Educação financeira: da BNCC para o dia a dia do estudante
BNCC, programa Pé-de-Meia e o próprio interesse dos alunos estimulam que o tema esteja cada vez mais presente na escola
por Vinícius de Oliveira 12 de junho de 2024
Vai ser à vista ou a prazo? No crédito ou no débito? Perguntas aparentemente simples que adultos ouvem a cada nova compra trazem consigo nas entrelinhas a necessidade de se desenvolver desde cedo habilidades ligadas à educação financeira. Saber responder de maneira informada não apenas ajuda a administrar melhor o dinheiro, como também evita com que se caia em eventuais armadilhas.
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Em um mundo no qual o consumo é incentivado de múltiplas formas, e especialmente (e cada vez mais) por perfis famosos nas redes sociais, o número de curtidas, comentários, visualizações e compartilhamentos pode deturpar a capacidade de avaliar as consequências de um pagamento parcelado, com possíveis juros embutidos. Entender a vantagem de um pagamento à vista pode significar a diferença entre uma vida financeira saudável e uma dívida insustentável. Dessa forma, ensinar às crianças e adolescentes a analisar suas finanças, entender os custos adicionais e planejar suas despesas é uma medida preventiva que pode ter impacto para além da escola – e ao longo da vida.
Educação financeira no currículo escolar
Falar sobre boas práticas relacionadas ao dinheiro em um país com renda média de R$ 1.893, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), e onde a maior parte da população não consegue poupar devido à urgência de atender às necessidades mais básicas, é um tabu. A realidade de muitos brasileiros torna a prática de poupar quase impossível, circunstância que também torna ainda mais importante o acesso a uma educação financeira eficaz.
Para Ronaldo Silva, chefe-adjunto do Departamento de Promoção da Cidadania Financeira do Banco Central, não é só na escola que falar de dinheiro é evitado. “O tabu está, na verdade, dentro das famílias, que têm um pouco de dificuldade de falar sobre dinheiro com os filhos e tentam esconder a situação financeira”, afirma.
Na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), o documento que determina o que cada estudante deve aprender ao longo da educação básica, a educação financeira aparece como um tema transversal, ou seja, deve ser trabalhado nas mais diversas disciplinas (assim como direitos da criança e do adolescente, educação ambiental, educação alimentar e nutricional, educação em direitos humanos, dentre outros) e não como algo isolado.
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“Cabe aos sistemas e redes de ensino, assim como às escolas, em suas respectivas esferas de autonomia e competência, incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora”, comenta Ronaldo. Na BNCC, essas temáticas são contempladas em habilidades dos componentes curriculares, cabendo aos sistemas de ensino e escolas, de acordo com suas especificidades, tratá-las de forma contextualizada.”
A presença dessa perspectiva de múltiplos olhares para e a partir da educação financeira à época foi celebrada pelos especialistas do Banco Central, conta o especialista. Naquele momento, furava-se uma bolha e abria-se a oportunidade para que mais educadores se interessassem pelo tema e pelo Aprender Valor, um programa de formação do Banco Central para professores, escolas e redes de ensino. “Não era mais uma disciplina de educação financeira. Era a disciplina do professor que passaria a ter elementos de educação financeira.”
Importância da interdisciplinaridade
O documento do MEC também traz exemplos de como se daria essa conexão na prática, expandindo o tema para além da matemática e ligando-o a dimensões culturais, sociais, políticas e psicológicas, além da econômica, sobre as questões do consumo, trabalho e dinheiro. “É possível, por exemplo, desenvolver um projeto com a história, visando ao estudo do dinheiro e sua função na sociedade, da relação entre dinheiro e tempo, dos impostos em sociedades diversas, do consumo em diferentes momentos históricos, incluindo estratégias atuais de marketing. Essas questões, além de promover o desenvolvimento de competências pessoais e sociais dos alunos, podem se constituir em excelentes contextos para as aplicações dos conceitos da matemática financeira e também proporcionar contextos para ampliar e aprofundar esses conceitos.”
Especificamente para o ensino fundamental, a BNCC determina o estudo contextualizado de conceitos de economia e finanças, como taxa de juros, inflação, aplicações financeiras e impostos. Já no ensino médio, diante de temáticas que aproximam o currículo do mundo trabalho, o texto menciona que “há hoje mais espaço para o empreendedorismo individual, em todas as classes sociais, e cresce a importância da educação financeira e da compreensão do sistema monetário contemporâneo nacional e mundial, imprescindíveis para uma inserção crítica e consciente no mundo atual”. (O Porvir, aliás, tem um guia completo sobre empreendedorismo na educação. Acesse aqui).
A inclusão do tema em um documento orientador como a BNCC decorre de outras iniciativas, como a ENEF (Estratégia Nacional de Educação Financeira), lançada em 2010. As diretrizes da ENEF são elaboradas pelo Fórum Brasileiro de Educação Financeira, uma coalizão que reúne o MEC (Ministério da Educação), entidades da área econômica, como o Banco Central e o Tesouro Nacional, além de órgãos ligados à previdência e à defesa dos direitos do consumidor. Entre os compromissos assumidos pela ENEF, estão a realização de ações obrigatoriamente gratuitas e de interesse público. Elas não devem ter caráter comercial nem recomendar produtos ou serviços financeiros
Outra oportunidade aberta recentemente para falar de educação financeira nas escolas está ligada ao Programa Pé-de-Meia, iniciativa destinada a estudantes de renda mais baixa entre aqueles que frequentam o ensino médio público, que muitas vezes abandonam os estudos para trabalhar.
