Por que as crianças negras continuam fora das creches?
A porcentagem de crianças negras nas creches segue menor do que a de crianças brancas. O que está por trás disso?
por Ruam Oliveira 5 de abril de 2024
Faltam seis anos para 2030. Os objetivos para o desenvolvimento sustentável, que integram a Agenda 2030, plano global da ONU (Organização das Nações Unidas) para atingir um mundo melhor, traçam metas bem específicas para que a sociedade avance até esta data limite.
A meta 4.2, que aborda a educação, prevê “que todos os meninos e meninas tenham acesso a um desenvolvimento de qualidade na primeira infância, cuidados e educação pré-escolar, de modo que estejam prontos para o ensino primário”. Há, contudo, sérios entraves para o cumprimento deste objetivo no Brasil. Entre eles, desigualdades vivenciadas pelas crianças, sobretudo negras.
📳 Inscreva-se no canal do Porvir no WhatsApp para receber nossas novidades
O Censo Escolar de 2023 trouxe um dado importante: “a única etapa em que se verifica uma maior proporção da cor/raça branca foi a creche (49,7%), onde o acesso ainda não é universalizado”. Apesar de ser inferior, esse número representa a melhor proporção de crianças negras nas creches. Como método de comparação, os dados de 2018 mostram que o número de crianças brancas de 0 a 5 anos matriculadas em creches era de 55,8% observando o total de matrículas. Contudo, a lacuna ainda segue existindo.
O PNE (Plano Nacional de Educação) 2014 – 2021 tinha como alvo universalizar a educação infantil na pré-escola para crianças de 4 a 5 anos até 2016. A legislação também previa o aumento na oferta de vagas em creches para, no mínimo, 50% das crianças com até 3 anos antes de o PNE ser revisto.
O último censo mostrou que existem 4,1 milhões de crianças matriculadas (66,8% delas na rede pública e 33,2% na rede privada). O levantamento também apontou 76,7 mil creches em funcionamento no país.
Ana Oliva Marcílio, mestra em educação e justiça social e coordenadora do Grupo de Trabalho de Participação Infantil da Rede Nacional pela Primeira Infância, avalia que, com a inclusão da educação infantil no Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), parte dos problemas estruturais de acesso são resolvidos.
“O que aconteceu é que nós trabalhamos com duas metas diferentes. Uma delas é ter 100% das crianças de 4 e 5 anos na escola, o que significa que o município precisa garantir que haja vaga para elas nessa faixa etária. E na etapa creche não foi assim”, diz. As metas as quais ela se refere são da universalização e ingresso de no mínimo 50% de crianças de 0 a 3 anos.
Racismo estrutural e classe
Ana, que também é diretora na Avante Educação e Mobilização Social, argumenta que o Brasil tem uma estrutura racista, que também atravessa esta etapa de ensino, o que pode explicar a diferença nos dados de acesso.
“Estruturalmente, as pessoas de classes mais elevadas são em sua maioria brancas, e como elas fazem essa etapa? Ingressam na escola particular”, aponta. Ela também reflete que essa estrutura é um resquício do período de escravização, quando, mesmo após a abolição, os indenizados foram os senhores de escravos e não o contrário.
Esse aspecto histórico, segundo ela, também auxilia na compreensão das desigualdades quando se pensa em critérios como cor e raça. “Hoje, a maior parte da população marginalizada e próxima da linha de pobreza é composta de pessoas pretas, pardas e indígenas”, pontua.
Contudo, uma característica que tende a ser central é a oferta de vagas em creches e a não obrigatoriedade de 100% como nas outras etapas.
Pesquisas e indícios
Por que as crianças negras seguem fora da escola? Muitas instituições e pesquisadores estão se debruçando para entender causas e efeitos da diferença de acesso nesta etapa de ensino.
O AFRO-CEBRAP (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial), do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, em parceria com a Porticus, lançou recentemente o relatório “Desigualdades Raciais e Primeira Infância“, que destrincha por meio de revisão bibliográfica, abordagem quantitativa e pesquisa de campo, elementos que possam responder a esta questão.
“Na última década, os avanços do debate sobre a primeira infância ganharam centralidade no cenário brasileiro. Entretanto, essa fase de desenvolvimento ainda é discutida a partir de uma perspectiva generalista, sem considerar os cenários precários em que crianças pertencentes aos grupos mais vulnerabilizados são submetidas”, ressalta o relatório.
Silvia Aguião, antropóloga e coordenadora da pesquisa, aponta outro complicador relacionado à forma como os dados são obtidos. “Nesta etapa da pesquisa, nós trabalhamos com dados do Censo Escolar de 2020, e temos cerca de 30% de não declaração do dado racial. Ou seja, não temos informação de quase um terço”, afirma.
A equipe de pesquisadores do Cebrap trabalha, então, com uma proposta de avaliação da qualidade dos dados obtidos via censo e como essas informações impactam as análises de dados raciais.
A pesquisadora explica que esse entrave da não declaração se dá porque, principalmente na primeiríssima infância, muitas famílias não se sentem confortáveis ou engajadas o suficiente para fazê-lo.
