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Projeto indígena une saberes tradicionais e STEAM

Na Terra Indígena Potiguara de Monte-Mor (PB), estudantes transformaram escuta comunitária em um projeto que conecta território e ancestralidade com aprendizagens contemporâneas

por Emerson Felipe da SIlva ilustração relógio 3 de outubro de 2025

Como professor de Educação Física da Escola Estadual Indígena de Ensino Fundamental e Médio Cacique Domingos Barbosa dos Santos, em Rio Tinto (PB), e com 25 anos de experiência na educação básica, sendo 20 deles dedicados à educação escolar indígena, nunca enxerguei minha disciplina como algo restrito a exercícios físicos. Sempre acreditei que a educação física pode e deve dialogar com a cultura, com o território e com outras áreas do conhecimento.

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Na educação indígena, considerar a ancestralidade é um princípio, e escutar a comunidade faz parte de um processo formativo que não se encerra em etapas lineares, mas que se renova a cada ciclo, no que o pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, chama de “começo, meio, começo”.

Para ele, o conhecimento não segue uma linha reta que vai do início ao fim. A vida e o aprendizado acontecem em ciclos. O que se aprende com os mais velhos orienta o presente e abre caminho para o futuro, mas nunca se encerra.

Arquivo Pessoal

Foi desse entendimento que nasceu, e segue em movimento, o projeto “Corporeidade, território, ancestralidade e ecossaberes”. As pesquisas começaram com a turma do 9º ano, que incluíam aproximadamente 10 estudantes, mas hoje incluem todos os 90 alunos do ensino fundamental.

Alinhado ao RCNEI (Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas), à BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e aos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), a iniciativa conecta práticas corporais indígenas à Educação Física e a diferentes áreas do conhecimento a partir da abordagem STEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Arte e Matemática). 

Mais do que uma atividade pedagógica, trata-se de um movimento que valoriza identidade, território e saberes ancestrais, fortalecendo a autoestima dos estudantes e a relação entre escola e comunidade.

O território como escola

Nosso território é a Terra Indígena Potiguara de Monte-Mor, demarcada oficialmente em 2024 pelo Governo Federal. Com 7.530 hectares e uma população de 5.799 indígenas Potiguara distribuídos em seis aldeias, segundo o Censo 2022 do IBGE, é uma região de grande biodiversidade, que reúne Mata Atlântica, rios, manguezais e restingas. Por lei, essa área é posse permanente do povo Potiguara, garantindo proteção cultural, espiritual e territorial.

O próprio nome do projeto traduz sua essência: a corporeidade lembra que o corpo é lugar de memória, movimento e expressão; o território é a terra onde vivemos, resistimos e aprendemos; a ancestralidade é a herança dos mais velhos, transmitida em histórias, rituais e práticas culturais; e os ecossaberes são os conhecimentos que nascem do cuidado e da convivência com a natureza.

Escuta e cultura

O primeiro passo do projeto foi a escuta ativa. Estudantes entrevistaram anciãos e lideranças comunitárias, registrando práticas tradicionais, memórias e preocupações ambientais. Essa etapa foi essencial para que os jovens reconhecessem os saberes ancestrais e, ao mesmo tempo, trouxessem para dentro da escola as principais preocupações da comunidade hoje. Entre elas, destacaram-se o colapso da nascente da Aldeia Jaraguá, as marcas da monocultura da cana-de-açúcar e do desmatamento.

Dentro desse movimento, o Toré ganhou protagonismo. Essa tradição indígena do Nordeste é ao mesmo tempo dança, ritual e oração coletiva. Realizado em roda, com cantos, maracás e tambores, o Toré reafirma a ligação entre espiritualidade e natureza. Para os estudantes, o Toré também se relaciona às questões ambientais. Cuidar da nascente não é apenas uma ação ambiental, mas também um compromisso espiritual e cultural. 

STEAM em prática

A abordagem STEAM foi incorporada de maneira prática, relacionando cada área do conhecimento com problemas reais vividos pela comunidade:

  • Ciência: visitas à nascente, observação da poluição, comparação de relatos sobre a força das águas e análise dos impactos do desmatamento.
  • Tecnologia: uso de celulares e gravadores para documentar entrevistas com moradores, registrar vídeos de rodas de Toré e iniciar a edição de áudios e vídeos que podem resultar em produtos como documentários e podcasts.
  • Engenharia: planejamento de ações de reflorestamento e construção de um viveiro comunitário para acompanhar o crescimento de espécies nativas.
  • Arte: criação de murais sobre a relação da comunidade com a natureza, elaboração de pinturas corporais e participação no Toré como forma de expressão espiritual e artística.
  • Matemática: cálculos de áreas afetadas pela voçoroca, fenômeno grave de erosão do solo que abre crateras profundas devido à ausência de vegetação e à monocultura da cana.

A voçoroca tornou-se um dos principais temas estudados. Trata-se de uma erosão intensa causada pela chuva em solos desprotegidos, que pode abrir sulcos de vários metros de largura e profundidade. Na Terra Indígena Potiguara, esse processo ameaça rios, nascentes, plantações e até casas. Para os estudantes, estudá-la foi compreender ciência, mas também identidade. Proteger a vegetação e reflorestar mostrou-se uma prática ambiental e cultural.

Etapas e metodologias

O projeto foi estruturado em quatro etapas principais.

