Projeto na Bahia une matemática, língua portuguesa e valorização da autoestima
Para mostrar a matemática para além dos números, projeto de escola em Madre de Deus (BA) incentiva estudantes a ter um novo olhar sobre finanças, empreendedorismo e autoestima
por Gislene de Jesus Lima
5 de setembro de 2025
Em uma pequena ilha da Baía de Todos os Santos, cercada pelo mar e conectada ao continente por uma ponte, está Madre de Deus, o menor município da Bahia em extensão territorial. Reconhecida por suas belezas naturais e por abrigar pouco mais de 19 mil habitantes, a cidade guarda também muitas histórias e possibilidades. É nesse cenário que desenvolvo minha prática como professora do 5º ano na Escola Municipal Nossa Senhora Madre de Deus.
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Criei o projeto “Educação Empreendedora – Jovens que Transformam o Futuro” e contei com o apoio fundamental das professoras Patricia Reis, Valéria Cruz e Jonahildes Reis, minhas auxiliares de classe, para implementá-lo. A iniciativa envolveu 51 alunos do 5º ano B e do 5º ano D, entre 10 e 12 anos, em atividades de educação financeira e empreendedorismo. Eles aprenderam a relacionar conceitos de planejamento, poupança e consumo consciente com situações reais do dia a dia.
Meu objetivo era ensinar, de forma prática e próxima da realidade, o valor do dinheiro, a importância de gastar com consciência, o hábito de poupar e a aplicação do raciocínio matemático em contextos cotidianos. As atividades, realizadas semanalmente, foram integradas às aulas de matemática e incluíram momentos voltados ao desenvolvimento do espírito empreendedor.
Como tudo começou
A ideia surgiu de uma observação em sala de aula: muitos alunos apresentavam dificuldade em relacionar cálculos a situações reais, como operações de compra e venda. Essa insegurança impactava a autoestima, pois muitos não acreditavam ser capazes de aprender ou resolver problemas.
Quis, então, ampliar horizontes, mostrando que a matemática pode ser uma ferramenta para a vida cotidiana e para a realização de sonhos. Ao longo do projeto, os estudantes escreveram, calcularam, planejaram e criaram, descobrindo que eram capazes de superar obstáculos e de se perceber como protagonistas do próprio aprendizado.
Etapas estruturadas
Para começar, apliquei um diagnóstico sobre conhecimentos prévios de dinheiro, cálculos e hábitos de consumo. Percebi que muitos ainda não tinham consolidadas as habilidades básicas de matemática aplicada e apresentavam dificuldades em usá-la de forma prática, como calcular troco ou organizar pequenos orçamentos. Em língua portuguesa, havia a necessidade de avançar na escrita e na organização de ideias.
Com base nesse mapeamento, organizei o projeto em cinco etapas:
Etapa 1
Nesta fase, buscamos motivar os alunos com a atividade “Eu tenho um sonho”. Cada estudante pôde compartilhar suas aspirações pessoais e sonhos de consumo, refletindo sobre desejos, necessidades e prioridades.
A proposta aproximou a temática da realidade dos jovens, permitindo que trabalhassem com situações do dia a dia, como planejar o valor de um produto, calcular custos e lucros ou organizar estratégias de divulgação.

No diário de bordo, registraram suas ideias de forma estruturada: descreveram os produtos, identificaram o público-alvo, planejaram formas de divulgação e justificaram suas escolhas de preço e produção. Esse processo fortaleceu tanto o raciocínio matemático aplicado quanto a capacidade de organização e expressão escrita.
Etapa 2
Para tornar o processo de aprendizagem mais dinâmico e próximo da realidade dos estudantes, utilizamos jogos educativos e materiais recicláveis como ferramentas de apoio. Ambos se mostraram recursos valiosos para construir conhecimento de forma lúdica, acessível e significativa.
Os jogos foram criados a partir de situações do cotidiano, como simulações de compra e venda, cálculos de troco e organização de pequenos orçamentos. Nessas atividades, além de exercitar o raciocínio lógico, os alunos também precisavam trabalhar em grupo, o que estimulou a cooperação e a troca de ideias para superar os desafios propostos.
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Já os materiais recicláveis tiveram um papel especial ao aproximar o aprendizado da vivência prática e da consciência ambiental. Com garrafas plásticas, tampinhas, caixas de papelão e potes reaproveitados, os estudantes confeccionaram suas próprias “moedas” e “cédulas” para simulações de mercado e montaram pequenas bancas de produtos fictícios para treinar o ato de vender e comprar. Esse recurso não apenas facilitou a compreensão de conceitos matemáticos e financeiros, como também despertou a criatividade e reforçou valores de sustentabilidade.
Etapa 3
Nesta fase, realizamos oficinas criativas nas quais os estudantes idealizaram produtos e serviços utilizando materiais de baixo custo e reutilizáveis. Surgiram propostas como artesanato, lembrancinhas, bijuterias e até receitas culinárias simples.
A dinâmica teve início com uma pergunta disparadora: “Qual é o seu sonho e o que você precisa para realizá-lo?”. Esse momento inicial foi essencial para despertar o interesse e estimular a reflexão sobre metas pessoais e os caminhos necessários para alcançá-las. Ao compartilhar seus sonhos, os alunos perceberam que transformar ideias em realidade exige planejamento, organização de recursos e, muitas vezes, o apoio de outras pessoas.
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A partir dessa reflexão, trabalhamos o conceito de que ninguém realiza um sonho sozinho. Esse foi o ponto de partida para apresentar a proposta do empreendedorismo coletivo, incentivando a colaboração e o trabalho em equipe. Assim, os estudantes foram organizados em grupos de afinidade, reunindo colegas com interesses semelhantes ou ideias de negócio próximas.