O programa do governo federal oferece um incentivo mensal de R$ 200, que pode ser sacado a qualquer momento, além de depósitos anuais de R$ 1.000, que só podem ser retirados após a conclusão do ensino médio. Com dez parcelas de incentivo, depósitos anuais e um adicional de R$ 200 pela participação no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), o valor total pode chegar a R$ 9.200 por aluno. Mais recentemente, no último dia 6, o governo anunciou que o Pé-de-Meia vai passar a contemplar também alunos da EJA (Educação de Jovens e Adultos).
Falar sobre educação financeira para esses estudantes fará sentido não apenas enquanto um currículo a ser aprendido, como também para lidar da melhor forma possível com os valores recebidos na poupança.
Nova formação
Para responder a tais demandas, durante a Semana Nacional de Educação Financeira, realizada em maio, Luciana Magri, coordenadora-geral de formação de professores do MEC, apresentou um novo curso online e gratuito com potencial de alcançar 500 mil professores, resultado de um acordo de cooperação com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), entidade que atua como um “árbitro” no mercado financeiro.
O programa conta com trilhas de aprendizagem para educadores de 1° ao 9° ano, sempre acompanhadas por materiais para professores, estudantes, sequências didáticas, estratégias de mediação e vídeos animados. “Construímos o curso com o objetivo de promover a formação de docentes da educação básica, incluindo a EJA, para a disseminação da educação financeira nas escolas brasileiras, abrangendo temas relacionados ao projeto de vida e itinerários formativos nos anos finais do ensino fundamental e ensino médio. A intenção desse curso é capacitar os professores, mas o objetivo final é alcançar as crianças e futuras gerações”, esclarece Luciana.
Outras ações desta parceria incluem ofertar cursos para os professores das redes estaduais e municipais, realizar diagnósticos para verificar o nível de conhecimento dos docentes sobre finanças pessoais e finanças comportamentais, além de realizar avaliação e monitoramento anual, o que coloca a coordenação do projeto sob pressão. “Isso é um desafio, pois é importante que os docentes já vivenciem essa relação com o dinheiro, consumo e planejamento em um nível pessoal. Isso garante que o conhecimento transmitido seja autêntico e relevante, permitindo que os alunos reconheçam que o professor está falando de algo que faz sentido para suas próprias vidas”, comenta a coordenadora.
Projeto de vida do estudante
Ao ser perguntada sobre como aproximar a educação financeira da vida dos estudantes, Luciana explicou que a realidade das famílias brasileiras já torna o tema uma necessidade para os alunos no presente. Não é algo que só se tornará relevante quando eles chegarem à vida adulta ou se tornarem provedores da família.
“Essa projeção de ‘quem serei eu daqui a 30 anos’ ainda é muito difícil para quem tem 10 anos. Mas a educação financeira é possível na vida de uma criança de 10 anos, porque essa criança está vendo a mãe desesperada com o cartão de crédito, o pai desempregado, o irmão que trabalha e quer pagar a faculdade. A educação financeira já faz parte da vida dela. É uma forma da criança entender o contexto em que vive.”
A representante do MEC também considera que o tema da educação financeira não “atrapalha” a grade curricular. “Quando você traz um conteúdo como esse, ele pode ser facilmente relacionado com leitura e interpretação de texto, leitura e interpretação do mundo, o momento atual que vivemos, decidir se vai ou não na cantina, trazer o lanche de casa ou não. O que faço com os resíduos dos alimentos? Reciclo? Existe uma cooperativa na minha escola? O que a escola entende por meio ambiente, por horta dentro da escola? Esses temas não estão separados da vida, eles são a vida.”
Quebra de barreiras
Uma escola preocupada com a formação integral deve reconhecer que o estudante precisa desenvolver habilidades, atitudes e comportamentos ligados à educação financeira e à economia. Para que isso aconteça, sem criar resistências, é necessário trabalhar para que o ambiente escolar viva uma responsabilidade compartilhada por todos os componentes curriculares. E claro, estar de olhos abertos ao que acontece no mundo, porque os estudantes vão espontaneamente trazer suas perguntas.
“O preço do arroz vai cair ou vai aumentar no interior de São Paulo por causa da enchente lá no Sul? Esse tipo de relação influencia muito na vida de cada um”, diz Camila Pamplona, editora-chefe do TINO Econômico, jornal especializado em notícias do mundo da economia e das finanças (nacional e internacional) para estudantes dos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio. Além do site, o TINO chega às escolas em formato impresso. O material conta com a análise de um clube de leitores e também com a participação dos próprios estudantes, que a cada edição publicam uma entrevista no formato de perguntas e respostas.
É pela voz dos estudantes que a educação financeira e os conceitos de economia entram de forma orgânica em sala de aula, como mostra Camila a partir de um recente caso de plágio envolvendo a música de um comercial de TV. “Foi uma excelente oportunidade para fazermos uma matéria explicando o que havia acontecido: plágio, uma obra de arte tem valor e custa dinheiro, que é fruto do trabalho do artista. Assim, contextualizamos e geramos, por exemplo, uma atividade para a aula de artes relacionada à educação financeira.”
Camila também reforça que a educação financeira dentro da escola tem o objetivo de apoiar o estudante para que ele possa inclusive levar tais aprendizados para fora da escola, para junto da sua família e da comunidade, agregando algo a mais para as pessoas que convivem com ele. E pode até haver algo sobre onde investir, mas é uma parte muito pequena e pontual. “O principal é entender os conceitos financeiros e econômicos que estão por trás de tudo na vida. A ideia é que, por meio de discussões e reflexões, consigamos mudar o comportamento desse estudante. O que vemos hoje, inclusive nós que também não tivemos essa oportunidade de ter educação financeira, é que eles acabam por reproduzir os mesmos comportamentos das famílias em termos de dívida e crédito.”