Educação indígena não deve ser a única a se preocupar com o marco temporal - PORVIR
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Inovações em Educação

Educação indígena não deve ser a única a se preocupar com o marco temporal

Entenda o que pretende o Projeto de Lei 490/07, que determina quais terras são territórios indígenas, as manifestações contrárias por todo o país e uma lista de materiais para levar o assunto à sala de aula

por Ruam Oliveira ilustração relógio 6 de junho de 2023

ilustração atualização Atualizado em 7 de junho de 2023

A Câmara dos Deputados aprovou, na última semana, um requerimento de urgência para o PL (Projeto de Lei) 490/07, também conhecido como PL do marco temporal. Em linhas gerais, ele tem o objetivo de alterar a Lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que impacta diretamente a demarcação de terras dos povos indígenas. 

Além disso, o projeto tem o intuito de dar ao Legislativo a palavra final sobre o tema. Os parlamentares buscam se antecipar ao STF (Supremo Tribunal Federal), que marcou a retomada do julgamento sobre o marco temporal para quarta-feira, 7 de junho, dia em que o ministro André Mendonça, do STF pediu vista (mais tempo de análise).

A sessão, com 2 votos contra e 1 a favor do marco temporal, foi suspensa e a decisão sobre a aplicação do PL 490 voltou a ser adiada. O ministro tem 90 dias para devolver a ação para análise da corte, segundo as normas internas do Supremo, mas esse prazo pode ser maior por conta do recesso do Judiciário, em julho.

No centro do debate político e dos protestos indígenas pelo país, o assunto pode ser abordado por qualquer escola, indígena ou não. Vale lembrar que, desde 2008, com a Lei 11.645, a história e a cultura indígenas são obrigatórias nos currículos escolares. E o contexto atual não pode ficar longe do que é ensinado em sala de aula. 

A professora Daniela Lima, da Escola Central Indígena Leonardo Villas Boas, que fica no Alto Xingu (MT), não é indígena, mas avalia que sua participação enquanto docente precisa levar em consideração as vivências e as experiências dos povos originários. Há 16 anos ela se dedica à educação indígena e, ao longo deste período, tem observado a importância de olhar com atenção para a questão da demarcação das terras. 

Durante as aulas com as turmas do ensino médio, Daniela insere o assunto por meio de debates e vê que, mesmo dentro do contexto em que vivem, o de um território demarcado, nem todos – principalmente os mais jovens – estão preparados para falar sobre este tema. Daí a necessidade de manter o assunto sempre vivo e presente. 

Diversos povos indígenas realizaram na última semana atos em protesto ao PL 490. A comunidade onde Daniela atua – aldeia Uaypyuku, povo Mehinako – também realizou um ato repudiando o projeto, como mostram as imagens ao longo desse texto.

Ato de repúdio contra ao PL 490, contra o Marco temporal. Alto Xingu, Aldeia Uaypyuku, Povo Mehinako. Imagens: Daniela Lima.

Indígenas de todo o país estão reunidos em um acampamento, em frente à Esplanada dos Ministérios, para pedir respeito às demarcações e à garantia de seus territórios. Manifestações também acontecem em todo o Brasil até que seja encerrado o julgamento pelo STF. 

“Além de existirem povos indígenas no Brasil, constituições anteriores a 88 garantiam aos povos indígenas os seus territórios. A Constituição Federal de 88 já traz, no artigo 231, direito de cláusula pétrea, então não pode ser mexido, a não ser com uma nova Constituição”, disse o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Kleber Karipuna à Agência Brasil.

A professora Daniela vê neste tema das demarcações também uma chance de trazer contexto para os estudantes. O PL do Marco Temporal determina quais terras são consideradas territórios indígenas. Com isso, terras que estavam ocupadas em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada, são consideradas indígenas. 

