O que é cultura de paz e como se aplica na escola
Ensino sobre convivência e respeito aparece como elemento central na busca por uma cultura de não violência nas escolas
por Ruam Oliveira 25 de agosto de 2023
O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16, da Agenda 2030, fala sobre a promoção de uma sociedade pacífica e inclusiva. A meta, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas) é reduzir significativamente todas as formas de violência. Promover uma cultura de paz dentro – e fora – das escolas vai ao encontro do cumprimento desse objetivo.
Desde os recentes ataques às escolas, o tema tem surgido com cada vez mais frequência em discussões que envolvem toda a comunidade escolar. Contudo, o assunto deve permanecer na escola de maneira transversal, na rotina e no currículo.
A escola Escola Estadual Professor Eurípedes Simões de Paula, que fica no Jardim Lucélia, zona sul de São Paulo (SP), realiza ao longo do ano uma série de atividades que têm como pano de fundo a cultura de paz. Com muitas ações inspiradas nas ideias dos próprios estudantes, a coordenação organiza semestralmente projetos que foquem na cultura de paz a partir de uma perspectiva específica.
“Costumo dizer aos alunos que a gente precisa falar sobre cultura de paz em nossas ações do dia a dia, colocar isso como algo primordial. Porque a escola é um lugar vulnerável social, emocional e economicamente. É lá que teremos diferentes faces da sociedade, numa versão micro”, explica Ricardo Vaz Araújo, professor de história e coordenador pedagógico da escola.
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Um exemplo de atividade promovida foi a elaboração de um material feito pelos alunos sobre identidade de gênero e sexualidade. Além de tratar sobre respeito e diálogo – fatores importantes dentro da cultura de paz –, a atividade colocou os alunos como protagonistas: eles ficaram encarregados de gravar vídeos explicativos sobre a temática para que os professores pudessem utilizar como parte da formação docente.
“São trilhas formativas ofertadas pelos nossos alunos, de maneira bem didática, para os professores. Sabemos que nem todos estão por dentro desses temas, que são importantes”, diz Ricardo. Tais questões se relacionam com a cultura de paz à medida em que podem gerar bullying, preconceito e racismo.
De fato, o combate ao bullying e a diferentes tipos de preconceitos está no cerne da cultura de paz. Ricardo explica que a promoção do diálogo é um facilitador para que os estudantes entendam a necessidade de falar sobre isso. Muitas vezes, ele afirma, são os próprios alunos que trazem essas demandas para dentro da escola, seja porque aconteceu algo com eles, ou porque viram na internet ou nas redes sociais.
Seguindo nesta mesma linha, o Centro Pedagógico Casa dos Pandavas, que fica em Monteiro Lobato (SP), também se apropria da cultura de paz em diferentes dimensões e propostas pedagógicas.
“Nós acreditamos que as violências acontecem, principalmente, com o fator exclusão. O aluno, criança, jovem ou indivíduo que se sente excluído, que não sente que faz parte de algum lugar, a tendência dele é desprezar o outro ou querer destruir as coisas”, afirma Mara Gerbelli, diretora e co-fundadora da instituição.
Nós acreditamos que as violências acontecem, principalmente, com o fator exclusão.
Mara Gerbelli, diretora do Centro Pandavas
Com isso em vista, a escola adota uma gestão democrática, com grupos de debate e assembleias envolvendo os responsáveis dos alunos, o que influencia diretamente na forma como todos são tratados.
Tanto no caso da escola mineira, quanto da paulista, os coordenadores destacaram que o sentimento de pertencimento é um dos elementos mais importantes para trabalhar a cultura de paz, visto que em muitos casos é o fator exclusão – como mencionado por Mara – que causa atritos e violência.
Inspirado na Constituição da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), o conceito da “Cultura de Paz” teve origem na África, em 1989. A expressão veio à tona em Yamoussoukro, na Costa do Marfim, durante a Conferência Internacional sobre a Paz Nas Mentes dos Homens. Os estudos sobre cultura de paz ganharam força em 1992, com o documento “Uma Agenda Para a Paz”, publicado pela ONU, aponta a pesquisadora Roberta Cristina Izzo em sua dissertação. O vídeo abaixo, da Unesco, traz o histórico do conceito. Assista! |
Como entender as violências
Ricardo conta que, após a pandemia e depois dos ataques sofridos pelas escolas, o comportamento dos estudantes mudou. Por causa do longo período de distanciamento social, muitos perderam o senso de convivência, destaca o coordenador, reagindo de maneira bastante adversa.
“Começamos a identificar uma espécie de caos, uma cultura do medo sendo instituída de maneira muito definitiva. Por exemplo, houve um aluno meu que levou uma faca para a escola caso precisasse se defender porque estava com medo de ter ataque”, conta Ricardo. O professor ressalta que há também uma inversão do que seja o ambiente escolar, que sempre foi visto como um “porto seguro”, e que os projetos sobre cultura de paz devem dar conta.
“A chave de tudo é a convivência”, reforça o educador. Para ele, o papel da escola, dentro de qualquer ação voltada para a cultura de paz, é fazer com que os estudantes compreendam o outro.
Mara afirma que este é o fator principal para desenvolver ações de não violência. “As rodas de diálogo podem acontecer por proposta do professor de sala quando percebe algum conflito acontecendo ou com a escola toda. Em todo momento se procura que a própria criança que está envolvida no conflito busque a solução, nós nunca decidimos por ela”, afirma a educadora.
