O que a história de duas mulheres negras ensina sobre educação e direitos humanos - PORVIR
Claudia Vasconcelos

Inovações em Educação

O que a história de duas mulheres negras ensina sobre educação e direitos humanos

Énia Lipanga, escritora e poeta moçambicana, e Paula Beatriz de Souza Cruz, professora e diretora escolar, compartilharam um pouco de suas trajetórias marcadas por resistência, acolhimento e coragem no 6º Fórum Internacional Senac de Educadores

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 12 de setembro de 2025

Quase 8 mil quilômetros e 12 horas de voo separam São Paulo de Maputo, capital de Moçambique. Mas a longa distância é encurtada quando duas mulheres negras, uma de cada país, se reconhecem em suas trajetórias na defesa dos direitos humanos e no idioma que as conecta. A coragem se torna uma ponte que as une: Énia, na defesa pelo direito das mulheres, e Paula, na luta pelas pessoas LGBTQIAP+.

Énia Lipanga é escritora, poeta e ativista moçambicana. Formada em Direito e em Jornalismo, é reconhecida por sua atuação na igualdade de gênero e inclusão de pessoas com deficiência, além de coordenar estratégias comunitárias para a transformação social. É autora do primeiro livro de poesias em braille de Moçambique, “Sonolência e Alguns Rabiscos”, lançado em 2021.

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Paula Beatriz de Souza Cruz é pedagoga, pós-graduada em Gestão Educacional e Docência no Ensino Superior, com 37 anos de atuação na educação. Primeira mulher trans a assumir a direção de uma escola pública no Brasil, tornou-se referência nacional na defesa da inclusão do nome social de estudantes transexuais e travestis. Seu trabalho foi reconhecido com o Prêmio Darcy Ribeiro de Educação. No Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo onde vive e trabalha, a comunidade  deu seu nome a uma rua. Desde 2013, dirige a Escola Estadual Santa Rosa de Lima.

Juntas, elas abriram o 6º Fórum Internacional Senac de Educadores, na segunda-feira, 8. Lado a lado, Énia e Paula, na mesa mediada por Andreia Peretti Sangaletti, gerente da Unidade Senac Marília (SP), compartilharam experiências de vida, educação e resistência.

O Fórum também marcou o lançamento do livro “Grandes Temas da Educação – Sete olhares sobre escola e futuro”, publicado pela Editora Senac São Paulo. A obra reúne reflexões apresentadas no Fórum Internacional Senac de Educadores e conta com contribuições de nomes como Eugênio Bucci, Jerá Guarani, Renato Janine Ribeiro e Graça Machel.

A programação está disponível online

O simbolismo do balão amarelo

Ao auditório lotado de professores e gestores escolares na sede do Senac, em São Paulo, Énia dividiu com a plateia um poema que atravessou sua infância e, mais tarde, jogou luz sobre suas reflexões a respeito das desigualdades. Era “Menino Gordo”, de José Craveirinha (1922-2003), considerado o poeta maior de Moçambique:

Menino gordo comprou um balão
e assoprou
assoprou
assoprou com força o balão amarelo.

Menino gordo assoprou
assoprou
assoprou
o balão inchou
inchou
e rebentou!

Meninos magros apanharam os restos
e fizeram balõezinhos

Os versos de Craveirinha soavam como brincadeira para Énia na escola primária. Mas na vida adulta, ganharam outros contornos.

“Eu me considero um destes meninos magros que apanharam os restos e fizeram balõezinhos”, disse, ao relembrar de salas com mais de cem alunos, escolas sem carteiras ou banheiros e meninas sem condições de estudar durante o período menstrual, cenas infelizmente comuns em seu país.

“Uma das minhas experiências foi ir para a escola com o estômago vazio. Essa ainda é a realidade de muitas crianças em Moçambique”, lamenta.

No Brasil, a merenda escolar representa a principal refeição do dia para muitas crianças em situação de vulnerabilidade. No Rio de Janeiro, por exemplo, 56% dos estudantes da Região Metropolitana dependem da alimentação oferecida na escola, segundo dados do Observatório da Alimentação Escolar.

Questão de gênero

Énia também expôs as desigualdades de gênero que marcam o acesso à educação em Moçambique. “Nascer mulher em Moçambique já é, por si só, uma sentença”, assegurou em recente entrevista.

Quase 40% da população moçambicana é analfabeta. A taxa de analfabetismo entre as mulheres é de 49,4% e 27,2% entre homens, informa o Censo de 2017. 

