Um FabLab para inclusão de jovens, famílias e ex-presidiários
Em entrevista ao Porvir, a coordenadora Susan Klimczak explica como o FabLab localizado no South End Technology Center, em Boston (EUA), tornou-se um espaço de tecnologia que acolhe e integra a comunidade
por Vinícius de Oliveira
22 de outubro de 2019
Atualizado em 11 de fevereiro de 2025
O Porvir lamenta a morte de Susan Klimczak, coordenadora do Mel King FabLab, o primeiro FabLab do mundo, em Boston, nos Estados Unidos, onde atuou por mais de 20 anos. Relembre a entrevista que que a educadora de tecnologias e justiça social concedeu ao Porvir em 2019.
É pela aprendizagem criativa que Susan Klimczak acorda diariamente às 4 horas da manhã. Nos últimos 18 anos, é ela quem abre diariamente as portas do South End Technology Center e do FabLab Boston, o primeiro FabLab do mundo, em Boston, nos Estados Unidos, onde atua como coordenadora.
O espaço, que ocupa um conjunto residencial que quase foi transformado em estacionamento, tem como principal característica a inclusão. Além de oferecer atividades de ciência e programação para estudantes de escolas públicas, o local possibilita que universitários obtenham seu primeiro salário, que ex-presidiários aprendam a utilizar um computador e navegar na internet e que famílias cujos pais possuem múltiplos empregos encontrem um momento para socializar e fazer refeições ao lado dos filhos.
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Toda essa estrutura passa pelas mãos de Susan, que se dedica a tarefas diversas, como limpar o espaço, fechar as contas, arrecadar recursos, pagar salários, visitar escolas e dialogar com professores. Seu envolvimento com o South End Technology Center é tão profundo que ela até aprendeu a identificar os sinais de mau funcionamento da cortadora a laser, que insiste em travar de tempos em tempos.
Nesta entrevista, realizada durante a 2ª Conferência Brasileira de Aprendizagem Criativa, em São Bernardo do Campo (SP), de 18 a 21 de setembro, Susan explica como mobiliza a juventude e permite que os estudantes assumam o controle de sua própria aprendizagem, em um processo que surpreende até mesmo suas escolas. “Se você acolhe os jovens, oferece grandes expectativas, recursos e acesso às mais recentes tecnologias para que eles se expressem de maneira significativa, eles demonstram que são incríveis.. Na conversa abaixo, ela discute como isso é possível.
📸 Confira fotos do South End Technology Center no Instagram do Porvir

Porvir – Poderia contar a história do South End Technology Center?
Susan Klimczak – Ele foi uma ideia de Mel King, o primeiro afro-americano a concorrer a prefeito de Boston. Ele dedicou sua vida a iniciativas voltadas para a equidade e inclusão na esfera social, política e econômica da cidade. Muito conhecido por sua atuação em eventos de direitos civis, Mel também trabalhou no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), onde tinha um programa para ativistas, que estão sempre com muitas ideias na cabeça, mas não sabem muito bem o que fazer. Nunca dá tempo. Então ele criou um programa de bolsas que funcionava da mesma forma que a Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa, apoiando ativistas e permitindo que eles tivessem um ano para realizar seus sonhos.
Em 1997, ao se aposentar e retornar ao bairro South End, jovens da comunidade relataram a ele que não tinham acesso a computadores ou à internet. Além disso, os poucos espaços que ofereciam essa estrutura não acolhiam jovens negros. Mel pressionou pela criação de um conjunto habitacional para pessoas de baixa renda e, em um desses espaços, nasceu o Tent City. Em vez de se tornar um estacionamento, o local foi transformado em moradia.
Foi Mel quem decidiu abrir um centro de tecnologia em Tent City. O foco sempre foi a inclusão. Mel sempre foi muito ativo no MIT. Nos Estados Unidos, quando você se aposenta do cargo de professor universitário, tem direito a um gabinete e recebe algum dinheiro para fazer pesquisa. Mel disse que não precisava dessa quantia para si e preferia que o dinheiro fosse aplicado no aluguel do centro de tecnologia.
Ele conhecia Neil Gershenfeld, MIT Media Lab, que estava desenvolvendo um projeto para implantar laboratórios de fabricação digital (FabLabs) em diversas localidades. Gershenfeld tinha um financiamento da Fundação Nacional de Ciências (NSF, na sigla em inglês) destinado a projetos comunitários, e Mel o convenceu a instalar um desses laboratórios no South End Technology Center. Esse foi o ponto de partida para uma revolução que levou à criação de milhares de FabLabs ao redor do mundo.

