Pesquisa de alunos sobre desaparecidos na ditadura resulta em documentário
Professoras desenvolvem proposta pedagógica que resultou em documentário da turma do 8º ano sobre a importância da memória, da verdade e da justiça
por Carolina Piccarone Ellmann / Malu Vieira 22 de novembro de 2024
Será que a ditadura realmente terminou? Como é possível que algumas pessoas estejam desaparecidas até hoje? O desconforto e as dúvidas dos alunos do 8º ano da Escola Lumiar Pinheiros, de São Paulo (SP), mostraram que o tema merecia uma abordagem mais profunda. Decidimos então, mergulhar em uma investigação que revelasse os nomes, os rostos e as histórias dessas pessoas.
“Onde Estão?” é a pergunta que deu nome ao projeto e o norteou durante um trimestre em 2023. Desenhada de maneira transdisciplinar, a proposta contou com objetivos pedagógicos que envolveram compreensão crítica da história recente do Brasil, fortalecimento das habilidades de pesquisa, produção textual e análise de fontes, além do estímulo à empatia e o entendimento sobre direitos humanos.
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Nosso foco era que os estudantes conseguissem reconhecer a importância da memória, da verdade histórica e da justiça, onde o passado e o presente dialogam, ampliando sua visão de mundo. Para tanto, a compreensão sobre o período da ditadura militar foi fundamental. Entre 1964 e 1984, o país esteve submetido a um regime totalitário que prendeu ao menos 50 mil pessoas, torturando vinte mil delas.
Pesquisa sobre ditadura militar
O projeto teve início com a história de Maria Augusta Thomaz, uma das desaparecidas durante o período ditatorial. Inicialmente, os estudantes não receberam detalhes sobre o seu destino. Em vez disso, foram convidados a criar hipóteses sobre o que poderia ter acontecido com ela, o que despertou ainda mais a curiosidade e o pensamento crítico. Esse exercício foi fundamental para conectar os alunos ao tema de forma ativa, estimulando-os a refletir antes de conhecerem os fatos reais, gerando mais reflexão sobre o regime militar.
Na etapa seguinte, eles partiram para a pesquisa, utilizando materiais históricos previamente selecionados da Comissão da Verdade, adequdos para a idade e a compreensão dos estudantes. O objetivo era verificar suas ideias, comparando-as aos relatos reais e, assim, ajustando suas percepções iniciais. A metodologia de investigação guiada permitiu que se tornassem “detetives históricos”, papel que incentivou uma leitura analítica dos documentos.
➡️Confira o padlet do projeto, com referências e pesquisas
Para situar a ditadura militar brasileira no contexto geopolítico da época, a fim de ajudar a turma a entender os fatores externos e internos que contribuíram para o regime no Brasil, todos participaram de aulas com a professora Malu Vieira, que abordou o cenário político brasileiro, e de encontros com o historiador Gabriel Soares, que trouxe documentos da CIA (Central Intelligence Agency, CIA ou Agência Central de Inteligência, serviço civil de inteligência estrangeira do governo federal dos Estados Unidos encarregado de coletar e analisar informações de segurança nacional de todo o mundo).
Gabriel também apresentou informações históricas internacionais que demonstraram a interferência dos Estados Unidos na política da América Latina, dando aos alunos uma visão global do tema. A abordagem interdisciplinar foi crucial para que os estudantes conectassem história e geopolítica, ampliando sua leitura de mundo.
Na sequência, os alunos se dedicaram à pesquisa de materiais audiovisuais sobre a ditadura militar no Brasil, para debater sua adequação para diferentes faixas etárias. Pesquisamos documentários e vídeos, mas logo percebemos que não havia opções apropriadas para a faixa etária dos estudantes. A indignação deles ao constatar essa lacuna gerou uma motivação extra para o projeto: a criação de um projeto final. A atividade também proporcionou também uma reflexão crítica sobre a representação da história nos meios de comunicação.
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Para reforçar o conteúdo histórico, uma das atividades mais impactantes do projeto foi a visita ao Memorial da Resistência, maior museu dedicado à memória política das resistências e da luta pela democracia no Brasil. Foi uma experiência concreta e emocional, proporcionando uma visão mais sensível sobre o tema, uma etapa essencial para que pudessem “viver” o passado, reforçando a importância da memória e da preservação histórica. A metodologia da educação patrimonial, que conecta o aprendizado histórico ao patrimônio físico e cultural, criou uma experiência significativa de imersão ao contexto do regime ditatorial.
