Teatro ajuda estudantes a debater bullying e outros temas difíceis
Alunos de ensino fundamental em escola de São Roque (SP) contam com o apoio de integrantes do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente para montar peças e levar debates à comunidade escolar
por Ana Paula Belmino Duarte 25 de junho de 2024
Sempre acreditei na educação e na arte como instrumentos de transformação. Por muitas vezes, usei recursos teatrais para contextualizar temas específicos com meus estudantes. Há um ano, quando cheguei do Rio de Janeiro na cidade de São Roque, interior de São Paulo, para ministrar aulas de língua portuguesa na EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Professor Tibério Justo da Silva, trouxe essa ideia para a minha carga horária de projetos. Apresentei à gestão o Projeto TBT – Tibério no Teatro –, que foi imediatamente aceito.
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Notei que o bullying era uma prática muito comum na escola. A fim de proporcionar a reflexão e buscar formas prevenir novos casos ocorram, o projeto nasceu com o intuito de, entre outras coisas, libertar os estudantes do estigma de que estar na escola é somente uma obrigação. Por meio de atividades teatrais no contraturno escolar, o Tibério no Teatro proporciona senso de pertencimento aos estudantes do 7º ano ao 9º ano, investindo na educação socioemocional, na conversa sobre temas difíceis e no reconhecimento e combate às violências.
A dramatização é uma atividade de grande poder educativo e enriquecedor, por isso o projeto conta com oficinas preparatórias para noções básicas de teatro, desde a história de seu surgimento até técnicas de palco e roteiro escritos pelos alunos. Atualmente, com 53 integrantes, todos têm oportunidade de organizar, construir e integrar a sua linguagem a situações de diálogo altamente significativas. Cada um desenvolve sua criatividade, expressa talentos, faz escolhas e adquire aprendizado por meio da expressão artística.
Primeiros passos
No início, os alunos mais motivados foram selecionados, mas o objetivo era envolver também aqueles que, de alguma forma, causavam desequilíbrio ao ambiente escolar; alunos cuja participação poderia beneficiar sua aprendizagem e comportamento. As aulas englobam jogos teatrais, dinâmicas de desinibição e experimentação de conceitos, atividades em grupo, vivências e pesquisas.
Só que não tínhamos sala para desenvolver o projeto. Meu gestor tentou reorganizá-las para que tivéssemos algum espaço disponível, mas a princípio foi em vão. A escola tem muitas turmas e isso era impeditivo para iniciar os encontros. Ele, então, brincou, dizendo que só poderíamos fazer as oficinas embaixo de uma árvore do estacionamento – e, quando deu por si, lá estávamos iniciando as aulas. Essa árvore se tornou um ponto de reflexão em momentos desafiadores, marcando o início do que estamos construindo.
Foi naquele local que também, criamos nossas primeiras ações e não nos deixávamos abater quando a chuva atrasava nossos planos. Nós nos reuníamos quando a chuva dava uma trégua. E assim ficamos, por uns meses, sem desistir. Aos poucos, fomos imprimindo nossa identidade, ganhando espaço (inclusive físico, com uma sala emprestada) e desenvolvendo parcerias dentro e fora da escola.
Apoio dos profissionais do Sistema de Garantia de Direitos
Sempre acreditei que ninguém faz nada sozinho e que é preciso estreitar a rede que faz parte da escola. Eu já trabalhei no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e vejo nos profissionais do SGDCA (Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente) um grande apoio. Tanto que o carro-chefe do projeto é a peça “Bullying é coisa séria”, composta de cenas que retratam diferentes tipos de bullying, como o físico, o verbal e o virtual.
Durante a criação, e mesmo depois, os estudantes têm encontros periódicos com o psicólogo do CRAS da região, a fim de conversar sobre o assunto e entender melhor os efeitos que essas violências podem causar.
O bate-papo os prepara para um debate com outros estudantes da rede: já apresentamos a peça na prefeitura de São Roque e na Câmara de Vereadores (onde recebemos moções honrosas), e devemos, agora no segundo semestre de 2024, começar a levar o espetáculo, seguido dessa proposta de conversa “de estudante para estudante”, a outras escolas do município, públicas e privadas.
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Sabemos que os jovens se sentem melhor e mais acolhidos quando se expressam e são igualmente acolhidos. Tamanho é o estímulo dos estudantes que esse combo, peça e debate, ganhou o nome de “Fala sério! Bullying? Tô fora!”.
Todos os dias, durante um mês, os estudantes selecionavam frases contra o bullying e escreviam nos quadros auxiliares em cada sala de aula da escola. Paralelamente, foi criado um mural coletivo, cuja proposta era que os estudantes da escola escrevessem o que quisessem sobre o assunto ou como se sentissem a respeito.
