Educação financeira nas escolas impacta alunos, professores e famílias
Iniciativas criadas para a educação básica partem do interesse dos estudantes e do viés lúdico para, a partir da capacitação docente, promover ensinamentos sobre consumo e trabalho de forma interdisciplinar
por Maria Victória Oliveira 19 de outubro de 2021
O número de brasileiros endividados no país bateu recorde histórico em abril de 2021. Segundo um estudo da CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), 46% da população teve a renda reduzida no ano passado. A crise econômica traz o alerta para a educação financeira. Tanto que, dia após dia, tem se multiplicado o número de plataformas e canais no YouTube, por exemplo, dedicados ao assunto. Esses ensinamentos, entretanto, não precisam acontecer apenas na vida adulta – podem começar desde a educação básica.
De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o estudo de conceitos básicos de economia e finanças é um dos aspectos das aulas de matemática para o ensino fundamental. Nesse contexto, algumas possibilidades envolvem discussões sobre taxas de juros, inflação, aplicações financeiras e impostos, o que também pode acontecer de forma interdisciplinar, envolvendo debates sobre as dimensões culturais, sociais, políticas, psicológicas e econômicas a respeito da relação entre consumo, trabalho e dinheiro.
Esse debate é, inclusive, a proposta do Programa Nacional de Educação Financeira nas Escolas, uma parceria entre o Ministério da Educação (MEC) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), criada com o objetivo de incentivar o tema entre crianças e jovens de todo o Brasil. Lançada recentemente, a iniciativa visa capacitar mais de 500 mil professores ao longo de três anos, para que possam alcançar mais de 25 milhões de estudantes da educação básica.
A ideia é que professores do ensino fundamental e médio possam realizar cursos em uma plataforma online e trabalhar esses conhecimentos com suas turmas, incentivando uma cultura de planejamento, prevenção, poupança, investimento e consumo consciente.
Uma das formações tem como público prioritário professores do 9º ano. O curso aborda cinco grandes temáticas: finanças pessoais, matemática financeira, atitudes empreendedoras, desenvolvimento de técnicas comportamentais e projetos de vida.
O contexto recente da pandemia de Covid-19, que impactou as finanças de inúmeras famílias pelo Brasil, bem como a frequência e engajamento de crianças e jovens com os estudos e o baixo grau de educação financeira apontado por diversas pesquisas foram alguns dos motivadores para a criação da iniciativa.
Na ocasião, representantes do governo comentaram a importância da educação financeira desde cedo para o desenvolvimento de cidadãos com mais liberdade, autoestima e bem-estar. “Em nosso país, muito se fala em dinheiro, ou melhor, na falta dele, e pouca orientação educativa sobre finanças é dada pelos mais diversos segmentos da sociedade, o que acaba limitando as oportunidades dos indivíduos prosperarem. Poupar é fundamental para atingir objetivos mais audaciosos. É preciso inserir logo, de maneira lúdica, os conceitos básicos de educação financeira na realidade das crianças, para que no futuro tenham a facilidade de lidar com situações reais”, comentou Mauro Rabelo, secretário de educação básica do MEC.
Crianças aprendem, todos aprendem
Outra iniciativa que visa levar mais conhecimentos sobre finanças para crianças e jovens é o Aprender Valor, do Banco Central do Brasil (BC). Destinado a escolas e redes municipais e estaduais de educação, especificamente ao ensino fundamental, o programa propõe projetos escolares que integrem a educação financeira a diferentes componentes curriculares, a partir de sequências didáticas com atividades sobre planejamento do uso de recursos, poupança, entre outras.
O programa se conecta diretamente à cidadania financeira, um dos seis objetivos estratégicos do Banco Central, além de estar alinhado à educação financeira, um dos pilares da Agenda BC. “Desde 2003, o BC vem atuando na promoção e disseminação de conteúdos para a educação financeira de jovens e adultos a partir de cursos, vídeos, cartilhas e outras publicações no Portal Cidadania Financeira”, explica Ronaldo Vieira da Silva, chefe adjunto do Departamento de Promoção da Cidadania Financeira do BC.
Nesse sentido, o Aprender Valor representa a expansão da estratégia para a educação básica, com o objetivo de levar a educação financeira a todos os anos do ensino fundamental de forma transversal e integrada à matemática, à língua portuguesa e às ciências humanas.
Ronaldo reforça que o aprendizado do tema pelos estudantes tem o potencial de impactar a vida da família e, consequentemente, da comunidade.
