Escolas indígenas valorizam diálogo com a comunidade e o respeito à cultura local
No mês que celebra os povos originários, conheça escolas no Amazonas, Paraná e Mato Grosso que ampliaram o tempo integral e fortalecem a conexão entre a sala de aula e o território
por Fernanda Nogueira
18 de abril de 2025
Imagine um lugar onde o currículo é construído em diálogo com a comunidade e o aprendizado nasce de pesquisas e projetos que valorizam a cultura local. Essa é a realidade de três escolas indígenas – no Paraná, Amazonas e Mato Grosso – que têm tamanhos diferentes, mas em comum promovem boas práticas ao unir inovação e respeito à ancestralidade.
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O Colégio Estadual Indígena Cacique Gregório Kaekchot, na cidade de Manoel Ribas, é a maior escola indígena do Paraná. Atende 934 alunos do Povo Kaingang da educação infantil ao ensino médio, incluindo educação especial, EJA (Educação de Jovens e Adultos) e ensino profissionalizante. A escola funciona dentro da comunidade indígena, a cerca de seis quilômetros da área urbana do município.
A Escola Baniwa Eeno Hiepole de Tempo Integral está localizada na aldeia Canadá, na Terra Indígena Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM). Lá, 150 estudantes do Povo Baniwa se dividem em turmas desde a educação infantil ao ensino médio.
Em Campo Novo do Parecis (MT), a pequena Escola Municipal Indígena Wazare, da etnia Haliti-Paresi, funciona na Terra Indígena Utiariti. Inaugurada em 2012, foi construída por lideranças indígenas locais e, atualmente, conta apenas com quatro alunos de 4 a 10 anos em uma classe multisseriada que vai do infantil ao 4o ano do ensino fundamental.
Segundo o Censo Escolar 2024, 3.608 escolas ofereceram educação escolar indígena no ano passado, de um total de cerca de 179 mil escolas de educação básica no país. Quase todas, 97%, localizam-se em áreas rurais e 56% têm até 50 alunos matriculados. As matrículas nessa modalidade chegaram a 294 mil, ante 240 mil há dez anos. A maioria dos estudantes (38%) está nos anos iniciais do fundamental.
Neste etapa de ensino, 44% das escolas indígenas têm acesso à internet, sendo 20% com internet para alunos; 12% têm biblioteca ou sala de leitura e 7% contam com laboratório de informática. Do total de matrículas na educação indígena, 7% eram de turmas de educação integral, contra 21% no total de matrículas do país.
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Robótica e tecnologia
Ponto de referência da comunidade indígena, o Colégio Estadual Indígena Cacique Gregório Kaekchot tem uma gestão compartilhada com a comunidade local e suas lideranças. Isso inclui decisões sobre o currículo, calendário, projetos, cursos, contratação de professores e funcionários – a maior parte deles indígenas – e infraestrutura. Além das atividades escolares, em seu espaço acontecem também comemorações, encontros, reuniões, acesso a benefícios sociais e de saúde, prevenção de doenças e de violências.
A escola segue a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e documentos norteadores do estado, e a gestão dá autonomia aos professores para adaptação dos conteúdos à realidade Kaingang. Isso é feito em atividades de matemática, geografia, história, biologia e educação física, por exemplo. “O que é mais fácil e usual de se adaptar é a língua materna e itinerários formativos do ensino médio”, explica a diretora Cristiane Laureth. Já as aulas de língua portuguesa seguem mais o currículo comum.
Iniciados há três anos, os cursos de linguagem de programação e habilidades básicas de informática fazem sucesso entre os alunos. A maioria deles têm celular, acesso à internet e afinidade com a área de tecnologia, incluindo a robótica. As aulas fazem parte do currículo do ensino médio e são extracurriculares para os anos finais do ensino fundamental.
Bilíngue, a escola mantém a mesma carga horária para as aulas de língua kaingang e portuguesa – cada uma com seu respectivo professor. A partir do sexto ano, também são oferecidas aulas de inglês.
Uma turma de formação de docentes (ensino médio integrado ao curso profissionalizante de magistério bilíngue) começou em 2023 com cerca de 60 alunos. A segunda turma começou neste ano. “Eles gostam bastante. A escola é uma fonte empregadora”, conta a diretora.
Entre as datas comemorativas, estão o Dia Nacional dos Povos Indígenas (19 de abril), o Dia da Interação com os Anciões (26 de julho), também conhecido como Dia dos Avós, – ocasião em que os mais velhos compartilham saberes tradicionais, falam sobre sua história e espiritualidade –, o Dia dos Jogos Indígenas (15 de agosto) e o Dia do Égoro (14 de novembro). Égoro é o termo Kaingáng para as “comidas do mato”. Nesta data, os estudantes saem para procurar o broto da samambaia, alimento típico de sua cultura e aprendem a prepará-lo.