“Para isso, é necessário comprovar que, na data da promulgação da Constituição, estas terras eram habitadas em caráter permanente e também eram usadas para atividades produtivas, preservação dos recursos ambientais, assim como, para reprodução física e cultural”, explica o portal Politize!

O objetivo do PL é retirar do Poder Executivo a atribuição da demarcação de terras e transferi-la ao Poder Legislativo. O marco temporal é uma tese jurídica que reforça a rivalidade entre os chamados ruralistas (que querem barrar a demarcação das terras indígenas no país) e os povos tradicionais. Caso o PL 490 seja aprovado, os povos podem ser expulsos das terras que ocupam.

Ato de repúdio contra ao PL 490, contra o Marco temporal. Alto Xingu, Aldeia Uaypyuku, Povo Mehinako. Foto: Daniela Lima.

“O que está em jogo também no PL 490 é abertura para exploração dos recursos naturais nas terras indígenas. Ou seja, os recursos naturais como as florestas, os rios, o ar, são bens comuns e todos são beneficiados quando protegidos”, afirma Tiago Nhandewa, doutorando em antropologia social pela USP (Universidade de São Paulo).

Temática indígena como ferramenta contra o preconceito

Daniela aponta que a inclusão de temáticas do universo indígena são maneiras de combater diretamente o preconceito. “Infelizmente a gente vive num país preconceituoso. Embora muitas pessoas digam que não, vivemos em uma linha muito tênue entre preconceito e aceitação, e isso em todos os contextos”, diz a docente. 

Ela destaca que é importante que os professores forneçam atividades para que esses preconceitos sejam quebrados. A docente também destaca que é possível que muitos alunos vivam em certos nichos preconceituosos e, por isso, a escola acaba sendo mais um espaço para criar uma nova relação com a temática indígena.

Ato de repúdio contra ao PL 490, contra o Marco temporal. Alto Xingu, Aldeia Uaypyuku, Povo Mehinako. Foto: Daniela Lima.

Melvino Fontes Baniwa, coordenador do Departamento de Educação na FOIRN (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), também destaca que o preconceito faz com que alguns conceitos da educação indígena não sejam popularizados, assim como a própria temática sendo abordada em diferentes espaços.

“É um desafio a ser enfrentado por muito tempo ainda. Se a gente não começar a trabalhar essa parte do reconhecimento, inclusive pelas universidades e escolas públicas, fica muito difícil, por mais que a lei exista”, afirma. 

Quais são os argumentos dos envolvidos?

Melvino reforça que acredita que o PL 490 é um desrespeito aos povos indígenas. Segundo ele, trata-se de algo pensado por outros setores da sociedade, como o agronegócio, por exemplo, e que não contribuem positivamente com as populações indígenas. 

Os apoiadores do PL, por sua vez, pontuam que a demarcação de terras extrapola limites de atuação e competência da Funai (Federação Nacional dos Povos Indígenas). Outro argumento é que o projeto de lei pode diminuir conflitos que ocorrem entre indígenas e produtores. 

Já os defensores dos direitos indígenas asseguram que o projeto fere o que é assegurado pela Constituição. 

O coordenador da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro comenta que o país tem avançado em construir alguns mecanismos que trazem as populações indígenas para o centro do debate. Ele cita a criação do Ministério dos Povos Indígenas como um exemplo. No entanto, também destaca que o fortalecimento da educação indígena pode se valer da criação de um espaço no MEC (Ministério da Educação) que seja centrado nesta questão. 

Estratégias para o debate

A lei 11.645/2008 não é suficiente para tratar de todas as questões dos povos indígenas, mas é um ponto de partida, reforça Tiago Nhandewa. “Os professores precisam buscar outras fontes para trabalhar em sala de aula. Também é preciso uma aproximação com os indígenas e suas comunidades”. Conhecê-las in loco é uma proposta interessante, defende.

Entre as estratégias sugeridas,o educador ressalta que ouvir indígenas e organizações indígenas também é um bom caminho. Pesquisar fontes confiáveis na internet e convidar autores indígenas para conversas com a turma podem compor o levantamento.