Segundo ele, os dados mais recentes do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), conduzido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mostram que grande parte da experiência financeira dos jovens de 15 anos é culturalmente herdada de sua família. Por outro lado, há antecedentes no Brasil, como programas de educação ambiental ou para o trânsito, que ilustram a aprendizagem dos pais a partir dos conhecimentos e reflexões que a criança traz para casa a partir da escola. “Cremos que o mesmo seja perfeitamente possível para o caso da educação financeira e que, ao levar a experiência da escola para casa, a criança possa influenciar a família, promovendo reflexões e possivelmente mudanças de comportamento que constituam um círculo virtuoso”, defende.
O programa atua a partir da capacitação da gestão escolar, para que possa apoiar o corpo docente na gestão dos projetos e uso dos recursos educacionais oferecidos pelo programa, e também a partir da formação dos educadores, que podem acessar formações online sobre educação financeira divididas em três pilares temáticos: planejar, poupar e gerenciar.
Esses mesmos eixos também serão trabalhados com estudantes, a partir de uma conexão com as habilidades socioemocionais.
“Acreditamos que essas três competências financeiras principais que queremos estimular se apoiam mais nas atitudes e comportamentos do que em conhecimentos e cognição. Assim, para desenvolver comportamentos financeiros saudáveis, é essencial que as crianças e jovens consigam, por exemplo, ter autocontrole e autogestão para realizar planejamentos e para poupar, em vez de gastar impulsivamente”, afirma Ronaldo. “Também é fundamental ter autoconsciência para saber o que é prioritário, o que tem mais valor para si, a cada momento e contexto, ter consciência social e habilidades de relacionamento, tanto para resistir a pressões sociais inadequadas, quanto para negociar de forma construtiva com outras pessoas”, explica Ronaldo.
Com um projeto piloto implementado em 429 escolas de cinco estados e no Distrito Federal em 2020, a ideia é expandir a proposta durante 2021 e nos próximos anos, para alcançar estudantes de todo o país. O programa funciona por adesão de redes e escolas, e todas as informações podem ser consultadas no site.
O potencial do lado lúdico do aprendizado
Observando que cada vez mais crianças e jovens se interessam pelo mundo da Bolsa de Valores, a Lumiar, escola da rede privada, criou dois projetos: Stonks e Lobos de Wall Street e o Jogo de Investimentos.
O primeiro deles, que acontece na unidade da escola em São Paulo (SP), envolve adolescentes de 11 a 14 anos e simula movimentações na bolsa, com ensinamentos tanto sobre ações do mercado financeiro (investimentos, maneiras de calcular seus riscos) quanto como lucrar, entre outros aspectos. Em um simulador online, os jovens tinham disponíveis R$ 100 mil para comprar e vender ações e definir as melhores estratégias de investimento.
Para a coordenadora pedagógica da Escola Lumiar Pinheiros, Dalila Parente, ao criar um projeto a partir do interesse dos estudantes, a escola valoriza a curiosidade, tornando a busca pelo conhecimento mais significativa e prazerosa. “Além de explorarmos importantes conceitos matemáticos ao longo do projeto, e termos oportunizado o desenvolvimento de habilidades de letramento matemático, como usar a matemática para resolver problemas do mundo real por exemplo, também exploramos habilidades relacionadas ao pensamento crítico e científico, com importantes debates sobre o tema de forma bastante transdisciplinar.”
Trabalhar dessa forma é algo natural para a instituição, que não divide as áreas de conhecimento em disciplinas e aulas. Os projetos são elaborados em conjunto com os estudantes e, de acordo com Dalila, esse envolvimento no planejamento já possibilita, antes mesmo do início das propostas pedagógicas, que crianças e jovens desenvolvam habilidades como criatividade, comunicação colaborativa, negociação, organização e estratégia.
Na unidade de Porto Alegre, os estudantes criaram o Jogo de Investimentos. Inspirada no jogo de tabuleiro Banco Imobiliário, a proposta é que cada dupla chegue ao final com lucro, após começar com uma quantidade limitada de dinheiro (fictício). Pelo percurso, os jovens aprendem diferentes tipos de investimentos: de curto e longo prazo, em banco, em empresa, utilizando juros simples e juros compostos. Ainda, foram criadas cartas que influenciavam o rendimento dos estudantes nas empresas que possuíam ou nas quais eram acionistas.
Dalila reconhece o potencial de formatos lúdicos, mas reforça que é preciso ir além. “O lúdico é muito válido e com certeza está presente no dia a dia da Lumiar, mas não pode vir sozinho, e não é a ‘chave’ para o aprendizado significativo e contextualizado de conceitos ou verdadeiro desenvolvimento de habilidades. É uma questão de valorizar a busca natural por conhecimento, de entender que a curiosidade impulsiona o aprendizado, e que absolutamente qualquer assunto pode servir de contexto e pretexto para aprendizados importantes das mais variadas áreas de conhecimento.”