Foi incrível e impactante testemunhar tantas frases de incentivo, motivação aos que sofrem violências e, ao mesmo tempo, ler denúncias sendo feitas. Como resultado desse trabalho, fomos reconhecidos com o prêmio Educação para a Gentileza e Generosidade, e queremos que a turma se torne propagadora da cultura de paz também fora da escola.
Clique na imagem para conferir uma galeria de fotos:
O que é preciso para realizar o projeto?
Trabalhamos com foco em acolhimento, respeito, gentileza, segurança, escuta ativa, generosidade, liberdade de expressão de ideias e pensamentos. Escutar e entender o que o outro quer e precisa é um dos fatores primordiais para o bom andamento do projeto. A valorização de como cada um é e o respeito por isso faz com que tenhamos relacionamentos sadios e sinceros dentro do “TBT – Tibério no Teatro”. Eu prezo muito por isso. Prezo muito por isso.
O projeto se descentralizou da minha figura de professora e se dividiu em muitas lideranças, que protagonizam e se responsabilizam por suas áreas afins. Vale ressaltar que as lideranças foram escolhidas pelo próprio grupo, já que primamos sempre pela autonomia dos participantes nos processos.
Com a peça, foi possível propor e desenvolver outras ações em nossa escola, sempre com intuito de conscientizar e levar à reflexão toda a comunidade escolar, tais como:
- “Um dia de batalha para muitos de guerra – ação antirracista no Tibério”, que mostrou, por meio de várias manifestações artísticas, a força e a grandeza da cultura negra e suas vertentes, como o hip hop;
- “Água – preservar para não faltar”, ação para conscientizar sobre a importância de economizar a água do planeta.
Percebemos que, além das peças que encenamos (entre elas, além “Bullying é coisa séria”, fizemos “Deus é negro”, “A corrente do bem” e “Abuso não é brincadeira”, esta última a pedido do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, o CMDCA), como as outras atividades causavam impacto em nossa escola e que conseguimos, juntos, atingir outros estudantes.
Para nós, é fundamental a participação das famílias. Por isso criamos o “Show de Talentos”, onde as famílias puderam participar e conferir os talentos de dentro e fora da escola, em clima de festa e alegria, coisa que não se vivia há alguns anos. Isso nos impulsionou a fazer o evento “Uma noite estrelada”, que reuniu mais de 150 pessoas da comunidade, em uma quinta à noite chuvosa na escola, para assistir as apresentações dos seus filhos e filhas do TBT.
São encontros como esse que mostram como o projeto atinge as famílias positivamente, por meio das transformações vistas em suas crianças. Meus alunos me ensinam, todos os dias, a amar mais e a querer um mundo melhor para todos nós.
Conexão com a BNCC
Este projeto está alinhado com as orientações curriculares, como a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) de Arte. O teatro, em particular, é utilizado como uma ferramenta pedagógica para promover a cidadania e ampliar o repertório cultural dos estudantes. De acordo com os PCNs de Arte, o teatro visa desenvolver um maior domínio corporal, tornando-o expressivo, aprimorando a verbalização, aumentando a capacidade de resposta a situações emergentes e melhorando a organização temporal.
A arte como metodologia de ensino traz diversas expectativas e possibilidades. Ela permite chamar a atenção para temas específicos, abordar questões polêmicas, incentivar a reflexão e o questionamento de padrões estabelecidos. Além disso, promove o trabalho em grupo, o respeito às diferentes formas de pensar, e o contato com diversas manifestações culturais. Ao trabalhar com a diversidade, direitos e deveres, pensamento crítico, protagonismo, lideranças positivas e o cuidado de si e do outro, a arte enriquece significativamente o processo educativo.
Assim, a proposta não só enriquece a formação artística dos estudantes, mas também contribui para o seu desenvolvimento integral, alinhando-se com as diretrizes curriculares nacionais e promovendo uma educação mais completa e inclusiva. Por meio da arte, buscamos preparar os alunos para os desafios do século 21, capacitando-os a serem cidadãos ativos, críticos e criativos em uma sociedade em construção.
Ana Paula Belmino Duarte
Formada em pedagogia pela Universidade Veiga de Almeida e licenciatura em linguagens pela FASESP (Faculdade Sesi de Educação). Especializada pela FAMEESP (Faculdade Metropolitana do Estado de São Paulo) em gestão, inspeção e supervisão escolar, neuropsicopedagogia e metodologia do ensino das artes, cursa especialização em conciliação e mediação de conflitos. Tem curso de extensão de justiça restaurativa pelo IFSP (Instituto Federal de São Paulo). Trabalhou no CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) durante oito anos, atuando no SCFV (Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo). Atualmente, trabalha há um ano como professora de língua portuguesa na EMEF Prof. Tibério Justo da Silva, onde atua com o Projeto TBT - Tibério no Teatro, que recebeu o prêmio Educação Para Gentileza e Generosidade em âmbito nacional e duas Moções Honrosas na cidade de São Roque (SP).