As desigualdades educacionais atingem meninos e meninas de formas diferentes. “Muitos rapazes abandonam a escola porque precisam trabalhar para ajudar a família ou porque se perdem nas drogas e no álcool”, explicou. Já para as meninas, os obstáculos incluem normas sociais que priorizam a educação dos rapazes, casamentos prematuros e assédio sexual.

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O problema é estrutural. Em 2024, o ex-presidente moçambicano, Filipe Nyusi, apontou a gravidez precoce e as uniões prematuras como alguns dos principais obstáculos para a igualdade de gênero no país. Estima-se que, todos os anos, mais de 100 mil adolescentes deixam a escola por esses motivos, mostra um estudo do Unicef disponível neste e-book

O país tem o quinto maior índice de casamento infantil do mundo. Até 2019, a lei permitia a união de homens adultos com menores de idade. A legislação passou a punir com pena de até 12 anos e multa o adulto que se casar com uma criança. “Eu trabalhei muito para que essa lei fosse revista”, conta Énia.

A escritora contou ter sido vítima do decreto que obrigava adolescentes grávidas a estudar apenas à noite, política revogada em 2018. A medida ampliava desigualdades e contribuía para a evasão escolar, em um país onde, segundo as Nações Unidas, pelo menos uma em cada dez adolescentes têm um filho antes dos 15 anos.

Respeito às diversidades

Paula Beatriz comentou que as injustiças sociais também incluem a  violência de gênero dentro das escolas brasileiras, e costurou o relato de Énia com seu engajamento pelos direitos LGBTQIAPN+. “Se o emocional, o social e o cultural estão fragilizados, o cognitivo não se sustenta. Uma criança que não se sente acolhida não aprende o alfabeto. Violências geram violências. Muitas vezes começam na família e se perpetuam na escola. O nosso trabalho é romper esse ciclo.”

Nestes 30 anos ligados à educação, Paula busca garantir inclusão, respeito e acolhimento no espaço escolar, com ênfase nos direitos da população LGBTQIAPN+ e na construção de uma escola aberta às diferenças.

“Diversidade de gênero nas escolas não ensina ninguém a ser trans. Quando tratamos desse tema, estamos enfrentando o assédio e a violência que muitas meninas sofrem. A palavra fundamental para a nossa sobrevivência hoje é respeito. Não é sobre aceitar ou não aceitar o outro. É sobre respeitar.”

Assista ao webinário do Porvir sobre questões de gênero.

Paula sugere: quando se pensa em diversidade, é importante ampliar o olhar para além das questões de gênero e sexualidade. “Muitas vezes, ao restringir o debate a esses temas, surgem resistências que já levaram escolas e professores a serem perseguidos por simplesmente abordarem o assunto.”

Por isso, de acordo com a diretora, a diversidade também deve ser entendida como a valorização de talentos, habilidades e formas de aprender, como prevê a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e os currículos das redes de ensino.

“Está presente nas opiniões, nos temperamentos, nas experiências de vida. Cada pessoa traz a sua singularidade, e isso também é diversidade”, diz. “Todos aprendem com alguém e todos ensinam algo a alguém. Até uma criança de seis anos, que parece ainda não ter experiência, pode ensinar muito a um adulto. Esse é o valor de uma escola aberta às diferenças.”

Obstáculos a superar

Em 2018, o governo de Moçambique alterou suas leis para garantir que todas as crianças pudessem frequentar a escola gratuitamente até a nona classe e incluiu o ensino pré-escolar como parte oficial da educação, informa o Banco Mundial.

Apesar desse avanço legal, a trajetória escolar no país continua marcada por grandes rupturas. Quatro em cada dez estudantes de 6 a 17 anos não chegam a concluir o ensino primário, e apenas um em cada quatro completa o ensino secundário.

Na educação infantil, a cobertura permanece limitada. Apenas 4% das crianças de 3 a 5 anos participam de programas formais de aprendizagem precoce. Já no terceiro ano do primário, apenas 5% das crianças conseguem ler e compreender um texto simples.

Muitas famílias não conseguem arcar com custos como material escolar, uniforme e transporte.

Énia citou o programa Eu Sou Capaz, lançado em 2021 pelo governo de Moçambique com apoio do Banco Mundial, que já alcançou quase meio milhão de adolescentes. A iniciativa oferece incentivos como uniformes e bicicletas para manter as meninas na escola, além de atividades de mentoria e formação em habilidades para a vida. Esse programa também passou a incluir os rapazes, como mostrou uma reportagem da TV Miramar, disponível no YouTube.

