Entre chegadas e partidas: professora de geografia inspira alunos a contar histórias de migração
Em Ibiassucê, na Bahia, a professora de geografia Laiane Michele Silva incentivou a turma a realizar uma série de entrevistas com seus familiares para entender o fenômeno das migrações. O projeto resultou na publicação de um livro assinado pelos estudantes
por Laiane Michele Silva Souza
8 de agosto de 2025
Ibiassucê, conhecida como a “Capital da Amizade”, é uma pequena cidade no sudoeste da Bahia, com pouco mais de 10 mil habitantes. A maioria da população vive na zona rural, preservando práticas agrícolas tradicionais e um forte espírito comunitário, com destaque para associações comunitárias e comunidades tradicionais, como o Quilombo de Santo Inácio.
Quem são os moradores do município? Quais suas origens? Como conectar o conteúdo escolar às histórias e vivências locais, destacando as trajetórias de migração que marcam a cidade? Este é o contexto do projeto “Entre chegadas e partidas: narrativas de migração em Ibiassucê”.
🟠 Inscreva seu projeto escolar no Prêmio Professor Porvir
Desenvolvida com a turma de 8º e 9º ano do Centro Educacional de Ibiassucê. Cada um dos alunos assumiu papéis centrais no processo de aprendizagem. Durante os anos 2023 e 202 , nas minhas de geografia e arte os estudantes se tornaram pesquisadores, entrevistadores, escritores e revisores das trajetórias migratórias de seus familiares, vizinhos e conterrâneos.
Passo a passo
O “Entre chegadas e partidas” teve como principal objetivo pedagógico promover o protagonismo estudantil e o reconhecimento das migrações como parte da realidade local, estimulando a escuta, a escrita e o pensamento crítico da turma.
Alinhado à BNCC (Base Nacional Comum Curricular), especialmente à competência geral 6, sobre trabalho e projeto de vida, e ao componente curricular de geografia, a proposta desenvolveu habilidades ligadas à leitura do território, à construção da identidade, às redes de conexão e às transformações socioespaciais vivenciadas pelos alunos em seu cotidiano.
Os primeiros passos, ainda em sala de aula, foram as rodas de conversa, levantamento de conhecimentos prévios e análise de mapas temáticos e gráficos populacionais. Em seguida, os alunos foram orientados a entrevistar vizinhos, familiares ou conhecidos que vivenciaram processos migratórios.
A preparação envolveu uma escuta às turmas e à comunidade
Utilizamos como apoio um roteiro de entrevista temática, elaborado com base nos eixos da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e em metodologias de pesquisa qualitativa.
O questionário incluía questões sobre origem, destino, motivos da migração, desafios, conquistas e sentimentos vivenciados no processo. O material do questionário foi adaptado com linguagem acessível, possibilitando a participação ativa de estudantes PCDs, onde posteriormente as entrevistas e repostas dos questionários foram realizados o mapeamento de histórias de migração (permanentes, pendulares e sazonais), onde as mesmas foram organizadas em 3 pastas, que posteriormente viriam a se tornar os três capítulos de divisória do livro.
💬 Tire suas dúvidas e converse com outros educadores nas comunidades do Porvir no WhatsApp
Práticas metodológicas e experiências em sala de aula
Metodologicamente, o projeto seguiu os princípios da pedagogia de projetos, da aprendizagem baseada na experiência e dos saberes construídos a partir do território. As atividades envolveram trabalho em grupo, escrita colaborativa, uso de tecnologias( como gravações de áudio), rodas de leitura, exposição oral e produção textual.
Uma das inovações do projeto foi transformar a cultura local e a memória oral em conteúdos pedagógicos, reconhecendo os estudantes como sujeitos históricos e autores das narrativas que habitam seu território. Esse processo fortaleceu a identidade e a autoestima, além de possibilitar uma leitura crítica das causas sociais e econômicas das migrações, promovendo o diálogo entre o local e o global.