“Cada professor busca sua maneira de trabalhar esses temas, todos importantes para a comunidade. Além disso, o espaço fora da escola é usado para pesquisas. As crianças aprendem a fazer armadilhas, pesca, arco e flecha e balaios. Tudo direcionado pelos professores indígenas”, afirma Cristiane. A escola tem ainda uma mostra cultural uma vez por ano, com atividades culturais, jogos, brincadeiras, comidas típicas, pintura corporal, dança, teatro, trilha ecológica, caça e pesca e artesanato.
O Colégio Estadual Indígena Cacique Gregório Kaekchot não participa do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), segundo a diretora, mas acompanha o desempenho dos alunos por provas estaduais. “É o que nos dá um parâmetro. Acompanhamos essas notas e temos tido melhorias.”
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Educação integrada
A Escola Baniwa Eeno Hiepole implementou o currículo de tempo integral no ano passado, atendendo a uma reivindicação da comunidade iniciada em 2015 – entre muitas outras lutas por melhorias educacionais. Os estudantes passaram a ficar sete horas na escola desde a educação infantil até o final do ensino fundamental. O ensino médio é ministrado como uma sala de extensão de uma escola matriz, a Escola Estadual Nossa Senhora da Assunção, também localizada em São Gabriel da Cachoeira (AM).
“Na nossa perspectiva, enquanto indígenas, o modelo de educação é integrado”, explica Dzoodzo Baniwa, assessor de educação escolar indígena da Secretaria Municipal de Educação e Educação Escolar Indígena, que atuou como professor na escola por dez anos.

Outra conquista foi o reconhecimento de que a sala de aula não é o único espaço de aprendizagem. Para a comunidade, toda a aldeia é um ambiente educativo. “A sala não é suficiente para adquirir a aprendizagem e para uma abordagem educacional mais significativa para o povo e o território.”
A escola trabalha em parceria com diversas instituições externas, incluindo a FEUSP (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo). Desde 2021, faz parte das Escolas 2030, programa global que dissemina boas práticas de educação com referência ao ODS 4 (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável) implementado pela organização de empreendedorismo social Ashoka e pela FEUSP.
Baseada na experiência de outra escola inovadora do território, a Eeno Hiepole começou a trabalhar com ensino e pesquisa-ação. Há aulas expositivas em sala de aula, mas também estudos científicos e interculturais de acordo com interesses da comunidade. Os projetos incluem ações de saneamento básico comunitário, geração de energia sustentável, monitoramento ambiental e climático, manejo da fauna, mapeamento do território, entendimento da biodiversidade local, uso de canoa movida a energia solar, segurança alimentar, criação de peixes e de aves, produção de mel, entre outros.
Um dos projetos de destaque é o de comunicação, que introduz a educação digital por meio do uso do celular como ferramenta de criação e expressão. Os estudantes produzem textos e vídeos, além de aprenderem a língua portuguesa. A maioria é falante da língua baniwa, que também é ensinada na escola por docentes específicos. “A escola tem o papel de servir de espaço de ensino e aprendizagem, mas também de trazer soluções para os desafios do território”, afirma Dzoodzo.
O corpo docente é composto por 22 professores indígenas, com diferentes níveis de formação: magistério indígena, licenciatura e pós-graduação. Dois professores possuem título de mestrado – um em ciências ambientais, o próprio Dzoodzo, e outro em ecologia.
A escola enfrenta dificuldade de participar de avaliações externas por questões logísticas, mas usa a BNCC como referência para estabelecer metas e indicadores. Os alunos são avaliados com provas escritas, orais e sociais. “Muitos indicadores ainda não condizem com a nossa realidade. Lutamos para que um dia exista um sistema de avaliação mais próximo”, explica o professor.
“Passamos a entender a importância da escola e da educação. A educação é uma ferramenta. A mesma estrutura utilizada no passado para negar nossa cultura e língua agora é usada como ferramenta para valorizá-la e fortalecê-la.”
Como inovar sem prejudicar a tradição?
Sala anexa da Escola Municipal de Educação Indígena Bacaval, a pequena Escola Municipal Indígena Wazare é onde a professora Valdirene Avelino Zakenaezokero leciona todas as disciplinas para uma turma com apenas quatro alunos. Entre os conteúdos, está o ensino da língua Haliti Zako, pertencente ao tronco linguístico Aruak.
“Uma vez por semana temos duas aulas de língua materna para valorização da cultura, da língua. Ensinamos o alfabeto, como se fala o nome dos seres vivos, como em uma disciplina normal, só que tudo baseado na língua materna, por exemplo os números, as cores, os animais.” Ela faz registros para montar um livro didático.