Porvir – Como eram as atividades no início do South End Technology Center ?
Susan Klimczak – O espaço começou pequeno, com apenas uma sala, onde as pessoas aprendiam a consertar computadores. Quem consertava três equipamentos, podia levar um para casa. Muitos participantes eram estudantes universitários, especialmente da área de enfermagem e educação, que não tinham condições de comprar seus próprios computadores e viam ali uma oportunidade de aprendizado e acesso à tecnologia. Até hoje, somos um dos poucos FabLabs da região que oferece acesso gratuito e aberto à comunidade.
Porvir – Mais do que um espaço de criação, o centro se tornou um polo de mobilização social. Como isso acontece?
Susan Klimczak – Sempre houve uma forte conexão com os movimentos sociais. Muitos ativistas conhecem profissionais do FabLab e utilizam o espaço para confeccionar materiais de protesto. Em uma ocasião, durante o Dia de Finados em Boston, jovens usaram nossas instalações para produzir estênceis e imprimir ilustrações de caveiras para mais de mil pessoas.
Também desenvolvemos um programa de apoio às escolas. Quando começamos, a rede de escolas públicas de Boston estava defasada, com baixas expectativas em relação às crianças. Elas não ofereciam acesso à tecnologia, não tinham programas de ciências e nem verba de suficiente para computadores. Diante desse cenário, conversei com Mel e decidimos criar o programa “Learn to teach, teach to learn” (“Aprenda para ensinar, ensine para aprender”). O objetivo era capacitar uma massa crítica de jovens para que eles se tornassem embaixadores e exemplos capazes de transformar suas comunidades. Com o tempo, professores e famílias passaram a demandar mudanças tanto nas escolas quanto em casa. Os jovens começaram a se interessar mais por tecnologia, superando a falsa impressão de que ser inteligente e demonstrar interesse pelo tema não era algo valorizado.
Atualmente, o programa envolve 36 jovens que participam de atividades entre abril e junho. Aos sábados, temos a iniciativa “Como equipes podem fazer quase tudo”, que agrupa os participantes conforme suas habilidades e interesses em projetos de aprendizagem criativa. No verão, os jovens dedicam 25 horas semanais a projetos que buscam solucionar problemas das comunidades
Por exemplo, neste ano, alguns jovens investigaram a qualidade do ar nas regiões mais pobres de Boston. A poluição nessas áreas é agravada pelo fato de ônibus permanecerem com o motor ligado nas garagens e pela grande quantidade de avenidas com tráfego intenso. Foi então que eles desenvolveram um sensor capaz de medir as partículas de poluição suspensas no ar. Um estudo universitário utilizava uma peça de US$ 30.000, mas, no centro de tecnologia, os jovens descobriram um modelo similar que custava apenas US$ 30. Eles replicaram o estudo e constataram que seus resultados eram praticamente idênticos.

Porvir – Como os jovens são incentivados a ensinar os mais novos?
Susan Klimczak – Temos um clube de programação com atividades semanais. Os próprios jovens desenvolvem projetos que depois são utilizados por crianças. Durante o último mês do verão, eles viajam sozinhos, levando equipamentos para realizar oficinas em 25 organizações comunitárias, levando conhecimento sobre tecnologia e aprendizagem criativa para cerca de 600 crianças do ensino fundamental.
Muitas pessoas acreditam que esses jovens vêm das melhores escolas da cidade, mas apenas 25% deles estudam em instituições de alto desempenho. Meu esforço é atrair aqueles que frequentam escolas com baixo desempenho e que, muitas vezes, são ignorados pela população.
Porvir – Como você acompanha esse processo?
Susan Klimczak – Eu converso com os professores e visito algumas salas de aula durante o dia. Os meninos não podem fazer isso por conta própria. Eles ficam assustados porque há expectativas muito baixas em relação a eles. Podemos fazer isso? Eles passam metade do tempo praticando no South End Tech Center, mas, em algumas ocasiões, pegamos todos os materiais e vamos para o MIT, porque queremos desenvolver um senso de pertencimento. E eles estão com medo. Nossos pais também ficam assustados quando vamos ao Media Lab. Mas, depois de uma hora lá, eles já sabem onde pegar café e onde estão as coisas mais legais para brincar.
