Uruguai: consenso cria condições para adoção sistêmica de tecnologia na escola
Em entrevista ao Porvir, representante do Plano Ceibal detalha ações da implementação da política pública que já distribuiu mais de 2,8 milhões de dispositivos e levou internet a todas as escolas uruguaias
por Vinícius de Oliveira 15 de agosto de 2023
No Uruguai, um programa educacional que hoje é elogiado internacionalmente começou com um erro. Em 2007, como você conheceu no Guia Tecnologia na Educação, produzido pelo Porvir, teve início o Plano Ceibal (sigla em espanhol para Conectividade Educativa de Informática Básica para Aprendizagem Online), uma política pública abrangente e pautada no diálogo entre diferentes esferas do governo e da sociedade responsável por universalizar acesso a dispositivos, plataformas de conteúdo e de gerenciamento de aprendizagem.
O Plano Ceibal tem como uma de suas principais características entregar um dispositivo para cada professor e cada estudante, e assim, promover a inclusão digital também das famílias de baixa renda. Antes do programa, apenas 5% dos lares mais pobres tinham computador contra 56% dos mais ricos. Logo no começo, tão logo foi atingida a marca de um milhão de laptops XO distribuídos (modelo durável e de baixo custo, US$ 100, desenvolvido pelo cientista Nicholas Negroponte no MIT, Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA, com apoio de empresas de tecnologia), a diferença foi reduzida para 11 pontos porcentuais, com o computador colorido chegando a 76% dos lares de baixa renda. Até 2022, foram 2,8 milhões de dispositivos entregues e 100% das 2.993 escolas com rede Wi-Fi, segundo dados do próprio Ceibal.
Os dados tornam quase que impossível não olhar para trás e reconhecer os feitos do programa. Só que a ordem de implementação trouxe dificuldades iniciais: os dispositivos foram entregues antes da formação dos professores, o que não impactou as práticas nem a aprendizagem. Quinze anos depois a iniciativa uruguaia continua a servir de alerta para atuais experiências em curso no Brasil: tanto para o caso de troca de livros didáticos impressos por digitais na rede estadual de São Paulo, quanto para futuros planos de tecnologia municipais e estaduais que devem surgir como consequência de investimentos anunciados pelo governo federal na última semana.
Novos investimentos do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento |
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De acordo com o MEC (Ministério da Educação), na área de inclusão digital e conectividade, o investimento previsto é de R$ 27,9 bilhões, sendo R$ 20,3 bilhões entre 2023 e 2026, para universalizar a conectividade em 138 mil escolas públicas do ensino básico e conectar 24 mil unidades básicas de saúde. Tais ações buscam ampliar o acesso à internet por parte de professores e estudantes. |
Na entrevista que você lê abaixo, Mariana Montaldo, responsável por relações institucionais do Plano Ceibal, detalha como foram os primeiros passos do programa, como é a atual política de distribuição e manutenção de dispositivos e como é o diálogo da instituição com professores e universidades. Atualmente, conta a representante, o Uruguai passa por uma reforma curricular que abre espaço para o ensino de competências em detrimento ao mero foco no conteúdo. E a tecnologia é parte integrante desse esforço.
Porvir – Pensando no começo da trajetória do Ceibal, o que chegou primeiro, a tecnologia ou a formação de professores?
Mariana Montaldo – Na verdade, essa foi uma grande lição aprendida dentro do Ceibal, porque os computadores foram entregues antes que houvesse uma formação adequada para os professores. E isso foi um problema porque os professores receberam os dispositivos em 2008, quando o uso de tecnologia era muito menos comum do que atualmente. O Facebook não era tão popular e o iPhone havia sido recém-lançado pela Apple. Dizemos aqui que esse foi o erro fundamental do Ceibal, que logo percebeu que a tecnologia deve caminhar o mais próximo possível da formação docente para que seu uso seja bem-feito.
Porvir – Qual o foco dessa formação docente?
Mariana Montaldo – A formação de professores e o diálogo com eles não se trata tanto de uma formação instrumental, que envolve apenas o uso de plataformas ou dispositivos, mas sim sobre como integrar esses dispositivos de maneira pedagógica. Ou seja: como se faz para utilizar um dispositivo, um software em um projeto pedagógico? Nessa abordagem, a tecnologia assume o papel do que chamamos de “alavanca digital”, sendo um elemento que auxilia a melhorar, fortalecer e ampliar os tempos de aprendizagem.
Porvir – Por mais que tenham sido momentos distintos, como o Uruguai conseguiu criar uma visão compartilhada com professores sobre o que seria o uso ideal da tecnologia na educação?