Educar para transformar

A fala de Énia, porém, não se limitou às feridas. Ela também trouxe caminhos que podem ser traçados em busca de justiça social. Contou da criação do Projeto Asas, que formou jornalistas comunitários, promoveu rodas de diálogo com líderes locais e deu câmeras a mulheres para que contassem suas próprias histórias. “Era uma comunicação da comunidade para a comunidade. Muitas vezes conseguimos resgatar meninas que estavam fora da escola e denunciar situações de violência.”

Comentou também a importância de projetos de arte e leitura. “Por não ter tido acesso a livros infantis, quando adulta pensei: ‘por que não criar espaços para que crianças tenham essa oportunidade?’ Hoje temos uma roda de leitura na Vila da Ponta Douro, onde muitas crianças têm contato com um livro literário pela primeira vez. São ao menos 12 títulos por ano.”

Ela vê na leitura uma das principais ferramentas de transformação. “Faço um sarau há 14 anos (Palavras são Palavras), que se tornou o primeiro palco de muitos poetas e talentos da periferia moçambicana. Conseguimos retirar vários jovens das ruas, da vulnerabilidade e até das drogas, para que tivessem um espaço de arte, expressão e respeito.”

Apresentação de Énia no TED Talks Maputo, em 2020.

Papel docente: presença e acolhimento

No Brasil, Paula também aposta na literatura como caminho de encantamento. Para aproximar as crianças dos anos iniciais do universo dos livros, costuma se vestir de bruxa e contar histórias na própria escola. Para ela, esse tipo de gesto traduz a essência da gestão escolar: a presença ativa no cotidiano. 

Mais do que cuidar do administrativo, defende que a prioridade deve ser o pedagógico, especialmente em um território como o Capão Redondo, marcado por desigualdades e vulnerabilidades sociais. Ali, a escola se torna ponto de apoio fundamental para as crianças e suas famílias. “Quando você é gestor de uma escola, precisa estar no pedagógico e não apenas no administrativo. O pedagógico é o coração que bombeia todos os outros processos da escola.”

Essa concepção se traduz na prática: “Eu não sou do gabinete. Sou aquela que sempre anda pela escola, acompanha as aulas, oferece apoio e devolutiva aos professores. As crianças sabem quem eu sou porque me veem circulando, próxima delas.”

Énia aproximou esse olhar da realidade moçambicana. Recordou que em sua trajetória foram as professoras que abriram caminhos, mesmo em condições adversas. “A primeira pessoa que olhou para mim e notou que talvez existisse ali uma artista foi uma professora, e foi uma mulher. Elas têm feito o seu papel, mas não é um papel fácil.”

Close das três palestrantes conversando no palco do 6º Fórum Internacional Senac de Educadores.
Claudia Vasconcelos

O depoimento ganha força diante dos dados do próprio país: em 2022, 47,3% dos docentes da educação primária em Moçambique eram mulheres, segundo o Banco Mundial. Embora elas representem ligeira maioria no primeiro ciclo do ensino primário (51%), sua presença diminui nos níveis subsequentes e nas zonas rurais, o que evidencia as desigualdades de gênero ainda presentes na profissão docente, como mostra o estudo “Perfil de Igualdade de Gênero de Moçambique”, do Ministério do Gênero, Criança e Ação Social.

Diante desse cenário, Énia destacou que a gestão educacional precisa ir além das salas de aula e alcançar também os espaços da comunidade. “Moçambique é um lugar onde resolvemos os problemas à volta da fogueira ou embaixo de uma mangueira. Se não tivermos esse diálogo fora, na comunidade, teremos dificuldades de ter um ambiente pleno dentro da escola.”

Para exemplificar esse olhar, ela destacou iniciativas que mostram como o acolhimento pode fazer diferença mesmo em contextos adversos. Um dos exemplos é o do professor Jaleia, de Quelimane, que se tornou referência no país pela forma como se aproxima dos estudantes com ao ensinar e celebrar a dança sempre com alegria.

Encerrando sua fala, Énia retomou a metáfora que guiou toda a sua apresentação e expressou seu maior desejo: “Que toda criança receba o seu balão amarelo inteiro, sem precisar catar retalhos.”


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educação antirracista, metodologias, socioemocionais

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