Professora cria trilha de gamificação para ensinar período Neolítico
Atividade com ferramentas analógicas realizada com turma do 5º ano simula o contexto estudado e estimula o trabalho em equipe
por Natália Coelho Miranda 9 de fevereiro de 2023
Identificar os processos de formação dos povos e compreender a ideia de Estado são habilidades de história previstas na BNCC (Base Nacional Comum Curricular) para o 5º ano, mas que, para mim, como professora, eram desafiadoras, pelo fato de o lapso temporal ser muito distante da realidade dos alunos e pela complexidade das diversas ordenações sociais que existiam. Isso me fazia refletir sobre como eu poderia tornar todo esse processo mais fácil e instigante para a turma.
Havia uma inquietação e um desejo de não fazer o uso exclusivo de aulas expositivas e do livro didático. Afinal, os estudantes têm nos apontado, diariamente, a necessidade de tornar os processos de aprendizagem menos passivos. Resolvi, então, me debruçar sobre a disciplina de gamificação da pós-graduação em metodologias ativas que cursava na época. Com ideias fervilhando na cabeça e o incentivo do Colégio Santa Marcelina, em Belo Horizonte, para o desenvolvimento de práticas centradas no estudante, surgiu o jogo “Da aldeia à cidade”.
O jogo tem como objetivo principal inserir os estudantes em um contexto do período Neolítico. Em grupos, eles se transformam em pequenas aldeias que, a partir de dez desafios propostos, desenvolvem-se e crescem, até se tornarem uma grande cidade-estado. E para apresentar a narrativa e as orientações do jogo, utilizei o site Prezi como suporte. Também foram produzidas figurinhas autoadesivas, cartazes com quiz ou bônus e um mural afixado na sala para acompanhamento do progresso dos grupos.
Passo a passo
O jogo começa com a turma dividida em 6 grupos. O primeiro desafio é descrever e desenhar o local onde a aldeia foi construída. Nesse momento, é possível observar se os alunos vão se preocupar com os elementos básicos de sobrevivência, como a presença de água e a possibilidade de obter alimentos. A partir disso, são propostos desafios nos quais os estudantes observam o aumento do grupo populacional e precisam resolver seus respectivos problemas: reorganização da sociedade, hierarquia e divisão de tarefas.
No 5º desafio, foi proposta para os grupos a resolução de uma questão muito comum nas primeiras civilizações: a escassez de água. Deixei o seguinte questionamento para a turma: “A cidade de vocês cresceu, mas não há chuva o ano inteiro e nem sempre o rio está cheio. Como irão resolver o problema da escassez de água?”. A partir disso, os alunos realizaram pesquisas sobre como os povos do Crescente Fértil (região que compreende os atuais estados da Palestina, Israel, Jordânia, Kuwait, Líbano e Chipre, bem como partes da Síria, do Iraque, do Egito, do sudeste da Turquia e sudoeste do Irã) solucionaram esse problema, escolheram uma das possíveis soluções e justificaram a decisão do grupo. Na outra etapa, a partir de uma rubrica produzida por mim, cada grupo corrigiu a produção textual de uma outra aldeia. Assim, os alunos puderam receber o feedback (retorno avaliativo) dos pares.
Já no 7º desafio, com o objetivo de provocá-los sobre a origem da escrita e da moeda, trouxe um outro questionamento para as aldeias: o excedente gerado pelo aumento da produção. Eles deveriam realizar trocas de produtos e ferramentas que haviam desenhado, mas lembrando que, nesse momento, não existia moeda e nem escrita. Cada grupo precisou criar a sua própria estratégia para registrar e negociar com o outro. Em seguida, fizemos a reflexão sobre as dificuldades que sentiram ao realizar a atividade.
Nesse momento do jogo, as aldeias que, no início eram 6, já se tornaram 3 grandes grupos. E, a partir do desafio 8, que envolvia a criação de um código de escrita para a aldeia, um grupo seria conquistado e a turma dividida em 2 grandes grupos.
Chegando à reta final, os grupos criaram perguntas sobre tudo o que estudamos ao longo das aulas e que se relacionavam com o jogo. Coletei as produções e criei um formulário no Google Forms a partir delas. Em uma outra aula, os alunos foram ao Laboratório de Informática para responder ao questionário. O grupo com o maior número de acertos vencia e conquistava a outra aldeia, tornando-se, assim, a cidade-estado dominante.
Agora que a turma toda havia se tornado uma cidade-estado, eles deveriam reorganizar a hierarquia da sociedade e a divisão de tarefas. Para isso, desenhei um triângulo gigante de giz no pátio da escola, representando a pirâmide social, para que eles pudessem fazer a nova organização. Caso conseguissem fazer esse rearranjo dentro do tempo determinado, a turma toda ganharia uma recompensa.