A professora sugere que a música e os produtos do audiovisual contribuem positivamente para que a questão indígena circule para além do contexto da educação indígena. 

Confira abaixo uma seleção de materiais para levar o debate sobre o marco temporal à sala de aula

Donos da Terra

A série disponível no YouTube foi pensada e construída por uma perspectiva indígena e aborda especificamente o marco temporal. Está dividida em três episódios:
Assista aqui

A nossa história não começa em 1988

Disponibilizada por Tiago Nhandewa em seu canal do YouTube, o vídeo é um retrato das manifestações de povos indígenas de quando a temática da demarcação ganhou força na Câmara dos Deputados em 2021. Há também uma carta dos povos indígenas do Brasil que trata sobre a questão, divulgada à época. Leia aqui

Assista ao vídeo

Índio Cidadão 

O documentário apresenta resgate histórico audiovisual da participação do movimento indígena na Assembleia Nacional Constituinte (1987-88) e entrevistas com os coordenadores da União das Nações Indígenas ―- Ailton Krenak e Álvaro Tukano ―- e lideranças que participaram ativamente dessa mobilização, como Davi Kopenawa, Mario Juruna, Moura Tukano, Paulo Paiakan, Pirakumã Yawalapiti e Raoni Metuktire. O momento marcante desse processo é a intervenção de Ailton Krenak no Plenário, em defesa da emenda popular com a proposta de capítulo dos direitos dos povos indígenas.

Assista

Bora entender?

Um dos episódios do “Bora entender”, programa da TV Câmara, reuniu Kleber Karipuna, Coordenador Executivo da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), e Felipe Camargo, consultor jurídico da Frente Parlamentar da Agropecuária, para um debate sobre o marco temporal, colocando frente a frente um líder indígena e um representante da bancada ruralista.

Clique para assistir

Falando Tupi, de Yaguerê Yamã

O escritor amazonense Yaguarê Yamã é filho do povo Maraguá (por parte de mãe) e Sareté (por parte de pai). Ativista dos direitos indígenas, é professor em uma escola pública de Parintins. Neste livro bilíngue, voltado ao público infantil, Yaguarê apresenta as origens de algumas palavras faladas e escritas pelos povos indígenas. 

A pescaria do curumim, de Thiago Haikiy

Neste livro, Thiago Haikiy mostra às crianças a cultura dos povos indígenas da Amazônia por meio de poemas. O escritor é descendente do povo sateré mawé e nascido no coração da floresta amazônica. A obra conta com ilustrações de Taísa Borges. 

Nós: uma antologia de contos indígenas, de Maurício Negro

Esta é uma antologia de histórias contadas por escritores de diferentes nações indígenas. Tratando dos mais diversos temas ― dos mitos de origem às histórias de amor impossível ―, as narrativas conduzem o leitor por situações e desenlaces muito próprios, sempre acompanhadas por um glossário e um texto informativo sobre o povo indígena de origem de cada autor. 
A terra dos mil povos, de Kaká Werá

Nesta obra, o escritor Kaká Werá apresenta um outro Brasil, composto por diferentes povos – estrangeiros que aqui chegaram e originários. O livro é considerado precursor de uma apresentação de país que é plural e cheio de tradições. 

Meu avô Apolinário, de Daniel Munduruku

O livro “Meu Vô Apolinário – Um mergulho no rio da (minha) memória”, de Daniel Munduruku, resgata parte da vida e do seu relacionamento com o vô Apolinário, um indígena do povo Munduruku, que contava histórias dos espíritos ancestrais, a quem chamava carinhosamente de “avós e guardiões”. As histórias deste livro descrevem a própria trajetória do autor e a descoberta de suas raízes indígenas por meio  dos ensinamentos de seu avô. 

ilustração atualização Atualizado em 7 de junho de 2023


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educação antirracista, ensino fundamental, ensino médio

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