Mitos afastam alunos da matemática. Como a escola pode virar o jogo?
Especialistas refletem sobre em que momento da trajetória escolar as crianças começam a acreditar que não conseguem aprender matemática e como mudar esse cenário
por Marina Lopes 8 de abril de 2021
“Eu sou de humanas, e não de exatas.” Provavelmente, você já deve ter ouvido ou até mesmo repetido essa frase em algum momento da vida. Por trás de uma expressão que se tornou popular, quase como uma justificativa para driblar a falta de interesse em lidar com questões matemáticas, é comum também surgirem ideias equivocadas de que é preciso ter dom ou pensar rápido para aprender matemática.
E a consequência desse mito, claro, também se reflete no desempenho escolar de crianças e jovens no país: apenas 5% dos estudantes chegam ao final do ensino médio com aprendizado adequado em matemática, segundo a edição de 2019 do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica). Sete em cada dez estudantes brasileiros de 15 anos não possuem nível básico de matemática conforme dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos).
⬇️ Baixe infográfico: Todos podem aprender matemática
O pensamento de que apenas algumas pessoas podem aprender matemática, apesar de presente no imaginário de alguns brasileiros, contraria o que dizem as pesquisas de neurociência e ciências da aprendizagem, ao demonstrarem que o cérebro cresce e se modifica, possibilitando inúmeros aprendizados ao longo da vida. Mas, se está cientificamente comprovado que todos podem dominar a matemática em altos níveis, em que momento da trajetória escolar as crianças começam a adquirir ansiedade matemática? O que acontece na sala de aula para diminuir a confiança delas?
Para a professora do ensino médio Annelise Maymone, que também atua com a formação de professores no estado do Ceará e em cursos superiores de pedagogia e matemática, não existe uma resposta única para essa pergunta, já que cada criança tem uma jornada. “Não acho que existe um momento específico em que todas as crianças começam a ter dificuldade em matemática. Isso pode acontecer na educação infantil, no fundamental e no ensino médio”, afirma. No entanto, ela reconhece que existem pontos de atenção que devem ser considerados pelos educadores ao longo da trajetória escolar.
Entre eles, Annelise destaca tanto a construção de bases na educação infantil quanto a transição entre etapas, principalmente dos anos iniciais para os finais do ensino fundamental, quando os estudantes passam a lidar com muitas mudanças na rotina escolar. ”Antes, eles tinham aquela professora que conhecia e acompanhava todas as dificuldades. Agora, a partir do sexto ano, tem um professor de matemática que tem menos tempo com essa criança”, explica.
Associados a todos esses pontos de atenção, também entram na lista a forma como a matemática é apresentada aos estudantes, de modo pouco visual e conectado com a vida, a transição dos conteúdos do campo concreto para o abstrato e até mesmo situações em que a criança foi exposta, em casa ou na sala de aula, que reduziram o seu nível de confiança.
A diretora pedagógica do Instituto Sidarta, Claudia Siqueira, também reforça alguns pontos de atenção, como a própria construção histórica e social do lugar em que a matemática ocupa dentro de uma sala de aula. “O que vimos dentro da pesquisa da Rachel Lotan [professora e pesquisadora da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos], é que a matemática, historicamente, é o que dá maior status dentro de uma sala de aula”, afirma. Por esse motivo, muitas vezes, os estudantes começam a acreditar que apenas alguns são capazes de lidar com questões matemáticas ou pensam que quem é bom em matemática é mais inteligente.
Ela também chama a atenção para a necessidade de refletir sobre os tempos e espaços dentro da escola. “Quando pensamos em tempos e espaços, são os tempos e espaços dessa aprendizagem, e foi normalizado que matemática é velocidade. Isso tem feito com que meninas a partir de nove anos comecem a acreditar que não são boas em matemática”, aponta, ao também expor a situação de gênero que está presente nesse cenário.
Como mudar desconstruir mitos e aproximar estudantes da matemática
Entre uma série de fatores que reforçam a convicção equivocada de que nem todos os estudantes podem aprender matemática em altos níveis, qual é o caminho para promover uma mudança de mentalidade? Na primeira matéria da série “Todos Podem Aprender Matemática”, produzida pelo Porvir em parceria com o Programa Mentalidades Matemáticas, do Instituto Sidarta, já foram apontadas algumas práticas e abordagens que dialogam com uma matemática mais aberta, criativa e visual.
Entre propostas que trazem representações visuais, exemplos conectados com a vida dos estudantes e diferentes caminhos para chegar a uma resposta, Claudia cita uma mudança fundamental na forma como o erro é encarado. “O erro precisa fazer parte e ser valorizado dentro desse processo.”
Os educadores também precisam estar abertos a uma desconstrução afetiva de como foram apresentados à matemática durante a sua própria trajetória escolar. “Ninguém dá aquilo que não tem. Se eu não me acho capaz, eu não vou empoderar uma criança. A minha experiência qualifica a minha experiência com o outro”, ressalta.
No caso da educadora Annelise Maymone, um professor do ensino fundamental desempenhou um papel essencial na sua trajetória para resgatar sua confiança matemática, após passar por questões pessoais e de saúde que a fizeram cursar novamente o sexto ano. “Ele resgatou tudo aquilo que eu havia perdido, e eu passei a ser uma aluna nota dez de novo. Esse resgate foi tão importante para mim, que eu me tornei uma professora de matemática.”
Hoje, a exemplo da experiência que viveu, ela tenta passar tanto aos alunos do ensino médio, quanto aos da graduação e da formação de professores na secretaria de educação, uma forma diferente de aprender matemática. No ensino médio, suas aulas são repletas de projetos interdisciplinares e atividades criativas, como a construção de figuras geométricas com palitos e jujubas. Na universidade, ela destaca para a turma a importância de acreditar no potencial das crianças e dos adolescentes e de trabalhar com novas metodologias. “Todas as vezes que eu entro em uma sala de aula, tanto de pedagogia como de matemática, eu conto minha história. Eu quero que meus alunos sejam como o meu professor, que foi capaz de observar as minhas dificuldades e modificar a minha história.”
O que ganhamos com essa mudança de mentalidade
Para o matemático Henrique Marins, professor e pesquisador do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo), também é preciso aproximar a matemática da vida. “O grande problema da matemática escolar é ela estar distante do cotidiano e da possibilidade de enxergar o mundo com recursos matemáticos”, afirma. Ao citar o patrono da educação, Paulo Freire, ele destaca que a matemática, assim como o conhecimento de uma forma geral, tem que partir do cotidiano das pessoas.
“Não adianta ter uma matemática que só serve para resolver problemas escolares. A matemática precisa servir para que eu interprete o mundo. Ela tem que apoiar o desenvolvimento da criticidade”, menciona Henrique, ao destacar que o domínio matemático é fundamental para o exercício da cidadania, já que ele envolve tomadas de decisões cotidianas, como fazer um compra ou escolher uma roupa para sair de casa conforme a previsão do tempo, ler padrões, interpretar gráficos e entender, por exemplo, questões atuais como a disseminação do coronavírus.
Por outro lado, a falta de abertura e mudança de mentalidade para entender que a matemática é, sim, para todos, traz muitos prejuízos para a sociedade. “Perdemos possibilidades de crescimento, criatividade e desenvolvimento de cidadãos plenos”, conclui.
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