Para produzir a pesquisa, Silvia conta que a equipe esteve em contato com escolas de São Luís, capital do Maranhão, onde realizaram a etapa de pesquisa de campo. “Encontramos profissionais dizendo que as famílias ficam constrangidas e muitas vezes hesitam em responder quando perguntadas sobre a classificação racial das crianças de 0 a 3 anos. São os familiares que vão fazer essa declaração na hora da matrícula e a gente também encontra constrangimento das equipes em perguntar”, aponta.
A exigência de dado racial no momento da matrícula não era obrigatória. Isso mudou em 2004 com a Portaria n. 156, do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira), que orientou a inclusão do dado de raça/cor nas matrículas, seguindo o mesmo padrão do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística): indígena, preta, parda, amarela e branca.
“A escola tem um papel importante na administração dos dados coletados no Censo Escolar, que reforçam esse papel. Do total de 70.894 creches, 7.551 delas não tinham nenhum estudante com a raça declarada, o que representa 11% das creches do Brasil”, escreveu Silvia em parceria com Leonardo Silveira em artigo publicado no site Nexo Políticas Públicas.
Como e por que pedir essa informação
Silvia afirma que existem duas dimensões importantes a serem trabalhadas quando se faz um recorte de raça/cor no ambiente escolar. A primeira delas consiste em explicar porque é importante incluí-lo e como essa informação é revertida em políticas públicas, por exemplo.
Uma segunda dimensão é entender como esses dados podem ser transportados para discussões mais amplas sobre as relações sociais, que envolvam toda a comunidade escolar, desde os educadores até as famílias.
Raça e educação infantil
As pesquisadoras ouvidas pelo Porvir argumentam que há também uma espécie de negligência quanto a esse período da vida. As crianças, por vezes, não são entendidas como pessoas de direitos e, por isso, acabam recebendo menor atenção.
“Tanto na revisão da literatura quanto no chão da escola, conversando com os profissionais e gestores, de fato essa fase da educação infantil é menos valorizada, a maioria são professores que recebem menos, têm menos prestígio…”, diz Silvia.
Ela também ressalta a necessidade de se realizar um trabalho de formação e conscientização sobre a necessidade de incluir a temática racial nesta etapa de ensino. Muitas escolas argumentam que este não é um tema para as crianças, o que limita que o assunto seja tratado nesta fase da vida.
“É necessário também que haja um envolvimento mais amplo da comunidade escolar. A gente não vai tratar a desigualdade racial e o racismo sem envolver a família e a comunidade escolar como um todo”, diz.
Relacionadas
Educação antirracista: 20 livros infantis com atividades pedagógicas
A escola precisa ser potencializadora de existências, diz Bárbara Carine
Uma escola antirracista começa com o apoio da gestão
Importância de estar na creche
A despeito de a legislação obrigar pais e responsáveis a matricular seus filhos na pré-escola a partir dos 4 anos de idade, a primeiríssima infância, fase dos zero aos três anos, é bastante significativa. Nela, as crianças também aprendem muito. Ana Oliva recorda que o momento entre 0 e 6 anos, de acordo com os neurologistas, é quando há um fortalecimento de pontes neuronais. “É o ápice da construção da arquitetura cerebral”, diz.
A pesquisadora cita uma analogia sobre a construção de um prédio: “Se você faz uma base fraca, os andares podem cair”. Assim ela se refere ao ingresso das crianças no mundo da aprendizagem, ressaltando que é uma fase importante de desenvolvimento psicomotor e de linguagem, por exemplo.
“As crianças devem ter direito ao acesso à educação infantil porque é nesta etapa que podem aprimorar o convívio com pessoas de fora da família e aprender mais sobre si mesmas e sobre pessoas diferentes delas”, afirma a pesquisadora Mighian Danae, mestre e doutora em educação, membro do GRUPEAFRO (Grupo de pesquisa em Educação Afrocentrada) da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), onde atua como docente.
“Quando as crianças, sobretudo as tornadas empobrecidas, que não tem acesso aos bens culturais institucionais não frequentam creche e pré-escola, a elas está sendo negado o direito de crescer e se desenvolver como ser social em meio ao mundo que a cerca, o que seguramente vai impactar em como vai enxergar o mundo e as possibilidades que este lhe oferece”, complementa.
Mighian também ressalta que o acesso e a permanência de crianças negras nas creches depende de outros fatores como, por exemplo, a estrutura familiar, considerando a jornada de trabalho dos integrantes da família e a participação de familiares na vida escolar das crianças.
“Além disso, podemos inferir também que este número menor se dê por conta da falta de investimento das prefeituras do Brasil na educação infantil, etapa esta que pode absorver grande parte do recurso para a educação no município, haja vista que uma educação infantil de qualidade é uma etapa em que os materiais e a estrutura disponível precisam ser absolutamente pensadas para as crianças, o que encarece bastante o investimento”, diz.
Em artigo publicado no site Educação e Território, a pesquisadora reflete sobre a percepção de que as crianças muitas vezes não são consideradas pessoas, o que também dificulta a efetivação de direitos delas. Em relação às crianças negras, ela questiona:
“O que dizer das crianças negras que, por fazerem parte de um grupo social/racial que ainda não alcançou um reconhecido status de participação social, poderão nunca serem vistas como pessoas, posto que não são vistas agora e não carregam consigo a potência de futuro, do tal vir a ser?”
A dificuldade de acesso de crianças negras à creche pode se refletir negativamente em outras etapas da vida, repercutindo em um impacto a longo prazo.