As histórias das professoras Alideia Rodrigues e Clarinda são retratos vivos de como a educação é capaz de romper barreiras e transformar destinos, especialmente no sertão, onde o acesso ao conhecimento nem sempre é fácil, mas o desejo de aprender insiste em florescer.
Alideia, além de professora, é mãe do estudante Luiz Flávio, jovem que já carrega o brilho da ancestralidade e da força de sua mãe como inspiração. Em seu relato, ela compartilhou as nuances de ser mulher, mãe e filha do campo, enfrentando as dificuldades impostas pela vida rural, pela maternidade precoce e pela ausência de oportunidades. Mesmo diante dos obstáculos, não deixou de sonhar, e muito menos de lutar. Com coragem e persistência, trilhou um caminho até alcançar o mestrado, uma conquista que não é apenas sua, mas de todas as mulheres que, como ela, carregam nos braços os filhos e nas costas o peso de um sistema excludente.
📳 Inscreva-se no canal do Porvir no WhatsApp para receber nossas novidades
Já a professora Clarinda, atual diretora escolar, desde os 8 anos vive na casa de parentes, trabalhando em troca de moradia para poder estudar. Ainda criança, foi forçada a se afastar da família e assumir responsabilidades que não cabiam à sua idade, revelando o quanto a educação, para muitos, é conquistada não como um direito, mas como um esforço solitário, Clarinda resistiu. Persistiu. Hoje, ocupa um cargo de liderança educacional no mesmo território onde antes lhe faltavam recursos, reafirmando que sua trajetória é fruto da luta e da superação das marcas da exclusão social e da migração compulsória por necessidade.
Resultados e impactos na aprendizagem e na comunidade
Entre os desafios enfrentados, destacaram-se a timidez de alguns estudantes ao entrevistar, a dificuldade em organizar os relatos em forma textual e a adaptação dos materiais para estudantes com deficiência ou dificuldades de aprendizagem. Esses pontos foram superados com apoio psicopedagógico, tutoria entre pares e acompanhamento individualizado.
A comunidade escolar acolheu o projeto com entusiasmo. Pais e responsáveis participaram ativamente do evento de lançamento do livro, contribuindo com sugestões de entrevistados e, em muitos casos, tornando-se os próprios entrevistados. Muitos se emocionaram ao ver suas histórias registradas e elogiaram a iniciativa. A gestão escolar apoiou o projeto desde o início, oferecendo materiais e incentivo, fortalecendo ainda mais o vínculo entre escola, família e comunidade.
A partir das reflexões desenvolvidas em sala e das entrevistas realizadas, os estudantes passaram a compreender a migração não apenas como um fenômeno social, econômico e geográfico, mas como um processo profundamente humano e presente em suas próprias histórias. Ao ouvirem os relatos de familiares, vizinhos e moradores da comunidade, perceberam que a migração não é algo distante ou restrito aos livros, mas uma realidade que atravessa suas casas, suas famílias e suas vivências cotidianas. Entenderam que migrar envolve a busca por melhores condições de vida, trabalho, educação e segurança, mas também carrega sentimentos de saudade, pertencimento, dor e esperança. Dessa forma, os estudantes ampliaram seu olhar sobre o território em que vivem e passaram a reconhecer que suas próprias trajetórias familiares são marcadas por partidas, recomeços e resistências, inserindo-se assim em um processo maior de transformações sociais e culturais.
A escola se torna um espaço de escuta quando reconhece que cada estudante carrega consigo uma história, uma identidade e saberes construídos a partir de suas vivências familiares, culturais e territoriais. Ao abrir espaço para que esses estudantes compartilhem suas experiências, como as narrativas sobre migração, a escola valida suas trajetórias, promove um ambiente de acolhimento e respeito, e fortalece o sentimento de pertencimento. Nesse processo, os estudantes passam a se sentir protagonistas do próprio aprendizado, compreendendo que suas vivências têm valor e podem contribuir para a construção coletiva do saber. Escutar, nesse contexto, torna-se um ato pedagógico transformador, que conecta o currículo à realidade social e fortalece os laços entre o conhecimento escolar e a vida dos alunos, tornando a educação mais significativa e emancipada.
