Mesmo sobrecarregado com aulas remotas, professor acha tempo para desenvolvimento profissional
Nova rodada de pesquisa realizada pelo Instituto Península indica educadores cientes da importância da tecnologia para aprendizagem e apreensivos com o desengajamento dos estudantes
por Maria Picarelli 4 de setembro de 2020
Desde o início da pandemia do novo coronavírus (COVID-19), aumentaram a ansiedade e a sobrecarga dos professores. Isso não é motivo, no entanto, para eles deixarem de se dedicar ao trabalho, procurar meios de manter contato com os alunos, nem de buscar aprimoramento profissional.
A terceira onda da pesquisa “Sentimento e percepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios do coronavírus no Brasil” (clique para baixar PDF), realizada pelo Instituto Península com 3.893 docentes de todo o país entre os meses de julho e agosto, mostra que 64% deles se sentem ansiosos e que 53% estão sobrecarregados.
O nível de ansiedade é comparável ao da segunda etapa da pesquisa, realizada em meados de abril e maio, mas a sobrecarga aumentou – passou de 35% para 67%.
Em contrapartida, o levantamento revela um aumento do conforto e da segurança com o uso das tecnologias na aprendizagem. “Os professores tiveram que se reinventar, mas estão mais acostumados com o ensino remoto. E estão buscando meios para se aprimorar profissionalmente, seja por meio de formações oferecidas pelas secretarias de educação, seja individualmente”, comenta Lia Glaz, gerente de projetos do Instituto Península.
Lia destaca ainda que 72% dos professores que participaram da terceira onda do estudo acreditam que sua profissão está sendo valorizada.
“Com a entrada da escola na casa das pessoas, as famílias perceberam o quanto este ofício é difícil, e o professor começou a ser percebido como um profissional indispensável”, diz a gerente do Instituto Península.
Aprendendo Sempre: Ferramentas e orientações para suas aulas remotas
Para ela, este é um resultado importante, que pode abrir portas para novas discussões relacionadas, por exemplo, ao uso da tecnologia na educação – o estudo também indica uma mudança da percepção dos professores sobre a tecnologia em relação ao começo da pandemia.
Hoje, 94% deles enxergam a tecnologia como muito ou completamente importante na aprendizagem. Antes, 57% tinham esta percepção. A segunda onda da pesquisa havia mostrado que 88% dos docentes nunca tinham dado aula a distância e que 83,4% deles não se sentiam preparados para ensinar dessa maneira.
“O uso da tecnologia foi imposto pelas circunstâncias, mas ocorreu uma mudança de paradigma. Os professores se ressentiam da falta de preparo e parecia muito difícil usá-la, mas essa visão está mudando. Eles já enxergam que a tecnologia pode usada para ajudá-los, não para competir com eles”, analisa Lia.
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Um novo professor
Reinvenção é um termo recorrente em relatos de professores sobre suas experiências durante a pandemia do novo coronavírus. “A tecnologia avança rapidamente, mas a educação não acompanha esse avanço. Estava cem anos atrasada. Então, quando a pandemia chegou, tive que buscar muito conhecimento para chegar até o aluno, prender sua atenção e manter o vínculo com ele”, conta Tatiane Cândida do Nascimento Silva, professora de química no ensino médio numa escola estadual em Divinópolis, município de 200 mil habitantes no centro-oeste de Minas Gerais.
A experiência de Veranúbia Avelinos Santana, professora de uma escola estadual em Canindé de São Francisco (SE), foi parecida. Ela leciona ciências, artes e ensino religioso nos anos finais do ensino fundamental. “O sistema não nos preparou para usar as novas tecnologias, então os professores estão forçados a aprender, mesmo sem preparação”, comenta a professora, que se considera uma exceção. “Sempre gostei de tecnologia, sou curiosa, mas nem todos são assim. A falta de apoio do sistema de ensino gera uma sobrecarga e afeta a saúde mental e física dos professores. Muitos estão ficando doentes”.
Para ela, ocorreu um descompasso entre o início das atividades remotas e a oferta de formação, o que gerou um estresse para os professores, que se sentiram perdidos. Essa situação, porém, não gerou necessariamente paralisia. Pelo contrário, fez com que os professores passassem a se ajudar.
