medicina, como é que é? Nos primeiros anos você estuda teoria, mas aí você vai para residência, tem a primeira parte do internato, depois tem a residência que é onde se põe a mão na massa antes de cuidar das pessoas. No Direito é a mesma coisa, tem o exame da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Na área de educação, acho que a gente precisaria ter uma residência de prática mesmo que seja acompanhada como na residência médica. No caso do estudante de pedagogia, isso permitiria com que ele chegasse à sala de aula mais firme, mais seguro, porque teve um acompanhamento, estudou e sentiu a realidade.

Porvir – A presença de alunos com deficiência impulsiona as escolas a pensarem melhor  sobre atividades e práticas inclusivas?

Marta Gil – Exatamente, porque nesse caso o aluno está ali na tua frente. Ou você faz de conta que ele é invisível e ele fica no cantinho da sala, “café com leite”, fazendo desenhinhos, o que é horroroso para o aluno e para você, ou vai atrás. A gente tem uma outra política pública que já existe, mas que precisa ser reforçada, que é a da sala de recurso multifuncional e do professor especializado. O ideal seria ter uma sala de recursos em cada escola, mas isso ainda não existe. 

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Porvir – E olhando para boas práticas, o que você tem observado por aí que lhe dá esperança? 

Marta Gil – Campina Grande, na Paraíba, durante dez anos teve um investimento muito grande em educação especial, na inclusão de alunos com deficiência. Foi uma política que se sustentou nesse período. Aqui em São Paulo, existe uma escola pública, a EMEF 28 de Julho, com vários alunos autistas e alguns deles com muita hipersensibilidade sensorial. Não é todo autista que tem essa hipersensibilidade, mas uma das coisas que eles fizeram foi o seguinte: tiraram aquele sinal de recreio, que eu pessoalmente acho muito chato, e substituíram por música.

O negócio não custou dois reais e é um respeito com os alunos. Foi explicado aos estudantes o porquê dessa mudança e foi legal para todo mundo. É muito mais gostoso escutar uma música do que aquela campainha.

No Paraná, durante o desfile de 7 de setembro, as fanfarras das escolas desfilam pelas ruas. Uma delas, com vários alunos autistas com hipersensibilidade sensorial auditiva, conversou com as demais e avisou que estaria em um lugarzinho determinado. Quando a fanfarra chegava no trechinho daquela escola, eles paravam de tocar e só faziam aqueles movimentos com as varinhas. Depois continuava.

A gente tem milhares de exemplos, mas esses mostram que, de repente, não precisa ter um milhão de dólares. Você precisa de informação e de atitude.

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educação inclusiva, inclusão

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