Escola quilombola recria clássicos infantis a partir da identidade da comunidade - PORVIR
Crédito: Gonçalina Almeida/Arquivo pessoal

Diário de Inovações

Escola quilombola recria clássicos infantis a partir da identidade da comunidade

Projeto "Historinhas do Quilombo" transforma Chapeuzinho Vermelho em Chapeuzinho Afro e reescreve outras histórias clássicas valorizando as crianças e os jovens do território quilombola de Mata Cavalo (MT)

por Gonçalina Eva Almeida de Santana ilustração relógio 17 de agosto de 2022

ilustração atualização Atualizado em 16 de agosto de 2024

O território quilombola de Mata Cavalo está localizado no município de Nossa Senhora do Livramento, a 50 quilômetros da capital do Mato Grosso, Cuiabá. Nossa comunidade, que é descendente de africanos escravizados, tem aproximadamente 500 famílias. Juntos, lutamos para manter a cultura e as tradições quilombolas. 

A Escola Estadual Quilombola Tereza Conceição Arruda tem tido um papel importante nesse sentido. Ela passou a ser caracterizada pela Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso como unidade de ensino de educação escolar quilombola no ano de 2011, e recebeu esse nome em homenagem à professora Tereza, primeira educadora quilombola da comunidade, e uma das precursoras da educação formal em Mata Cavalo.

O currículo espelha o que preconiza a legislação a respeito da educação escolar quilombola: a escola deve se apresentar como a escola do lugar, não apenas no lugar. Ou seja, oferecendo atividades e metodologias que contemplam e valorizam os saberes e fazeres locais, a oralidade e a ancestralidade, fazendo com que os estudantes não se sintam invisíveis e desconexos da sua realidade. Rompemos com os paradigmas eurocêntricos, que sempre permearam a educação pública, inclusive nos territórios quilombolas.

Nosso foco está em trazer para dentro do espaço escolar os saberes e fazeres da comunidade e articulá-los com os conhecimentos científicos. Para levar esse discurso à prática, professores da escola realizaram uma formação em etnossaberes graças a uma parceria com o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Escolar Quilombola, da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso), entre 2017 e 2021. No vídeo abaixo, explico a definição.

“Historinhas do Quilombo”

Um dos projetos que está sendo realizado na escola neste ano de 2022, a partir da abordagem dos etnossaberes, é a reescrita de clássicos da literatura infantil. Cientes da carência de acervo literário que potencializassem o protagonismo de personagens quilombolas/negros nos contos infantis e percebendo a necessidade de se trabalhar a melhoria da aprendizagem da leitura, escrita e interpretação de texto, iniciamos o projeto “Historinhas do Quilombo” com a reescrita de histórias como “Branca de Neve e os Sete Anões”, “Chapeuzinho Vermelho”, dentre outros. Nossa proposta é quebrar estereótipos de base colonialistas, racistas, sexistas e machistas, presentes, historicamente, na maioria dos livros de literatura infantojuvenil trabalhados nas escolas, inclusive, nas escolas quilombolas. 

As histórias dos clássicos infantis estão sendo reescritas com ênfase nos traços específicos das crianças e jovens da comunidade, a fim de contribuir para a valorização das ideias de negritude, empoderamento e resistência, da luta dos quilombolas e suas estratégias de libertação em relação aos processos de subalternização a que fomos submetidos historicamente. 


Chapeuzinho Afro*

Era uma vez, num quilombo chamado Mata Cavalo, localizado no cerrado do Município de Nossa Senhora do Livramento, estado de Mato Grosso, uma menina negra, de olhos castanhos e cabelos bem crespos.
No Quilombo, todo mundo gostava muito dela, e sua avó mais ainda, tanto que decidiu lhe fazer uma capinha com capuz de pano afro. A roupa era muito elegante, toda de tecido de oncinha, e a menina andava para cima e para baixo com ela. Por conta disso, as pessoas começaram a chamá-la de Chapeuzinho Afro.
Um dia, a mãe de Chapeuzinho Afro disse: 
– Filha, leve esses francisquitos [bolo típico da comunidade] para a sua avó, que vive perto do Córrego Mata Cavalo, no bosque de babaçuzeiros.
–  Pode deixar, mamãe, eu vou e volto rapidinho.

 Mas olhe, não saia do caminho porque o cerrado é perigoso.
Então a menina colocou os francisquitos numa cesta de palha de babaçu, deu um beijo na mãe e partiu. No caminho, cantava assim:
“Pelo caminho afora
Eu vou bem contentinha
Levar o francisquito
Para a vovozinha.”
Chapeuzinho Afro entrou cerrado adentro. A cada passo só se via babaçuzeiros balançando e a estrada ficando estreita. Mas ela não sentia medo.

*Trecho da atividade desenvolvida com turmas do ensino fundamental*

Ouça o conto “Chapeuzinho Afro”, narrado pela professora Gonçalina Eva Almeida.

