Na educação infantil, professora usa bonecas e cultura local para tratar de questões raciais
Conheça o projeto que buscou consolidar a relação escola-família-comunidade e fomentar o protagonismo das crianças para a construção de uma identidade racial positiva
por Carla Santos Pinheiro 22 de junho de 2021
“Uhuru” significa liberdade em suahíli, idioma falado por aproximadamente 50 milhões de pessoas na África Oriental (em países como Quênia, Ruanda, da Tanzânia e Uganda). Com a intenção de reforçar o reconhecimento da função sociopolítica contida na primeira etapa da educação básica, o projeto “Uhuru: Procura-se representação” foi pensado para fortalecer a consciência identitária das crianças e demais participantes, sobretudo no que diz respeito à questão étnico-racial.
Desenvolvido em 2018, o projeto foi vencedor do XXI Prêmio Arte na Escola Cidadã em 2020. Os processos da educação voltados para esta prerrogativa são amparados por referenciais para práticas pedagógicas promotoras da igualdade racial como, por exemplo, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e as obras de Paulo Freire na composição de pedagogia crítica educativa. Nesta linha, são objetivos que fomentam a atuação de sujeitos de forma ativa e participativa nos diferentes ambientes de convivência.
Fundamentada nos preceitos da educação antirracista, a proposta didático-pedagógica foi desenvolvida em quatro etapas articuladas denominadas de “Procura-se representação”. foram elas: brinquedo infantil, literatura infantil, animação e história e cultura local. A expressão que nomeia as etapas descritas tem por mote a música “Bonecas Pretas”, composta por Larissa Luz e Pedro Itan e interpretada por Larissa Luz.
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O que me motivou a realizar o projeto foi o entendimento de que a criança está no centro do planejamento pedagógico, mantendo a escuta sensível e o protagonismo infantil como base da ação educativa, tal qual preceituam as Diretrizes Curriculares para a Educação Infantil.
Por meio de levantamento de conhecimento prévio, análise das posturas e falas das crianças, assim como o seu repertório de brinquedos e brincadeiras, houve a percepção de que relações raciais era um tema conflituoso naquele espaço de sociabilidade. Para efeitos de ilustração, por vezes uma criança se dirige a outra pelo vocábulo de “negrinha”como forma de ofendê-la, evidenciando a carga pejorativa atrelado à categoria racial.
Feito este diagnóstico, as fichas de matrículas das crianças foram usadas para análise sobre a composição do projeto e evidenciando a necessidade de realizá-lo. Com isto, na perspectiva de consolidar a relação escola-família-comunidade, foram realizados debates com a comunidade (aqui entendida pelos que pudessem colaborar no processo) e planejadas vivências geradoras de aprendizagem que respeitassem a pluralidade das crianças, ao passo que fortalecessem o respeito às alteridades e fomentasse a construção de identidade racial positiva.
Posso destacar a construção de bonecos de pano com as crianças e seus familiares a partir da identificação racial e em espécie de autorretrato. Para a concretização desta vivência, a avó de uma das crianças da escola confeccionou pequenos moldes de bonecos de acordo com a escolha da criança e com a tonalidade de sua pele.
Esta vivência aconteceu em conjunto com alguns outros elementos como a leitura do livro “Que cor é minha cor”, da escritora Martha Rodrigues. As crianças também fizeram desenhos de si mesmas como se fossem protagonistas de história e pinturas com lápis de cor que julgassem mais parecida com a cor de sua pele. Houve também momentos de análise e discussão sobre princesas negras da contemporaneidade, com especial atenção às protagonistas de desenhos animados, entre outras ações educativas.
Além de confeccionar os moldes, a avó presenteou a turma com uma boneca preta de pano do tamanho das crianças. Esta boneca foi integrada às vivências de forma espontânea e foi incluída nas rodas de conversa, nas brincadeiras no pátio, dos momentos de lanche entre outras.
Decidimos junto com as crianças escolher um nome para a boneca usando como método uma simulação de processo eleitoral. Produzimos títulos de eleitor e urnas e concedemos os papéis de mesários a algumas das crianças.
O projeto também está ligado à história e cultura local. Fizemos rodas de conversas e intervenções artísticas com representantes da comunidade, entre eles: Jaguaracy Conceição, com a leitura e reflexão do livro “Os Cabelos de Sara”, Reyllane Trindade, criança dançarina do Bloco Afro Bankoma e o grupo artístico-cultural Baianas de Cortejo de Lauro de Freitas.
Ao longo de todo o processo, foram várias as atividades que, alicerçadas na valorização do patrimônio lúdico-cultural e apropriadas à faixa etária das crianças, prestigiaram a reflexão sobre representação e estigmas sociais por meio da análise de filmes, trailers, fotos, desenhos animados, impressões de fotos, livros paradidáticos, histórias de vida, músicas, brinquedos, etc. Com isso, repensamos as formas de coexistência tendo o respeito às diferenças como direcionamento para superar as desigualdades sociais.
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Carla Santos Pinheiro
É professora de educação infantil da rede municipal de Educação de Lauro de Freitas (BA), mestranda em História no Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras. Também é presidenta do Fórum Municipal de Educação Infantil de Lauro de Freitas, integrante do Grupo de Estudos Relações Étnico-Raciais na Educação Infantil (FACED/UFBA), do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação Infantil, Crianças e Infâncias (FACED/UFBA) e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.