‘É importante abordar de maneira crítica os argumentos’, diz pesquisador da USP sobre a guerra
Em entrevista ao Porvir, o cientista político Vicente Ferraro comenta como os educadores podem lidar com os conflitos em suas aulas, evitando dualismo e estereótipos
por Ruam Oliveira 4 de abril de 2022
É cada vez mais necessário estar atento à atualidade que invade as salas de aula, seja de maneira programada – dentro dos currículos –, seja por meio de discussões suscitadas pelos próprios estudantes.
Diante dos conflitos que agora ocorrem entre Ucrânia e Rússia, é papel de educadores não propagar estereótipos entre as populações e não “cancelar” culturas – como foi visto recentemente em relação a clássicos do cinema e da literatura russa.
Vicente Ferraro, cientista político e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da USP, aponta que é necessário, também, abordar essa questão de maneira crítica e ir além dos conflitos citados, trazendo para o debate outros conflitos que ocorrem ao redor do globo.
Em entrevista ao Porvir, Vicente explica como é possível falar do assunto com crianças e adolescentes e quais cuidados os educadores devem tomar para que o assunto não seja tratado de maneira rasa. Confira abaixo a entrevista:
Porvir – Como dar dimensão desses conflitos para crianças e adolescentes?
Vicente Ferraro – Uma estratégia para dimensionar esses conflitos é selecionar artigos de especialistas no assunto e adaptá-los para uma linguagem de melhor compreensão para crianças e adolescentes. Desde o início do conflito, há muitos políticos, blogueiros, jornalistas e mesmo acadêmicos não especializados na área debatendo as suas causas, motivações e consequências. Isso certamente contribuiu para a difusão de análises superficiais, maniqueístas e que super simplificam a realidade – principalmente nas redes sociais, onde as alunas e alunos são muito ativos. As professoras e professores da educação básica têm um papel fundamental na divulgação do conhecimento científico, muito atacado nos últimos anos, e na comunicação entre a academia e os jovens.
Porvir – E de que forma é possível abordar a guerra para além do dualismo?
Vicente Ferraro – É importante abordar de maneira crítica todos os argumentos apresentados pelas diferentes partes envolvidas no conflito – não apenas a Rússia e a Ucrânia, mas também outros países do Leste Europeu e do Ocidente. Deve-se atentar aos fatos e questionar quais seriam os reais interesses por trás desses argumentos e os possíveis ganhos e perdas de cada parte. Frequentemente, analistas focam na vertente geopolítica do conflito. Contudo, ele é muito mais complexo e vai além da geopolítica, abrangendo elementos históricos, a política doméstica, a legitimação de regimes, bem como a ideologia e visão de mundo das lideranças. Tais elementos podem ser abordados em sala de aula para desconstruir os excessos na simplificação da realidade.
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Porvir – Quais devem ser os cuidados que os educadores e educadoras devem tomar ao tratar sobre o assunto?
Vicente Ferraro – Deve-se ter o cuidado de ao abordar os argumentos das partes envolvidas não tomá-los como verdades absolutas. O argumento da Rússia em relação à expansão da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no pós-Guerra Fria, por exemplo, é legítimo, mas outras soluções diplomáticas e retaliações poderiam ter sido debatidas e não há evidências de que ele tenha sido o único ou mesmo o principal fator que motivou a intervenção de Moscou. Do mesmo modo, o argumento da Ucrânia em almejar ingressar na OTAN por temer uma agressão russa é também legítimo, dados os acontecimentos a partir da crise de 2014. Há diversos elementos controversos na política do Ocidente e da Ucrânia, mas ao abordá-los deve-se ter cautela em não utilizá-los para legitimar e justificar moralmente a agressão russa contra a Ucrânia, assim como nas críticas à Rússia deve-se ter o cuidado de não idealizar ou “romantizar” o Ocidente e as lideranças ucranianas. Uma abordagem crítica, embasada em fatos e análises de especialistas, pode auxiliar nessa empreitada.
Porvir – Por fim, como combater estereótipos sobre ambos os países?
Vicente Ferraro – Acredito que para combater estereótipos é importante mostrar que as populações de cada país não são responsáveis pelas decisões arbitrárias de seus líderes e que, muitas vezes, são também vítimas desses líderes. No último mês, vimos um “cancelamento” incoerente da cultura russa em diversos países. Como o tradutor Irineu Perpetuo mencionou, Putin não representa o patrimônio cultural russo. Uma forma de combater estereótipos é apontar que na Rússia há muitas pessoas contra a guerra que estão sofrendo repressão por se posicionarem – as decisões de seus governantes não representam a vontade e opinião de toda a sociedade.
Professoras e professores também podem abordar aspectos sociais, culturais e históricos de ambos os países para mostrar que um país é muito mais do que as suas lideranças políticas. Por fim, cabe fazer uma reflexão acerca de outros conflitos no globo envolvendo grandes potências, com impacto humanitário calamitoso, e questionar por que alguns recebem mais atenção midiática e política do que outros; quais são os interesses, vieses e mesmo preconceitos por trás dessa “seleção”. Há décadas vemos filmes de Hollywood retratando russos, árabes e recentemente chineses como vilões. Esse aspecto cultural do “soft power” norte-americano certamente contribui para a formação de estereótipos. Do mesmo modo, o governo russo vem há anos difundindo estereótipos acerca da Ucrânia. O processo de generalização, desumanização e construção do inimigo, principalmente por parte das grandes potências para legitimar intervenções, pode ser debatido em sala de aula.