A ideia principal é possibilitar aos pequenos e pequenas a vivência da própria história, contribuindo dessa maneira para a construção positiva de sua subjetividade, de sua autoestima, de sua formação crítica e reflexiva acerca da temática étnico-racial, cumprindo assim o que determinam as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar Quilombolas

O documento certifica que os discentes quilombolas devem ter acesso a história, cujo alicerce tenha referências nas vivências e experiências das/dos estudantes da comunidade quilombola, mostrando a beleza negra, a reconstrução da cultura silenciada, a afirmação dos cabelos crespos/cacheados, o respeito pela ancestralidade, a luta, a resistência e o empoderamento das comunidades quilombolas e das populações negras. 

As personagens já reescritas e trabalhadas na escola foram “Negra Bela e os sete Pantaneirinhos”, escrita a partir da história de “Branca de Neve e os Sete Anões” e “Chapeuzinho Afro”, escrita a partir do clássico “Chapeuzinho Vermelho”. Essas histórias trabalham a valorização do território quilombola, realçando a beleza paisagística do lugar, a estética da negra/quilombola é exaltada, e a luta quilombola ganha espaço. (Clique na foto abaixo para conferir a galeria de imagens):

Para a leitura das histórias, as crianças são convidadas a sentar em roda na sala toda decorada, e os contadores vêm caracterizadas dos personagens, contando a história com entonação e muita criatividade. Os olhos dos estudantes brilham. Isso vem contribuindo bastante para a melhoria na leitura e escrita, pois também são trabalhados interpretação de texto e atividades escritas a partir da história.

A professora Gonzalina foi uma das homenageadas da “Encontro com o Porvir: trajetórias de educadores que transformam o presente e constroem o futuro”, realizada no Museu Catavento, em São Paulo, em 2022. Confira mais detalhes no web story a seguir:

Casa de Cultura

Outro projeto bastante importante a partir da abordagem dos etnossaberes foi o da construção da Casa da Cultura, que fica dentro da escola e é utilizada para aulas, exposições de nossos trabalhos, principalmente artesanatos. É, também, um atrativo turístico, visto que a escola está localizada às margens da Rodovia MT-060, que liga Cuiabá ao Pantanal de Poconé. 

A casa foi utilizada como laboratório para conteúdos de diversas disciplinas. Na disciplina de história, do ensino fundamental, estudamos a história da moradia das famílias e a origem da construção de casa de pau a pique, por meio de pesquisa dos estudantes com os familiares. Na disciplina de matemática, também do ensino fundamental, resgatamos medidas utilizadas no território quilombola para medir o tamanho da casa, como o braço e o palmo, para depois usar as medidas padrão como centímetro e metro, bem como formas geométricas para desenhar o modelo da casa. Já no ensino médio, essas propostas se encaixam no ensino de geometria. 

Em ciências da natureza, no ensino fundamental, trabalhamos misturas, a partir da preparação do barro (argila) para barrear a casa e aterrar o chão. Também debatemos a importância de se preservar o ecossistema para se manter os recursos naturais utilizados na construção da casa. Em arte, estudamos as técnicas do uso do cipó, matéria prima utilizada para o amarro das madeiras na parede da casa e na madeira utilizada para sustentar a cobertura da casa. 

Geografia utilizou o que chamamos de tiração da madeira para construir a estrutura da casa, a fim de estudar os espaços geográficos e a cartografia da comunidade. 

Ouça o conto “Negra Bela e os sete Pantaneirinhos”, narrado pela professora Gonçalina Eva Almeida

Nesse estudo da extração de madeira, utilizamos também o conhecimento que a comunidade tem para se tratar das fases da lua. Tradicionalmente, se observa a “passagem” da lua e esperamos a chegada da fase minguante para extrair a madeira. Acredita-se que, nesse período, a madeira fica imune a traças que aceleram o apodrecimento da madeira. 

Sociologia trabalhou as formas de organização do trabalho, por meio do uso do muxirum (palavra de origem tupi-guarani, que significa trabalho em grupo, mutirão) desenvolvido secularmente entre as famílias do território quilombola de Mata Cavalo, inclusive na construção da Casa de Cultura.

A partir do trabalho em sala, com a utilização dos saberes e fazeres da Casa da Cultura, como conteúdos escolares articulados aos conteúdos dos livros didáticos, percebemos que os estudantes se interessaram mais pelas aulas e se tornaram participativos, bem como aprendem a valorizar a cultura local.

As experiências relatadas aqui demonstram que é possível e necessário produzir material diferenciado/afirmativo/antirracista a partir das escolas quilombolas, tendo em vista resgatar a cultura, reafirmar a identidade e assegurar a representatividade das populações negras/quilombolas, tão silenciadas nas produções literárias do nosso país. Além de contribuir para o orgulho de pertencimento dos nossos estudantes. 

ilustração atualização Atualizado em 16 de agosto de 2024


Gonçalina Eva Almeida de Santana

Quilombola, pedagoga, professora da rede estadual de ensino do estado de Mato Grosso, mestra em educação.

TAGS

aprendizagem colaborativa, ensino fundamental, ensino médio, uso do território

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