Valdirene conta histórias infantis para os estudantes sobre a mitologia de seu povo, como o surgimento das pessoas, dos alimentos, da mata e do sol. “Temos histórias sobre tudo isso. Eu conto para eles na aula de língua materna.” O currículo do município é adaptado à realidade local, o que inclui o uso de tecnologias. “A gente anda junto com a tecnologia. Não tem como ficar para trás. Tem vários materiais didáticos no notebook, como jogos e slides.”
A própria comunidade forneceu à escola o notebook, o projetor e o som. Ajuda, ainda, a manter o espaço. “Nossa escola é feita de palha de guariroba. A comunidade ajuda na hora de construir, de renovar. É uma arte. Ajuda na estrutura, a comprar materiais.” A escola recebeu internet do município no ano passado, mas antes disso, o acesso era fornecido pela comunidade, que também paga a merendeira.
Valorizar a cultura tradicional é uma das metas da escola. Entre os exemplos estão a alimentação típica — como carne de ema com beiju (massa feita de mandioca) —, as bebidas tradicionais à base de mandioca e milho, as vestimentas culturais e a pintura corporal. “Eles precisam saber o que significa, como faz. Trabalho com tinta natural. Ensino como fazer. Também levo os alunos todo ano à aldeia Ponte de Pedra, onde se originou nosso povo. Foi de lá que viemos.”
A avaliação é feita por provas, pelo desenvolvimento em sala de aula e evolução nas atividades. A secretaria também realiza avaliações na escola. Desde o ano passado, há uma parceria com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), que trabalha a temática do empreendedorismo. “Foi bom no primeiro ano, com artesanato sustentável. Esse ano vamos continuar com o tema do artesanato criativo.”
No total, o município tem três escolas matrizes de educação indígena e oito salas de aula anexas em dez aldeias diferentes, todas da etnia Haliti-Paresi. São 97 alunos em turmas da educação infantil até os anos iniciais do ensino fundamental, em salas multisseriadas. Alunos dos anos finais do fundamental e do ensino médio estudam em municípios ou distritos próximos.
As escolas contam com 11 professores, entre formados em cursos superiores, estudantes de pedagogia, técnicos e agentes educacionais, segundo Claudiane Quezo Zaezaé, diretora de Educação Indígena de Campo Novo do Parecis. “Dentro da sala de aula, nós damos prioridade para a nossa cultura. Introduzimos o currículo não indígena dentro da nossa educação.”
Em maio, as escolas promovem os Jogos Interescolares Indígenas. “Só participam os alunos da rede municipal indígena. Concentramos em uma só aldeia, onde fazemos todos os nossos jogos tradicionais.”
Exercício de poder
As comunidades indígenas têm seu direito assegurado pela Constituição Federal de usar a língua materna e processos próprios de ensino e aprendizagem na educação escolar, de acordo com Elie Ghanem, professor da FEUSP, responsável pelo grupo de pesquisa da faculdade Ceunir (Centro Universitário de Investigações em Inovação, Reforma e Mudança Educacional) e coordenador do programa Escolas2030.
A participação ativa dos integrantes da comunidade também é muito importante para que eles possam determinar como será a educação. “Eles não têm obrigação legal de se escolarizar, embora seja muito visível, intensa, a busca da escolarização por muitos povos e comunidades indígenas. Há procura, entre outras coisas, porque isso pode significar condições mais vantajosas para a interação com a chamada sociedade envolvente. Pode significar o domínio de saberes, o exercício de poder, como forma de ampliar a igualdade entre eles e os outros.”
Entre os desafios enfrentados está a necessidade de se trabalhar com comunidades bilíngues ou multilíngues. Isso dificulta o processo de alfabetização, o que acontece também em escolas urbanas por outros motivos. “É um desafio elevado. O ingresso na linguagem escrita é extremamente complexo, difícil de ser compreendido, com muitas variações e condicionamentos. É um desafio enorme para os falantes da língua portuguesa. Isso se maximiza na alfabetização de indígenas cuja primeira língua não é o português.”
Nesse contexto, é preciso valorizar as línguas indígenas, promovendo sua documentação, identificação e usos para produção de material didático, além da circulação das linguagens escrita e falada desses idiomas. “Isso depende de uma atuação-chave dos próprios professores indígenas”, explica Elie.
Para garantir a continuidade dos estudos após a educação básica, é necessário ampliar o acesso dos jovens indígenas à educação superior, além de incentivar a oferta de licenciaturas interculturais.. Elie informa que algumas universidades têm se destacado nesse caminho, como a UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), que já adotam vestibulares específicos para estudantes indígenas e desenvolvem programas de permanência estudantil.





