O brincar como parte fundamental do aprender
Desde a antiguidade, o brincar tem sido visto como espaço proeminente de aprendizagem que contribui para o desenvolvimento das crianças
por Ruam Oliveira 10 de outubro de 2022
A importância do brincar é uma questão discutida há bastante tempo. Na antiguidade, os pensadores Platão e Aristóteles, por exemplo, já refletiam a respeito da relevância das brincadeiras e dos jogos na aprendizagem. O primeiro deles, por exemplo, apontava que as crianças podiam aprender brincando em oposição ao uso de violência ou opressão. Já Aristóteles entendia que usar jogos que simulavam atividades sérias era uma forma de preparar os pequenos para a vida futuro.
E a situação não é diferente nos dias de hoje. O brincar segue sendo um dos principais aliados no desenvolvimento humano. No ambiente escolar, o acesso ao brincar constitui parte essencial do processo de ensino e aprendizagem. “A escola é não só lugar de aprender, de sentir, mas também de assegurar os direitos relativos à infância. O brincar não é só importante, como fundamental”, afirma Patrícia Queiroz, psicopedagoga e consultora pedagógica do LIV (Laboratório Inteligência de Vida).
É correto dizer que o lúdico e o brincar estão muito presentes na vida e rotina da maioria das crianças de forma contínua. Transportando esses aspectos para a escola, há de se levar em consideração o quesito intencionalidade.
Zíngara Pereira, supervisora pedagógica da educação infantil no Colégio Educator, em São Luís (MA), explica que as propostas lúdicas e do brincar devem estar presentes no planejamento pedagógico de qualquer escola, não devendo ser aspectos ignorados ou considerados de menor relevância.
“Todos nós, adultos, já passamos por essa fase de infância em que a brincadeira era muito mais do que só um tempo bacana”, reflete Patrícia.
Aprender brincando
É também entre uma brincadeira e outra que as crianças se reconhecem, ganham visão de mundo e se desenvolvem cognitivamente. Pesquisadores da Universidade de Temple e da Universidade de Delaware, ambas nos Estados Unidos, destacaram que a definição de brincar está atrelada à de aprender. Para eles, tanto o brincar livre, quanto o dirigido, estão ligados ao desenvolvimento social e acadêmico das crianças.
Diferente do brincar livre – que também é importante – o brincar direcionado vai servir como apoio para que educadores possam auxiliar as crianças em seu próprio desenvolvimento. E é por meio dele que será possível fazer um acompanhamento, por exemplo, de habilidades alcançadas ou que precisam de mais atenção.
“Dentro de uma proposta lúdica, [as crianças] desenvolvem inúmeras habilidades, e as socioemocionais são uma delas. A criança aprende a lidar com conflitos, com o diferente, com a diversidade, no entendimento de regras. Aprende também a direcionar e a gerir as suas emoções, porque quando estão brincando é o momento em que vão descobrir os sentimentos inúmeros que envolvem aquele processo”, comenta Zíngara.
A professora ressalta que é neste momento que, mesmo com a falta de maturidade, as crianças passam a enxergar os próprios sentimentos e daí se dá a importância deste brincar com acompanhamento, dentro de um planejamento.
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Patrícia também destaca o quanto as crianças na educação infantil desenvolvem habilidades cognitivas enquanto brincam, sejam elas simbólicas ou de outra ordem, como é o caso da fala.
“Se a gente que é adulto parar pra poder observar um pouco como é que elas estão fazendo na brincadeira, vai perceber um monte de coisas interessantes. As crianças bem pequenininhas, às vezes brincando sozinhas, elas têm o que a gente chama de fala egocêntrica. Ela vai falando com ela mesma e elaborando algumas das decisões que vai tomar na brincadeira e nessa fala para ela mesma, elaborando algumas ideias”, diz Patrícia.
Esse tipo de conversa, mantido durante uma brincadeira, é o que encaminha de certa forma a criança para uma outra postura quando precisa adotar uma fala mais socializada. Ou seja, contribui para o desenvolvimento da linguagem verbal.