Ainda que a solução proposta pelo aluno não seja a adequada, a docente destaca que dá a ele essa possibilidade de busca e também de entender por que a solução proposta pode não ser a adequada.
Em parceria com a Unesco, o Instituto Palas Athena lançou o e-book gratuito “Paz, como se faz? Semeando a cultura de paz nas escolas”. Com autoria das pesquisadoras Lia Diskin e Laura Gorresio Roizman, o livro parte do pressuposto de que a construção de uma cultura de paz começa pela educação, e traz uma série de atividades e indicações para o professor levar o assunto à sala de aula. |
Combate ao discurso de ódio
Em outra ação, a Eurípedes Simões de Lima propôs um projeto para que os estudantes olhassem para as diferentes culturas e regiões brasileiras. Há uma parte dos preconceitos e do discurso de ódio que está centrada em questões regionais, principalmente contra nordestinos.
A escola realizou, então, um projeto convocando os estudantes a criar uma mostra sobre culturas e regionalidades. Cada estudante foi incentivado a trazer para o ambiente escolar um pouco da cultura das regiões de suas famílias. Dessa forma, trabalhou-se o respeito ao outro a partir do conhecimento de quem é esta outra pessoa.
Geralmente quando uma criança é agredida ou sofre algum tipo de exclusão ou violência na escola, os pais não estão em busca de restaurar, mas sim de vingança
Mara Gerbelli, diretora do Centro Pandavas
Os projetos da escola com foco na cultura de paz são dos mais variados. Eles já abordaram racismo, futebol e outros esportes, culturas e literatura, por exemplo. Em todos esses casos, o professor pontua que a temática entra por meio do diálogo.
O Centro Pandavas realiza projetos de integração semestrais. O último deles também foi sobre as regiões brasileiras no qual os estudantes fizeram um estudo sobre temas ligados às regiões brasileiras e, posteriormente, apresentam o que foi aprendido em uma festa com danças, músicas e exposições para toda a escola.
Protagonismo para a compreensão
Dar essa autonomia aos estudantes é uma maneira de fazê-los compreender as próprias ações e como elas se refletem nos outros e no coletivo. Mara destaca que quando os conflitos ocorrem entre duas pessoas, geralmente a escola propõe que eles façam um diálogo entre si – às vezes mediados por um professor – na intenção de que eles cheguem à melhor solução juntos.
Um fator que pode dificultar o trabalho da escola nesse sentido, destaca Mara, às vezes é a postura da família. “Geralmente quando uma criança é agredida ou sofre algum tipo de exclusão ou violência na escola, os pais não estão em busca de restaurar, mas sim de vingança, querem que o aluno que agrediu seja punido e não é assim que trabalhamos”, afirma.
Quaisquer que sejam as consequências, garante a educadora, são dialogadas – inclusive com os responsáveis – para que entendam que não é punindo que a escola vai alcançar uma cultura de paz.
Internet e redes
Muitos discursos de ódio que são materializados nas escolas começam no ambiente virtual. As escolas não podem, portanto, ignorar que grande parte da vida dos estudantes acontece no mundo online e, depois, é transposta para o mundo real.
“Quando a gente fala de cultura de paz, para mim, estamos falando principalmente de aceitação ao diverso, ao diferente. Estamos em um mundo onde as pessoas, mais do que nunca, parecem estar em busca da concordância: ‘Se você concorda comigo, você é meu amigo, se você discorda de mim, você é meu inimigo’, como se as coisas fossem de fato assim”, diz Januária Alves, jornalista, escritora e mestre em comunicação.
Com forte produção nas áreas de educação midiática, a jornalista aponta que este é um tema caro para as escolas porque, apesar das discordâncias sempre terem existido, agora adiciona-se a isso o fator internet.
“As redes sociais permitem um certo anonimato, permitem que as pessoas xinguem ou cancelem umas às outras sem que elas saibam quem foi. No ambiente online as pessoas têm uma coragem que talvez não teriam no mundo físico”, afirma.
No ambiente online as pessoas têm uma coragem que talvez não teriam no mundo físico
Januária Alves, jornalista
E esta coragem se traduz, em muitos casos, em discursos de ódio, preconceito, xingamentos, lgbtfobia e racismo, coisas que a cultura de paz visa combater.
A maneira como as sociedades estão vivendo, acrescenta Januária, nem sempre colabora para a criação de espaços de diálogo, aspecto fundamental da cultura de paz. “Estamos vivendo um tempo muito acelerado. Tenho conversado com alguns gestores que comentam que a reunião de pais e mães está esvaziada, porque as pessoas não têm tempo”, relata.
Para construir uma cultura de paz baseada no diálogo é necessário tempo. Januária destaca que não é algo simples, ainda mais tendo em vista o quão complexas ficaram as relações on e offline, mas é algo que deve ser feito a longo prazo.
“Uma escola que se propõe a trabalhar com a cultura de paz não é uma escola sem conflitos, mas que utiliza os conflitos, que são naturais nas relações humanas, para desenvolver o diálogo e a escuta”, reforça Mara. A coordenadora afirma que onde há espaço para a cooperação e respeito, há menos espaço para a violência.