Legado educativo e transformação do território escolar
Com o apoio da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022), o projeto ganhou forma impressa: um livro escrito pelos próprios estudantes, reunindo os relatos colhidos nas entrevistas.
A publicação representa um marco simbólico de autoria, pertencimento e valorização cultural, tornando os jovens autores da história local e agentes ativos na preservação da memória coletiva. Após o desenvolvimento do conteúdo em sala e a finalização das entrevistas, os textos começaram a ser organizados em formato de relatos, revelando histórias potentes e significativas. Foi então que surgiu a ideia de tornar os estudantes autores de suas próprias histórias, por meio da publicação de um livro. Com o edital da Lei Paulo Gustavo municipal aberto, submeti a proposta com o objetivo de garantir apoio financeiro para a produção da obra com ISBN (código para identificar livros e publicações de maneira única), registro na Academia Brasileira do Livro e exemplares físicos destinados aos próprios estudantes.
A proposta foi aprovada, e recebemos o valor de R$ 2.034, possibilitando a impressão de 70 exemplares em produção independente. O projeto culminou em uma emocionante cerimônia de lançamento, que contou com a presença de pais, responsáveis, representantes do poder público, secretarias municipais e demais autoridades locais, fortalecendo os laços entre escola, família e comunidade, e celebrando os estudantes como sujeitos protagonistas da própria história.
O que ficou com os estudantes
Ao se reconhecerem como sujeitos capazes de produzir conhecimento, os estudantes desenvolveram não apenas habilidades acadêmicas, como leitura, escrita e oralidade, mas também valores fundamentais como empatia, senso crítico, identidade e orgulho de suas origens. A experiência vivida com o projeto evidenciou que, quando o protagonismo juvenil é valorizado, a escola se transforma em um território de resistência, afeto e mudança social. Como legado, permanece a valorização da cultura local como parte integrante do currículo, reafirmando o papel da escola como espaço de reconhecimento e transformação.
O livro “Entre Chegadas e Partidas” simboliza esse movimento ao tornar a escola um lugar de pertencimento, onde os estudantes aprendem a partir de suas vivências, compreendem o valor de suas histórias e percebem que sua realidade também é conteúdo. Cada narrativa traz consigo lições únicas, e ensinar é, sobretudo, acolher essas trajetórias com sensibilidade e respeito, permitindo que a educação floresça enraizada na experiência de quem a vive.
Laiane Michele Silva Souza
É graduada em geografia pela UNEB (Universidade do Estado da Bahia), com especializações em psicopedagogia clínica e institucional, neuropsicopedagogia e educação inclusiva. Atualmente, cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia) e é bacharelanda em psicopedagogia pelo Centro Universitário de Maringá. Integra grupos de pesquisa vinculados à UNEB, com foco em ensino e práticas pedagógicas críticas, e desenvolve uma investigação sobre desenvolvimento local e pluriatividade em comunidades quilombolas. Atua como professora de geografia e ciências humanas no Centro Educacional de Ibiassucê, além de ser professora orientadora medalhista e representante nacional da Olimpíada Brasileira de Geografia. Possui experiência em educação empreendedora pela Prefeitura de Ibiassucê, em parceria com o SEBRAE-BA (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas da Bahia), e já lecionou no ensino fundamental 2 e na EJA (Educação de Jovens e Adultos). Foi finalista do Prêmio Professor Porvir 2023 e conquistou o 1º lugar estadual no Concurso Federal Jovem Senador (2018).






Que iniciativa bacana. Muito sensível a abordagem. Parabéns!!
Top demais, parabéns a todos envolvidos!