“Aquisição da linguagem é um processo de simbolização, não só através da palavra – de quando a criança consegue entender que uma palavra pode significar algo que ela está sentindo, desejando ou querendo e pode comunicar isso ao outro –, mas outros significados e significantes também”, diz a psicopedagoga.
Um exemplo usado por ela para mostrar essa relação de desenvolvimento da função simbólica é quando uma criança, ao brincar com um graveto, pode encará-lo como um carro e em outro momento vê-lo como uma mamadeira de uma boneca, sendo assim uma forma de inseri-la num contexto de criatividade e liberdade de criação.
Hoje e ontem
“Antigamente existia uma resistência muito grande com relação ao brincar, até por conta do ensino muito tradicional”, relembra professora Zíngara. Propostas que hoje envolvem o lúdico, por vezes, tendem a ir além das apostilas ou outros materiais didáticos mais tradicionais.
“Eu brinco, canto, faço rodas, uso jogos de raciocínio. Dependendo do tipo de habilidade que eu quero desenvolver, eu tenho uma brincadeira direcionada para ela”, afirma a educadora.
Ela destaca que o contexto de pandemia tornou ainda mais importante o olhar para o lúdico como uma ferramenta pedagógica. Segundo ela, muitas crianças retornam ao modelo presencial com diversos distúrbios e dificuldades de aprendizagem, de fala e de concentração, por exemplo, áreas em que as brincadeiras podem contribuir positivamente.
De fato, a pandemia desempenhou impactos que serão sentidos por muito tempo na vida dos estudantes. Em entrevista recente ao Porvir, o pediatra Daniel Becker ressaltou que crianças e adolescentes foram bastante impactados pelo período de distanciamento social, que provocou, entre outras, a dificuldade de convívio e o aumento de sintomas psicossomáticos.
Leia a entrevista completa
Brincar é um direito
O artigo 31 da Convenção sobre os Direitos da Criança reconhece o direito ao lazer, ao divertimento e às atividades recreativas. O brincar é um direito das crianças.
Dentro dessa perspectiva, entende-se a criança como um sujeito de direitos, um cidadão ou cidadã desde já.
“A ludicidade é a linguagem da criança”, afirma Patrícia. Uma escola que se preocupa com o aspecto lúdico, deve compreendê-lo não como algo menor, mas como um elemento central.
“Uma escola preocupada com a ludicidade no seu currículo e no dia a dia, pedagogicamente falando, é uma escola que respeita as infâncias, que respeita a criança enquanto sujeito que tem a suas próprias linguagens, seu jeito característico de ser dentro daquela faixa etária, e que vai visibilizar esse ser humano na sua integralidade. Ou seja, vai olhar para todos os aspectos que o compõem enquanto o sujeito, incluindo o desenvolvimento socioemocional”, pontua Patrícia.
O que se espera dos docentes
Nem sempre é do conhecimento de todo professor ou professora como organizar uma aula levando em consideração o brincar direcionado. Zíngara fala sobre as novas gerações, que são muito questionadoras e trazem para dentro da aula diversas questões que precisam estar no radar institucional – da gestão e da escola como um todo – e também individual, na vida dos próprios educadores.
Na escola maranhense onde atua, por exemplo, são constantes os ciclos de formação continuada, que servem para ampliar os olhares sobre temas necessários para a rotina escolar, entre eles o desenvolvimento socioemocional.
Na outra ponta está um desafio apresentado pelas famílias. “Na época da pandemia, a maioria dos cancelamentos foi nas primeiras séries (crianças entre 2 e 3 anos). E os familiares chegavam dizendo: ‘Ah, tia, porque não é obrigatório’ ou ‘Porque ele vai para a escola só para brincar, ele pode brincar em casa’. A gente tem que sentar com essa família e explicar todo o contexto do brincar”, conta Zíngara. Um dos pontos mais desafiadores para a escola ainda é fazer com que pais e mães entendam a importância do brincar e que as crianças não estão “simplesmente brincando” enquanto estão na aula.