Porvir – Qual o segredo desse trabalho?
Susan Klimczak – Se você acolhe os jovens, oferece a eles grandes expectativas, recursos e acesso às mais recentes tecnologias para que se expressem de maneira significativa, eles mostram que são incríveis. No South End Center, eles assumem que podem trabalhar com a cortadora a laser, fazer impressões em 3D ou usar quaisquer equipamentos eletrônicos. Se querem fazer um projeto, nós tentamos entender da melhor maneira. Se precisam de um material específico, eu ligo para alguém e peço uma doação, nem que seja de US$ 30.
Alguns dias antes de vir ao Brasil, perguntei a dois jovens que chegaram para receber os últimos pagamentos como estava a escola. Eles disseram que era chata e que não aprendiam muito. Já no “Learn to teach, teach to learn”, eles não se sentem assim. Professores e diretores às vezes perguntam como é possível ver crianças com baixo desempenho fazerem trabalhos incríveis.
Outra coisa importante é que nós não focamos apenas na tecnologia e nas habilidades. Pensamos em criar um mundo que funcione para todo mundo, com o que chamamos de “tecnologias do coração”. Elas trazem o melhor de você como indivíduo, o melhor do seu relacionamento com outras pessoas, com a sua comunidade e o melhor do seu relacionamento com o planeta. E isso é muito importante. Quando surgem problemas, temos rodas de conversa para discutir como melhorar o programa.

Porvir – De habilidades básicas para a vida à fabricação digital. Como tudo isso funciona?
Susan Klimczak – No começo eu disse: “Bem, a impressão 3D está dominando o mundo e devemos oferecer isso a eles”. Eu imaginava que isso fosse feito de uma maneira muito prática, como habilidades de trabalho. Logo que comecei, percebi um efeito transformador. No primeiro dia, eles perceberam que poderiam criar coisas, fazer o que mais gostavam, uma sensação que diziam ter esquecido como era. Na prisão eles não tinham acesso a nenhum tipo de tecnologia e no centro gostaríamos que eles aprendessem a imprimir em uma impressora 3D. Muitos não têm renda e ali puderam criar presentes para os filhos, a namorada, a mãe ou quem quer que os tenha apoiado durante o tempo que estiveram presos.
Porvir – E quanto tempo dura o programa?
Susan Klimczak – É um programa de um mês que fazemos todos os anos, com um grupo de cinco a 12 integrantes. Estou tentando documentar isso, porque ninguém que eu conheça, exceto um cara que dirige um laboratório fabuloso na Irlanda, está fazendo um trabalho como esse. É um trabalho realmente importante e pode ter um efeito transformador. Alguns dos alunos montaram pequenos negócios. Eles vêm para o FabLab, pegam o arquivo do projeto que deixaram no servidor, imprimem, pintam e conseguem vender.
Também trabalhamos com famílias, porque muitas são de comunidades de baixa renda e precisam ter dois ou três empregos. Seus integrantes não conseguem fazer refeições juntos, e os pais ficam assustados com suas crianças jogando online. Nesse programa de aprendizagem criativa, recebemos pequenas doações para preparar refeições e reunir 10 famílias, que ali podem comer juntas e socializar.
Porvir – Com todas essas atividades, você consegue descansar aos finais de semana?
Susan Klimczak – Eu nunca me casei. Esta é minha família. Estas são as pessoas com quem passo o tempo todo. Trabalho sete dias por semana, levanto às 4 horas da manhã, chego ao Tech Center às 8 ou 9h, e as pessoas estão sempre por lá. Sempre tem algum equipamento ou servidor precisando de reparo, ou tem alguma crise precisando ser resolvida na comunidade. Quase sempre saio às 7 ou 8 horas da noite. Descanso por uma hora, ouço o noticiário e trabalho mais um pouco. Essa tem sido minha vida pelos últimos 18 anos, e eu realmente gosto do que faço.
* A Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa é apoiadora do Porvir
Atualizado em 11 de fevereiro de 2025
O Porvir lamenta a morte de Susan Klimczak, coordenadora do Mel King FabLab, o primeiro FabLab do mundo, em Boston, nos Estados Unidos, onde atuou por mais de 20 anos. Relembre a entrevista que que a educadora de tecnologias e justiça social concedeu ao Porvir em 2019.