Veranúbia, por exemplo, criou o projeto Dever de Casa, uma série de lives a partir de seu perfil no Instagram sobre educação, cultura e cidadania e outros assuntos relacionados ao conteúdo das aulas remotas oferecidas aos alunos. Segundo ela, os temas surgem de dúvidas dos estudantes, repassadas a elas por seus colegas.
Paralelamente, para aliviar o estresse, ela e outros professores que participam de um grupo de WhatsApp, começaram a produzir textos dos mais diversos gêneros sobre suas impressões sobre a pandemia. O material resultou no livro “Professor Criação Interativa”, que será lançado pela Academia Canindeense de Letras e Artes.
O desafio do engajamento
Tatiane conta que tem aproveitado todo o tempo disponível para fazer cursos e formações gratuitas. “Estou fazendo uma formação no Instituto Federal do Sul de Minas. São palestras gratuitas sobre saúde mental, metodologias de ensino remoto, como manter o vínculo com os estudantes, entre outras”.
Mesmo com as novas técnicas aprendidas, ela se ressente da dificuldade de manter o engajamento dos alunos. “No início, ficava muito ansiosa, com medo de não me adaptar, mas acabei conseguindo. O problema, agora, é a falta de retorno dos alunos. Isso gera muita frustração e muita preocupação”, revela a professora.
Sua escola fica localizada numa comunidade vulnerável, onde poucos estudantes têm acesso a equipamentos para o ensino remoto. Então, a direção implantou uma rotina para acompanhá-los, usando os meios possíveis – aplicativo de mensagens, e-mail, telefone etc. –, a fim de minimizar a perda do vínculo com a escola e sustentar o engajamento nos estudos. Com base no monitoramento, os professores são informados e entram em contato diretamente com cada estudante.
“A gente tenta contato, mas alguns simplesmente não respondem, outros dizem que estão trabalhando porque a família está sem renda, outros falam que não conseguem se organizar para estudar. É uma sobrecarga para o professor, porque a gente fica correndo atrás dos alunos para tentar mantê-los ativos. E a gente fica preocupado com o que está acontecendo com eles”, desabafa Tatiane.
A pesquisa mostra que a principal preocupação dos professores, no atual estágio do isolamento social no país, é a saúde mental dos alunos (75%); mais até do que com a própria saúde mental (54%). Na primeira onda do estudo, em março, a maior preocupação dos professores era com a própria saúde (53%).
No que diz respeito ao ensino remoto, a falta de equipamentos ou de conexão com a internet entre os alunos é o principal desafio na percepção de 79% dos professores. Na sequência vêm a dificuldade de manter o engajamento dos estudantes (64%) e o distanciamento e a perda de vínculo com os alunos (54%).
Esses desafios são maiores do que a falta de formação e o conhecimento dos próprios docentes para lidar com as ferramentas virtuais – 49% e 46%, respectivamente -, de acordo com a pesquisa.
Retomada presencial
O desengajamento dos estudantes, somado às discrepâncias de aprendizagem entre aqueles que tiveram e os que não tiveram acesso aos conteúdos oferecidos pelas redes de ensino, devem ser os principais desafios na retomada das aulas presenciais.
A volta presencial, porém, um horizonte distante para os professores, indica o estudo do Instituto Península: numa escala de 0 a 5, o nível de conforto dos professores em relação à volta às aulas é de 1,07. As condições sanitárias das escolas são o fator que mais gera preocupação entre os docentes – 86% do universo pesquisado.
Este é o caso de Veranúbia, que cita a infraestrutura das salas de aula como um problema. “Minhas turmas têm 42 alunos no mínimo. Não tem carteira suficiente para todo mundo, então precisamos juntar em duplas. Como manter o distanciamento nessas condições?”, pergunta ela.
Já Tatiane, antevê dificuldades para lidar com as diferenças de aprendizagem entre os estudantes durante o período de ensino remoto, somado às questões emocionais. “Alguns acompanharam as aulas remotas e aprenderam, outros só acompanharam e outros nem isso fizeram. Isso é um fator de ansiedade de sobrecarga”.
Tudo isso, no entanto, também representa uma oportunidade, segundo a professora. “Quando as aulas voltarem, a escola não será a mesma de 17 de março, ocorreu a suspensão das aulas. O professor não será mais o mesmo, nem os alunos. É desafiador, mas, para quem quiser amadurecer, a pandemia trouxe a possibilidade de ver as coisas com outros olhos”, conclui Tatiane.
Para refletir:
– O que é ser um bom professor
– Desafios e caminhos para a formação de professores no Brasil