Cada grupo passou a planejar o seu próprio comércio, registrando no diário de bordo as etapas de um plano de negócios simplificado: escolha do produto, cálculo de custos, definição de preços, estratégias de divulgação e simulação de vendas. As ideias variaram entre doces, artesanatos e pequenas lembranças, sempre pensadas a partir da realidade e da criatividade dos alunos.
Os estudantes assumiram diferentes papéis, como vendedores, divulgadores e organizadores, vivenciando na prática o funcionamento de um empreendimento. Além de desenvolverem competências matemáticas e de linguagem, puderam experimentar a importância da cooperação, da honestidade e da responsabilidade no processo de realização de um sonho coletivo.
Etapa 4
Chegou o momento de elaborar um plano de negócios simplificado, adaptado à faixa etária dos alunos. As ideias foram registradas em um diário de bordo, utilizado como instrumento de organização, reflexão e planejamento. Esse registro permitiu integrar as três áreas do conhecimento propostas pelo projeto: Língua Portuguesa, matemática e Competências Socioemocionais.
Um dos exemplos mais marcantes foi o do grupo que decidiu vender brigadeiros. Eles começaram escolhendo um nome para o negócio e listando os ingredientes necessários: leite condensado, chocolate em pó, manteiga e granulado. Em seguida, calcularam os custos. Cada lata de leite condensado custava R$ 6, o chocolate em pó R$ 8 e o granulado R$ 4. Com esses itens, estimaram a produção de aproximadamente 50 brigadeiros.
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No diário de bordo, registraram o custo total de R$ 18,00 e dividiram pelo número de unidades produzidas, chegando ao valor aproximado de R$ 0,36 por brigadeiro. Depois, definiram que venderiam cada unidade a R$ 1,00, calculando um lucro de R$ 0,64. Ao multiplicar pelo total produzido, perceberam que, se vendessem todos, alcançariam um lucro de R$ 32,00.
Esse exercício despertou grande interesse da turma, pois mostrou, de maneira prática e concreta, como o planejamento financeiro pode ajudar a visualizar resultados futuros e a transformar ideias em realizações.
Etapa 5
Não podíamos nos esquecer do marketing e da comunicação. Nessa etapa, os alunos criaram cartazes, folders e até simulações de redes sociais para divulgar seus produtos. A fase incentivou a oralidade e a produção textual, além de promover uma leitura crítica sobre consumo e publicidade.
Mercado de ideias
A culminância do projeto aconteceu no pátio da escola, com a Feira dos Jovens Empreendedores, quando os alunos do 5º ano B e D montaram barraquinhas e apresentaram seus produtos à comunidade escolar. Cada grupo organizou seu espaço e expôs os materiais preparados ao longo do processo.

A atividade contou com grande participação de colegas, professores e funcionários e será retomada neste mês de setembro com o mesmo objetivo de aplicar na prática os conhecimentos de educação financeira e estimular o espírito empreendedor.
Impactos na aprendizagem
A feira teve como diferencial a criatividade dos estudantes e a valorização da cultura local. Entre os produtos, destacaram-se colares e pulseiras confeccionados com búzios, marisco presente na comunidade pesqueira de Madre de Deus, além de pulseiras com fitas coloridas e bolsas de pano reaproveitadas de calças usadas.
Durante a implementação, enfrentamos desafios como dificuldade em operações matemáticas, timidez para expor ideias e limitação de recursos. Aos poucos, muitos alunos se sentiram motivados a apresentar propostas, defender preços e explicar estratégias, desenvolvendo confiança e habilidades de argumentação oral. Para apoiar esse processo, apostei na aprendizagem colaborativa e valorizei a criatividade acima dos resultados financeiros.
Esse projeto só aconteceu porque a gestão e a coordenação sempre apoiaram, os colegas professores contribuíram, a comunidade participou com entusiasmo e os pais confiaram no nosso trabalho. Mas quem fez tudo ganhar vida foram os alunos, que mostraram que sonhar e aprender juntos pode transformar o futuro.
Resultados
A iniciativa teve impacto importante na autonomia, criatividade e consciência financeira dos estudantes. Muitos ampliaram a produção de textos e fortaleceram a confiança ao perceber que eram capazes de criar e gerir suas próprias ideias.
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Um caso marcante foi o de um estudante que, mesmo inseguro no início, conseguiu planejar seu comércio, calcular custos e lucros e organizar a apresentação do produto. Ao ver o trabalho exposto na feira, sentiu orgulho e satisfação, reconhecendo que era capaz de transformar uma ideia em realidade.
A escola também se tornou um ambiente mais colaborativo e inspirador, fortalecendo vínculos com as famílias e estimulando outros professores a adotar práticas inovadoras. Acredito que esse projeto deixa como legado o fortalecimento de competências acadêmicas e socioemocionais e o engajamento dos estudantes em ações que impactam positivamente toda a comunidade.
Gislene de Jesus Lima
Professora da rede municipal de ensino em Madre de Deus/BA, com mais de 10 anos de experiência na educação básica. Atua no desenvolvimento de projetos pedagógicos voltados para a valorização da cultura afro-brasileira, cidadania e combate ao racismo, a exemplo do Miss Black. Mestra pela UNILA (2022), dedica-se à formação docente e a práticas pedagógicas inovadoras. Fundadora da Associação Cultural Mulheres de Palmares, promove ações sociais, culturais e artísticas em comunidades em situação de vulnerabilidade.





