Projeto percorre culturas africanas para mudar a visão de estudantes sobre suas identidades
Projeto ganhou notoriedade nas redes sociais e engajou estudantes e professores de diversos lugares do Brasil
por Lavínia Rocha 15 de dezembro de 2023
Intitulado “África: um continente diverso”, o projeto, com a turma do 5º ano, surgiu a partir das expectativas da lei 10.639 sobre o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira e com o objetivo de sondar as ideias pré-concebidas sobre a África e a cultura negra para, em seguida, construir novas possibilidades de reflexão e crítica em conjunto com os alunos. Ao ver um tuíte do professor Diony Mattos comparando as visões dos alunos sobre a África antes e depois das aulas, a professora de Português e eu decidimos criar o projeto interdisciplinar.
O principal objetivo era o de transformar a imagem e ampliar a visão dos alunos sobre a cultura africana e afro-brasileira, além de construir e fortalecer a identidade de alguns alunos que ainda não se viam como crianças negras. Em alinhamento com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), o foco se deu em habilidades como identificação de processos de formação de culturas (EF05HI01), opinar e defender um ponto de vista (EF35LP15), entre outras.
A ideia era que os alunos pudessem criticar as próprias percepções, compreender a importância da participação nas aulas, aproveitar a leitura de um conto e aproximar os laços ao ouvir histórias familiares.
Ponto de partida
Eu sou a professora Lavínia Rocha. Durante a execução do projeto, estava lecionando no Colégio Frederico Ozanam, em Belo Horizonte (MG), em 2022, ministrando aulas de História para alunos do 5º e 8º ano do ensino fundamental. Estou em sala de aula desde 2021.
Partindo das ideias da escritora, professora e teórica feminista bell hooks no livro “Ensinando a Transgredir”, a metodologia utilizada em sala valoriza a presença de cada aluno e reconhece que todos contribuem e influenciam para a dinâmica da sala de aula.
A execução do projeto teve como facilitador o apoio e a autonomia oferecidos pela coordenação e direção, e também a parceria da professora Sther Moutinho, de Língua Portuguesa, que estimulava a continuidade dos debates e que trouxe uma literatura que ia ao encontro da proposta. Foram fundamentais a parceria e o diálogo com as famílias e a abertura ao novo dos alunos, que estavam dispostos a refletir e criticar as próprias ideias pré-concebidas.
O projeto também se propôs a superar alguns dos desafios da educação pós-pandemia. O primeiro ano de retorno foi um desafio no sentido de recuperar hábitos de leitura, estudo, convivência, além das questões emocionais. Em um momento de grandes transformações, as aulas tradicionais não atingiam os objetivos esperados de uma educação de qualidade, de modo que o projeto coloca os alunos como protagonistas do processo; eles refletiram sobre suas próprias ideias, fizeram pesquisas, convidaram familiares a fazer parte do processo e analisaram a própria trajetória de transformação.
Na preparação para o projeto, fomos construindo aberturas para o novo e para conceitos antirracistas. Estudamos povos indígenas, amarelos e marrons. A primeira civilização africana estudada foi o Egito, quando simulamos a mumificação de um aluno com a ajuda dos outros. Foi uma aula coletiva que nos ajudou a pensar outras formas de entender a morte e a religiosidade. Após um longo processo de conhecer novas culturas e novas formas de enxergar o mundo, trabalhamos aspectos religiosos do Brasil contemporâneo; estudamos as religiões cultuadas no Brasil e cada aluno ficou responsável por estudar mais profundamente uma delas e apresentar sua pesquisa.
Em seguida, demos início ao projeto de fato. Ao entrar no capítulo sobre o continente africano, construímos um mapa mental no quadro com as imagens que tínhamos de África. A estratégia foi deixá-los confortáveis para serem verdadeiros e expressarem sentimentos e ideias sem qualquer julgamento.
As aulas seguintes foram focadas na história pré-colonial. Lemos e debatemos textos propostos pelo material didático utilizado na escola. Em seguida, trabalhamos a civilização Iorubá: exploramos mapas, analisamos a arte, refletimos sobre a religião dos orixás e vimos vídeos que trouxessem esses elementos.
Foi interessante articular conhecimentos prévios. Os alunos compararam a importância da oralidade para os iorubás em contraposição à relevância da escrita para outras civilizações, e acessaram o conhecimento prévio que tinham sobre candomblé e umbanda ao tocarmos na religião dos iorubás. Como tarefa, cada aluno escolheu dois países africanos para pesquisar e compartilhar com a turma, a intenção era eliminar a ideia que alguns tinham de que a África era um país e compreender um pouco sobre a diversidade do continente.
Explorando elementos culturais
Durante as aulas de Língua Portuguesa, a turma leu o conto “Na sombra do baobá”, de Estela Barbieri e Fernando Vilela, que trabalha o conceito da oralidade. Os alunos construíram um baobá em miniatura com materiais recicláveis e ouviram histórias de algum parente mais velho, reproduzindo a cena do conto. Para finalizar o projeto, os baobás foram levados para a escola e compartilhamos as riquezas das histórias de cada família.
Encerramos o trabalho compreendendo a herança cultural africana no Brasil, percebendo a presença da oralidade e vendo elementos importantes, como turbante, brincos, pente-garfo. Ao final, refizemos o mapa mental para analisar as diferenças.
Apoio interdisciplinar e impactos no engajamento
Eu e a professora de Língua Portuguesa estivemos em contato durante todo o projeto, que era interdisciplinar e envolvia a leitura do conto e a confecção do baobá com as histórias. Precisamos alterar a estratégia em alguns momentos para garantir que a maior parte dos alunos fizesse corretamente. Também demos instruções e tutorias mais específicas e alteramos a data de entrega para flexibilizar para alunos com alguma dificuldade no momento de concluir o trabalho. Os alunos se engajaram, trouxeram pesquisas, compartilharam ideias com as turmas, divertiram-se com a leitura do conto e analisaram o próprio processo ao longo do trabalho.
O projeto foi um sucesso. Ao construirmos o mapa mental final, eles mesmos perceberam o quanto o repertório havia sido ampliado. Na avaliação final, souberam relatar a experiência e o quanto haviam sido transformados pelo projeto. Já estávamos satisfeitas com os resultados, mas o projeto de repente teve um alcance estrondoso além dos muros da escola. Um vídeo postado em minhas redes viralizou e alcançou milhões de pessoas pelo mundo.
Professores se sentiram inspirados e reproduziram a dinâmica, vários meios de comunicação entraram em contato pedindo entrevistas, e a TV Globo esteve na escola para fazer uma matéria. Os comentários elogiosos às crianças serviram como um reforço positivo jamais imaginado e eles se sentiram ainda mais valorizados e felizes com a transformação que vivenciaram a partir do projeto.
Lavínia Rocha
É escritora, palestrante, criadora de conteúdo e professora de História licenciada pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), além de pós-graduada em Prática e Docência de História. Vencedora do prêmio Perestroika para professores criativos, destaca-se nas redes sociais divulgando uma metodologia dinâmica e divertida. Começou a escrever aos 11 anos e é autora de 14 livros, incluindo "O Mistério da Sala Secreta", "Entre, Corra e Pule: Aventuras (Nada) Virtuais pela África" e a trilogia "Entre 3 Mundos", além de participar de coletâneas. "Lia Rocha" é o pseudônimo da autora para livros com temáticas do universo adulto.