Mariana Montaldo – Com um grande esforço e uma relação próxima com os professores. Por meio de acordos nos níveis estratégicos e de implementação, todos os projetos que são desenvolvidos recebem o respaldo do sistema educacional. A partir da nossa perspectiva e do nosso conselho diretivo, composto pelo nosso presidente, o presidente do Ceibal, o diretor da ANEP (Administração Nacional de Educação Pública), o ministro da Educação e Cultura e um representante do ministério da Economia e Finanças, todas as decisões estratégicas recebem apoio de todos os interessados e das instituições envolvidas.
A partir desse ponto, a coerência se espalha e, além disso, outro aspecto em que investimos muito é ouvir as necessidades dos professores.
Porvir – Quais são?
Mariana Montaldo – Ano após ano, perguntamos aos professores ‘quais são suas maiores necessidades?’, ‘que tipo de formação desperta interesse?’ E não há apenas uma única formação, mas diferentes opções pelas quais os professores podem optar e montar seus próprios trajetos de aprendizado. Dessa forma, oferecemos uma ampla variedade não somente de temas, mas também de formatos, ou seja, combinações entre encontros presenciais, recursos digitais e aprendizado online, para que cada um possa montar o quebra-cabeça da maneira que melhor lhe convier e que mais se adapte às suas necessidades.
Porvir – No Uruguai, como a ideia de tecnologia educacional convive com o lado analógico das escolas e do currículo?
Mariana Montaldo – Um ponto-chave é que buscamos não contrastar o analógico com o digital, mas sim que sejam complementares. Existem situações nas quais os elementos digitais fortalecem e auxiliam bastante – por exemplo, quando alguém não pode comparecer às aulas ou não tem acesso a materiais impressos. A tecnologia amplifica consideravelmente o alcance, porém isso não significa que os elementos analógicos, como no caso dos debates sobre os livros em São Paulo, não possam coexistir com o formato digital, muito pelo contrário.
Trabalhamos com uma abordagem de complementaridade: não debatemos entre um e outro, mas sim que são complementos, adequados para diferentes situações e contextos. Existem questões para as quais um ou outro formato é mais apropriado. A proposta é amplificar as aprendizagens e fazer com que a tecnologia seja um facilitador e intensificador do aprendizado, sem eliminar o valor daquilo que já funciona. Ou seja, ela é apenas um complemento.
Porvir – A tecnologia educacional sempre evolui e, por isso, demanda investimentos constantes. Em termos de plataformas, o que foi desenvolvido internamente, o que foi adquirido no mercado comercial?
Mariana Montaldo – Atualmente, possuímos um ecossistema de plataformas bastante amplo, com 11 plataformas. Nenhuma delas foi desenvolvida internamente. São plataformas que foram selecionadas por meio de licitações públicas abertas e depois passamos a trabalhar bastante em contextualizar suas ferramentas.
É bastante incomum adquirirmos o serviço ou a plataforma e a implantarmos como está. Pelo contrário: selecionamos do mercado aquilo que consideramos mais adequado para o nosso contexto. Sempre em coordenação com o sistema educacional, realizamos adaptações de diversos tipos.
Porvir – Poderia exemplificar?
Mariana Montaldo – Por exemplo, temos uma plataforma de linguagem que adquirimos de um fornecedor específico. Nesse caso, modificamos muitos textos e áudios para que se adequassem ao nosso registro do espanhol rioplatense, que é diferente do caribenho. Além disso, incluímos textos de autores locais para contextualizar de acordo com os programas, conteúdos e a nossa cultura. Trabalhamos muito na contextualização das plataformas, mas não no seu desenvolvimento. Desenvolver plataformas não é uma tarefa custosa, existem muitas opções no mercado disponíveis e para nós, a capacidade de contextualização é fundamental.
Porvir – E como são os programas de tecnologia específicos para atender crianças com deficiência?
Mariana Montaldo – Nós possuímos uma equipe interdisciplinar no Ceibal chamada CeRTI, que é o Centro de Referência de Tecnologias para a Inclusão. Essa equipe é especializada exatamente no que chamamos de rampas digitais, ou seja, são como rampas que permitem o acesso a um espaço físico. Bem, eles constroem essas rampas para garantir que o acesso aos conteúdos e à tecnologia seja igualitário, independentemente das possibilidades ou necessidades especiais que um estudante possa ter.
O que fazemos é analisar cada caso individualmente e projetar um plano no qual fornecemos diferentes recursos, como mouses adaptados, tecnologias assistivas, diversos tipos de software e hardware, que permitam atender a essas necessidades. Isso pode incluir desde leitores para baixa visão até mouses com vibração para crianças com dificuldades motoras, teclados maiores e uma variedade enorme de soluções.
O CeRTI trabalha em colaboração com organizações locais, pois não somos especialistas em definir todo esse ecossistema e em saber o que é mais adequado ou o que precisa ser desenvolvido para cada estudante, porque as necessidades são particulares e individuais. Com isso, é criado um conjunto de recursos personalizado para cada estudante, garantindo que todos tenham as mesmas oportunidades.