Ao finalizar o jogo, pude observar, na prática, que houve uma promoção de aprendizagem a partir de metodologias ativas. Coletei dados a partir da observação das participações dos alunos ao longo da trilha, analisando a coerência das produções em relação ao que estávamos estudando e por meio de uma avaliação somativa, na qual a maior parte dos alunos obteve nota acima da média estabelecida.
Resultados além do jogo
Contudo, o ganho socioemocional foi o que mais me chamou atenção. Os estudantes demonstraram avanços significativos em relação à regulação do tempo, ao trabalho em equipe, à tolerância à frustração, à relação interpessoal, ao saber ouvir e se abrir para o novo.
Em relação ao tempo, todos os desafios eram cronometrados, tudo no jogo tinha um tempo previsto, o relógio era compartilhado no telão da sala para que o grupo pudesse se organizar. Me recordo que, no primeiro desafio, as turmas precisavam de cinco minutos ou mais para organizarem as mesas e, ao final do jogo, já se organizavam em menos de dois minutos! Também realizaram todos os desafios dentro do tempo determinado.
Outro aspecto positivo foi observar os alunos resolvendo grande parte dos conflitos de maneira autônoma. Inclusive, ao final da trilha, fizemos uma autoavaliação e os estudantes registraram suas observações, fazendo apontamentos sobre a vivência. De acordo com as avaliações coletadas, o que mais gostaram da proposta foi trabalhar em equipe durante todo o jogo. Além disso, ao longo do processo, tornou-se desnecessário solicitar a divisão de tarefas do grupo, pois eles já a tinham pronta. Todos esses aspectos relacionados ao trabalho em grupo foram levados para outras atividades realizadas ao longo do ano.
Durante a realização da trilha, o meu maior desafio foi conciliar o tempo do jogo com as outras demandas escolares e o cumprimento de prazos estabelecidos. Para conseguir finalizar e desenvolver toda a matriz curricular prevista para a etapa, intercalei os momentos entre jogo, aula expositiva, dentre outras estratégias. Por esse motivo, o jogo precisou de dois meses para ser concluído. Outro ponto desafiador foi trabalhar com grupos numerosos. Alguns, a partir da conquista de território, chegaram a ter 17 alunos. No entanto, penso que uma redução do tamanho da equipe iria minimizar a imersão no contexto de crescimento populacional e suas demandas.
Acredito que o jogo “Da aldeia à cidade” é uma proposta inovadora, pois propiciou aos estudantes uma experiência única de imersão e simulação do contexto estudado, no qual o progresso do jogo estava relacionado ao empenho e à autonomia deles na busca pelo conhecimento. Além disso, foi uma proposta inédita para mim e para os alunos. Nunca tínhamos vivido uma lógica de game no ambiente escolar, por um período tão prolongado e desenvolvendo habilidades previstas para a série.
Como docente, me vi deixando de ser o centro do processo de aprendizagem dos alunos, pois permiti que atuassem frente aos desafios. Meu papel central era orientar e mediar o processo. Confesso que, em alguns momentos, me questionei se a aprendizagem estava ocorrendo de fato, pois eu não estava no controle do percurso. Mas como disse acima, ao longo do jogo, isso se mostrou visível com o que os alunos me apresentaram.
Diante de um cenário com uso intenso de ferramentas digitais e jogos eletrônicos, o engajamento das turmas com uma proposta que foi realizada, em sua maior parte, sem esses recursos, foi algo surpreendente. O que me faz refletir que, para uma proposta ser significativa, nem sempre se faz necessário o uso de recursos com custos elevados e tecnologias complexas. Por isso, ver o engajamento dos estudantes na primeira aplicação da proposta me motivou a dar continuidade ao jogo neste ano e aprimorá-lo, inclusive com sugestões dadas pelos próprios alunos nas autoavaliações.
O que fazer para replicar o projeto?
Para apresentar a narrativa e as orientações do jogo, utilizei o site Prezi como suporte. Também foram produzidas figurinhas autoadesivas, cartas com quiz ou bônus e um mural afixado na sala para acompanhamento do progresso dos grupos.
Natália Coelho Miranda
Graduada em pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), licenciatura em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialização em alfabetização e letramento pela PUC-MG e está em processo de conclusão da pós-graduação em metodologias ativas também na PUC-MG. Atua desde 2014 na rede particular de ensino de Belo Horizonte, nos anos iniciais do ensino fundamental.