1. Investigação e Reconhecimento Cultural e Ambiental – entrevistas com anciãos e lideranças, registros audiovisuais e mapeamento de práticas tradicionais e problemas ambientais.
2. Ideação do Protótipo – oficinas, cartazes, mapas mentais e rodas de diálogo para transformar descobertas em propostas de produtos educativos.
3. Construção do Protótipo – etapa em andamento, com gravações em vídeo e áudio que formam um acervo inicial. Esses registros podem servir de base para documentários, podcasts, exposições e mapas vivos, ainda em fase de sistematização e organização.
4. Apresentação dos Resultados – compartilhamento contínuo da pesquisa na escola. 

As metodologias ativas foram fundamentais. A aprendizagem baseada em projetos permitiu que os estudantes investigassem problemas reais do território. A escuta sensível garantiu o respeito às falas dos mais velhos. O trabalho colaborativo estimulou a construção coletiva e a corresponsabilidade.

Eu atuei como curador e facilitador, oferecendo perguntas mobilizadoras e orientações, mas deixando espaço para que os jovens conduzissem suas próprias descobertas.

Parcerias que sustentam o projeto

Para avançar com o projeto, me propus pessoalmente a visitar diferentes instituições e profissionais, apresentando o que havíamos conquistado até então. O SESI apoiou o projeto promovendo caminhadas ecológicas em áreas degradadas. Nessas trilhas, além de observar a biodiversidade local, os estudantes praticaram o plogging, atividade que une exercício físico com consciência ambiental, recolhendo o lixo encontrado pelo caminho.

O Projeto Águas Potiguara orientou os estudantes sobre o desassoreamento de rios, que consiste na retirada de sedimentos acumulados, e sobre técnicas de recuperação de cursos d’água, mostrando como devolver vida a trechos antes comprometidos.

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O Replanta Mangue trouxe suporte técnico especializado, ensinando sobre o plantio e o monitoramento de espécies nativas. Também ajudou a estruturar e manter um viveiro de mudas dentro da comunidade, garantindo que o reflorestamento seja contínuo.

A Associação de Pescadores e Agricultores da Aldeia Jaraguá teve papel fundamental por seu conhecimento do território. Foram eles que indicaram as áreas mais críticas que precisavam de cuidado imediato e que continuam acompanhando os mutirões, assegurando que as ações não parem após cada etapa.

O ICMBio, junto com o Projeto Viva o Peixe-Boi-Marinho, contribuiu para a restauração de manguezais e restingas, ambientes essenciais para a reprodução de espécies e para a proteção costeira. Além de insumos, trouxeram conhecimento técnico, fortalecendo ainda mais as ações de preservação.

O que os estudantes dizem

Ao longo do percurso, os estudantes nomearam o que aprenderam e expressaram suas preocupações. Para Camilly Vitória, a poluição é a principal ameaça ao território. Yasmim Jordânia lembrou que proteger o rio, o mangue e os animais é também proteger a identidade do povo. Maria Izabela destacou a necessidade de maior engajamento comunitário no cuidado com o território. Essas vozes revelam que os jovens trouxeram para o projeto as questões mais urgentes da comunidade e assumiram papel ativo na busca por soluções.

Impacto e continuidade

Embora o projeto ainda esteja em curso e os produtos finais não tenham sido concluídos, já é possível observar impactos significativos. Os estudantes estão mais engajados com a pesquisa, desenvolvem habilidades de escuta e registro, fortalecem vínculos com os anciãos e se reconhecem como protagonistas da valorização da identidade Potiguara.

Outro aspecto central é que eles trouxeram para dentro da escola as principais preocupações da comunidade hoje, como a poluição das águas, o desmatamento, a degradação ambiental e a necessidade de maior engajamento no cuidado com o território. Essas vozes juvenis mostraram que aprender com o território significa também cuidar dele e assumir responsabilidades coletivas.

Esse olhar está ligado à cosmovisão indígena, que é a maneira própria de compreender o mundo, unindo dimensões espirituais, sociais, ambientais e culturais. Para os povos indígenas, não há separação entre natureza, corpo, território e espírito: tudo está interligado e deve ser cuidado em conjunto. O projeto nasceu exatamente desse entendimento de que aprender não é apenas acumular informações, mas viver uma experiência integral, conectada ao território e às relações comunitárias.

Acervo

As gravações realizadas até agora representam um acervo em formação que servirá de legado para a escola e para o povo Potiguara. Mais que resultados prontos, o processo de aprender com o território, registrar memórias e discutir coletivamente o futuro já constitui uma transformação pedagógica e cultural.

Essa iniciativa também foi inspirada em uma experiência anterior premiada, o projeto “Super Atletas”, que promoveu a inclusão de estudantes com deficiência no paradesporto e transformou a rotina escolar e que venceu a 8ª edição do Prêmio Territórios, promovido pelo Instituto Tomie Ohtake. A nossa trajetória vem recebendo diferentes tipos de reconhecimento. Antes do Super Atletas, também conquistamos o Prêmio Territórios na edição anterior, com o projeto “Reflorestamento, conservação e conscientização ambiental da Aldeia Jaraguá: os escolares protagonizam”.

Agora, com o projeto “Corporeidade, território, ancestralidade e ecossaberes”, conseguimos consolidar uma abordagem curricular sensível ao território e que fortalece ainda mais o protagonismo juvenil.

Mais que um projeto, trata-se de uma prática contínua que fortalece a identidade cultural dos estudantes Potiguara, promove protagonismo juvenil e integra saberes tradicionais com abordagens contemporâneas. A cada roda de conversa, a cada plantio, a cada dança do Toré, recomeçamos. Não há fim, apenas novos começos.


Emerson Felipe da SIlva

Pedagogo, profissional de educação física, doutor em Ciências da Educação, escritor e pesquisador. Atua há 25 anos na educação básica, sendo 20 deles dedicados à educação escolar indígena.

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