O próximo passo do projeto focou no desenvolvimento de habilidades jornalísticas (entrevista, produção textual e análise crítica): os alunos foram conversar com figuras importantes na luta pela memória e verdade. Previamente preparados, com perguntas que eles mesmos formularam depois do levantamento investigativo, entrevistaram a ex-presa política Dulce Muniz. Também fizeram uma videoconferência com Gabrielle Oliveira de Abreu, coordenadora de memória, verdade e justiça no Instituto Vladimir Herzog, que enfatizou a importância de lembrar para resistir e a continuidade dessa luta na atualidade. Ao trabalhar em equipe para compilar informações e redigir textos, os estudantes aprenderam sobre cooperação e construção coletiva do conhecimento.
Todos esses passos culminaram na produção coletiva de um produto final: um documentário para disponibilizar todo o conteúdo investigado. Utilizando ferramentas de edição e gravação, os alunos trabalharam coletivamente, aplicando a metodologia de Aprendizagem Baseada em Projetos. A proposta era criar um filme acessível e fiel aos fatos, com o objetivo de fornecer a outros jovens informações esclarecedoras sobre os desaparecidos políticos para seus pares.
O curta-metragem foi exibido internamente, e agora está disponível para os leitores do Porvir:
O documentário não só uniu todas as etapas do projeto em um resultado tangível, mas também deu aos estudantes um senso de autoria e protagonismo, reforçando sua responsabilidade pela mensagem transmitida.
Cada uma dessas fases permitiu que os alunos se aprofundassem em temas históricos e cívicos, compreendendo a importância de documentar a história de forma responsável e acessível para a sua geração.
Resultados alcançados
Para os estudantes, o projeto trouxe uma compreensão única da história recente do Brasil, mas, sobretudo, despertou um senso de empatia, justiça e responsabilidade social. A investigação sobre os desaparecidos da ditadura militar permitiu que os alunos fossem além da simples leitura de fatos e datas, imergindo em um período doloroso e muitas vezes ocultado.
Ao atribuir nomes e histórias às vítimas da ditadura militar, eles se conectaram com essas pessoas, compreendendo-as não apenas como figuras históricas, mas como indivíduos com sonhos, famílias e contribuições interrompidas.
➡️Confira o PDF com as evidências do projeto
O contato com o jornalismo investigativo também despertou nos alunos a importância da análise crítica e da verificação de informações. A experiência de pesquisar com rigor, confrontando hipóteses com documentos da Comissão da Verdade e revisando as próprias percepções, trouxe à tona a relevância da verdade e da responsabilidade no relato de fatos.
Esse processo de reflexão e reavaliação constante instigou uma prática que transcende o projeto: os estudantes passaram a questionar fontes, contextos e intenções não só no ambiente escolar, mas também em seus consumos cotidianos de mídia e informação.
Para a escola, o impacto foi igualmente significativo. O projeto criou um espaço no qual os temas sensíveis e difíceis puderam ser tratados com profundidade e respeito, inspirando toda a comunidade escolar a valorizar as memórias históricas.
A escola se fortaleceu como um ambiente que acolhe o protagonismo estudantil, fomentando discussões que respeitam o interesse e o engajamento dos jovens. A iniciativa mostrou que, ao dar voz aos questionamentos e às inquietações dos estudantes, é possível criar uma educação significativa que responde às necessidades de entendimento e conexão com o mundo real. Esse impacto, enraizado no processo de descoberta e sensibilização, deixou marcas duradouras: os alunos saíram do projeto com um olhar mais aguçado e reflexivo sobre a sociedade, compreendendo o peso da memória histórica e da justiça.
Carolina Piccarone Ellmann
Com mais de três anos de experiência na educação, ela é Professora Assistente na Escola Lumiar Pinheiros, onde aplica estratégias de aprendizado personalizado e desenvolvimento de projetos. Integra tecnologia e comunicação em suas práticas, conduzindo oficinas de redação e jornalismo investigativo para estimular o pensamento crítico e a expressão analítica dos alunos. Sua paixão está na interseção entre educação e educomunicação, áreas nas quais continua a se desenvolver profissionalmente.
Malu Vieira
Mestre em História Social pela USP e licenciada em História pela UNIFESP, possui 10 anos de experiência como educadora, atuando na educação formal e não formal com diferentes faixas etárias. Foi professora bilíngue no ensino fundamental e, recentemente, tem se dedicado ao patrimônio cultural imaterial e à formação de pesquisadores e realizadores audiovisuais indígenas.