Porvir – E quanto aos dispositivos? A proposta sempre considerou oferecer um computador para cada estudante ou começou nas pelas mãos de professores? Como está hoje?
Mariana Montaldo – A abordagem um a um (um dispositivo para cada estudante) foi exatamente a inovação que se destacou em relação a outras propostas de uso de tecnologia no Uruguai. Anteriormente, existiam o que chamamos de laboratórios de informática, onde havia alguns computadores e os estudantes frequentavam por um tempo específico, ao lado de um professor de informática, para realizar certas atividades.
A inovação trazida pela abordagem um a um foi justamente o modelo em que cada estudante e o professor tinham seu próprio computador e podia levá-lo para casa. Os computadores foram distribuídos de forma simultânea, ou seja, não foram primeiramente entregues aos professores e depois aos estudantes. Assim, atendemos cada rede educacional com seus professores e alunos ao mesmo tempo, tornando o desdobramento simultâneo. Isso funcionou bem até que conseguimos abranger todo o país.
Atualmente, cada aluno do sistema público já possui seu dispositivo há anos, assim como seus professores. Além disso, também fornecemos conectividade nas escolas e outros recursos.
Porvir – Como o Uruguai dá sustentação a esse programa de um computador por estudante? Como é o processo de manutenção dos computadores?
Mariana Montaldo – Esse é um tema extremamente importante ao projetar um programa de implementação tecnológica em grande escala: o suporte e a manutenção dos dispositivos. Logicamente, os computadores ou laptops podem quebrar e nem sempre as famílias têm acesso ou oportunidade para consertá-los. Às vezes, isso não é uma prioridade, e em certas situações ocorrem imprevistos.
Por isso, é fundamental para o sucesso do projeto que os dispositivos estejam em boas condições. Desde o início, há uma área de suporte e manutenção no desenho institucional, que se encarrega de reparar os equipamentos. Esse custo não é assumido pelas famílias, pois já está previsto no orçamento desde o desenho da política pública.
Existem centros de reparo em cada departamento do país, sendo o maior deles nas instalações do Ceibal, em Montevidéu (capital uruguaia). As pessoas enviam ou levam seus dispositivos para este local e eles são devolvidos consertados. Para aqueles que moram longe, temos um acordo com Correo Uruguayo, o serviço postal público, que envia e retorna os dispositivos sem custos adicionais. Ou seja, a pessoa não paga nem pelo envio para a reparação. Todos esses custos são cobertos pelo Ceibal, e os computadores retornam consertados aos estudantes.
Porvir – Como é feita a troca de modelos de dispositivos de acordo com a etapa de ensino?
Mariana Montaldo – Os estudantes recebem um computador ou tablet quando começam o primeiro ano da escola. No quarto ano, eles trocam para um laptop. E então, quando passam para o ensino médio, recebem outro modelo de laptop com recursos aprimorados, maior capacidade de trabalho e software adicional. Ao término do ensino médio, o computador permanece com o estudante, mas já não faz mais parte do programa Ceibal.
Porvir – Quando um novo professor começa sua carreira, como ele é preparado no Uruguai e que tipo de influência isso tem nesse processo?
Mariana Montaldo – Estamos em uma fase de transformação curricular no Uruguai, com uma grande mudança nos programas. Estamos migrando do ensino baseado em conteúdo para um ensino fundamentado em competências. Isso acarreta uma mudança na estrutura curricular da formação docente. Inicialmente, a presença da Ceibal nessa estrutura era limitada, mas hoje em dia, os professores iniciantes, recém-formados, podem ter a formação do Ceibal creditada em suas carreiras, como tecnologia educacional, que é uma eletiva.
Durante o último ano de estudo, eles podem começar a se familiarizar e a aprofundar mais seus conhecimentos e uso do que é feito pelo Ceibal. Além disso, nos centros de formação educacional do Uruguai, os professores já têm contato com as tecnologias do Ceibal. Após a formatura, existe a opção de continuar sua formação em serviço, que é parte do plano de formação que mencionei anteriormente.
É um desafio, mas como mencionei, estamos em uma fase em que isso está ganhando maior relevância nos currículos de formação docente. Assim, esperamos poder não apenas abranger o último ano, mas também os anos anteriores, para alcançar mais estudantes.
Porvir – Quais são os impactos esperados para essas mudanças curriculares?
Mariana Montaldo – Nos programas escolares, a diferença agora é que, além de ainda haver conteúdos como existia anteriormente, o foco está nas competências. Existe um marco curricular nacional que abrange 10 competências gerais, e em seguida, cada unidade curricular, ou seja, cada disciplina, agora possui suas competências específicas. Os conteúdos servem como veículo para desenvolver essas competências.
Esse é o novo enfoque e em relação à estrutura curricular da formação em educação, acredito que esteja ligada justamente a mudanças de paradigma no ensino de pedagogia e didática haverá mudanças ou acréscimos significativos.