O que significa um ataque em escola para educadores e estudantes
Após ataque em escola de São Paulo (SP), especialistas avaliam o papel da escola, a presença do racismo e a dificuldade do desenvolvimento de uma educação para as diferenças
por Ruam Oliveira / Vinícius de Oliveira / Ana Luísa D'Maschio 28 de março de 2023
A semana começou com um assunto trágico no campo da educação. Um estudante de 13 anos, matriculado no 8º ano do ensino fundamental, atacou colegas e professores a facadas na Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo (SP). A professora Elisabeth Tenreiro, de 71 anos, morreu.
Distante da capital paulista, em Nashville, Estados Unidos, uma adolescente atacou a tiros três crianças e três professores. Ela foi a sétima vítima, morrendo em um confronto com a polícia. Somente em 2023, o país registra 89 ocorrências envolvendo armas em escolas, segundo o projeto K-12 School Shooting Database, um banco de dados que mapeia a violência escolar nos EUA.
É instintivo que o primeiro posicionamento seja de se perguntar sobre a segurança da comunidade escolar, uma vez que a escola é um lugar de formação que não está separada da sociedade e que reflete o que ocorre além de seus muros.
“A gente tem que partir da ideia de que esse tipo de tragédia não pode acontecer. E elas acontecem porque não existem políticas públicas, no Brasil e em outros países da América Latina, sobre este assunto. É como se fosse um tema secundário e que não tem a ver com aprendizado, com evasão”, diz Miriam Abramovay, doutora em ciências da educação e coordenadora do Programa Estudos sobre Juventudes, Educação e Gênero: Violências e Resiliências da Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais).
A temática da violência, segundo ela, não pode ser encarada como um assunto menor. A educadora aponta que não falar sobre o assunto, ou falar apenas quando acontecem as tragédias, impede que ações sejam pensadas e desenvolvidas nesse âmbito.
O papel da escola diante do radicalismo
“A escola é um lugar que reflete todas as violências, todas as opressões presentes na sociedade. Nesse espaço, estão todas as agruras da sociedade, é um espaço marcado pela violência, do qual nós, educadores, e demais atores escolares, não podemos nos furtar de fazer esses enfrentamentos. O que aconteceu na Thomazia Montoro é algo muito grave e revela o crescimento dos atos violentos nos últimos anos”, complementa a educadora Maria Maria da Glória Calado, especialista em relações étnico-raciais na escola, que já publicou no Porvir um artigo com educadores negros que todos precisam conhecer.
É impossível negar um evento traumático, e por mais desafiador que seja o momento posterior, é importante criar espaços de fala e de escuta nos quais os estudantes possam ter uma reflexão sobre essa experiência
Daniel Moraes, educador
Classificada como estrutural e originada da persistência de desigualdades por autores como o psicólogo social Ignácio Martín-Baró, como ressala violência tornou-se cada vez mais presente na sociedade brasileira com a crescente polarização política. Nos últimos 20 anos, foram ao menos 16 ataques em escolas, como as tragédias de Aracruz (ES), em 2022, e Suzano (SP), em 2019.
Daniel Moraes, educador e mestre em filosofia, pontua que o período de posvenção é muito importante para pensar respostas e trabalhar o cuidado junto à comunidade. Uma proposta de projeto multidisciplinar de acompanhamento, para ele, pode ser uma boa estratégia em casos extremos como os relatados no início da reportagem.
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“É impossível negar um evento traumático, e por mais desafiador que seja o momento posterior, é importante criar espaços de fala e de escuta nos quais os estudantes possam ter uma reflexão sobre essa experiência – claro, acompanhado seja pelo professor ou pelos psicólogos –, colocar esses sentimentos para fora e perceber como vão conviver e quais são as ferramentas vão desenvolver para lidar com isso”, diz Daniel.
Muitos dos casos de violência que resultam em extremismo partem de problemas de convivência. Em alguns casos, trazem consigo questões muito mais complexas e profundas, como a situação vivida pela Escola Estadual Thomazia Montoro. Antes da agressão, o estudante de 13 anos cometeu um crime de racismo ao chamar um colega de macaco.
O racismo presente no dia a dia escolar
“O silenciamento do racismo ainda é persistente nas unidades escolares”, reforça Maria da Glória. Para ela, é fundamental que a educação antirracista ultrapasse a perspectiva da pedagogia de projetos, por vezes vinculada a datas do calendário escolar, e se torne permanente nos espaços educacionais. “É vital que educadores e educandos percebam, de forma gradativa e também dialógica, que a abolição da escravatura no Brasil foi inconclusa, que a democracia racial é um mito e que a luta antirracista não é, de forma alguma, uma ameaça aos brancos. Faz-se necessária a compreensão sobre as razões pelas quais o racismo e a injúria racial são crimes inafiançáveis”, complementa.
Romper com o silenciamento do racismo e de outras opressões e efetivar leis já existentes são missões dos educadores e da sociedade para que outras tragédias escolares não se repitam, reforça a educadora.
Em resposta ao ocorrido em São Paulo, o governador do estado, Tarcísio de Freitas, mencionou a possibilidade de colocar a polícia de forma permanente nas escolas. Miriam, que estuda violência nas escolas desde 2002 – aponta que o ideal não é trabalhar com medidas repressivas. Ela também destaca que, a depender da idade dos estudantes, eles podem ter uma relação de estranhamento com a figura policial.
Racismo |
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Para lidar com esse tema, portanto, é fundamental que ele não seja silenciado. O acolhimento dos estudantes, docentes e funcionários feito por psicólogos deve ser uma prioridade, seguido de posteriores rodas de conversa e terapias coletivas para que o maior número possível de pessoas possa verbalizar e/ou encontrar outras formas saudáveis de expressar os sentimentos em relação ao acontecimento trágico. Esse trabalho deve ser permanente, o que exige a efetivação de políticas públicas de saúde mental no ambiente escolar. O caso da Vila Sônia, assim como as situações ocorridas em Aracruz e Suzano, reforça de forma veemente a necessidade da presença permanente de psicólogos dentro da escola, para efetivar a lei nº 13.935/2019. Esses profissionais devem atuar de forma multidisciplinar a fim de começar o combate à violência estrutural em uma das bases mais importantes da sociedade, o ambiente escolar. Maria da Glória Calado, especialista em relações étnico-raciais e psicanalista |
A urgência de uma educação para as diferenças
“A escola é um primeiro simulacro da sociedade para a criança e para o adolescente. É ali que ele vai encontrar divergência de pensamento, porque na família normalmente nós temos as nossas ideologias que nos seguem e que nos acompanham, mas na escola nós vamos encontrar a pluralidade. E é importante que a família também perceba, em especial o espaço escolar, como esse lugar com uma diversidade de ideias”, diz Daniel.
A presença e participação da família é fundamental, tanto no período de prevenção, quanto no momento de lidar com casos concretos. Daniel destaca que estar de frente com a diversidade de ideias, por exemplo, pode tornar a convivência mais difícil. Contudo, a escola acaba servindo como uma espécie de “laboratório da vida”, onde os estudantes de fato se preparam para viver em sociedade.
Precisamos fundamentalmente educar para a convivência em condições de diferença. Nós temos hoje fenômenos bastante graves e preocupantes de estímulo à intolerância e ódio ao diferente…
Paulo Carrano, professor na Universidade Federal Fluminense
“Mais do que falar sobre o bullying e de como a gente pode pensar uma sociedade onde a convivência é saudável no dia a dia, é importante trazer essa discussão para a sala de aula em todas as matérias e não apenas na disciplina de língua portuguesa, de filosofia ou então de inteligência emocional. É pensar isso de uma forma que ela esteja presente em todo o processo de educação da criança e do adolescente”, afirma.
Paulo Carrano, professor da Faculdade de Educação da UFF (Universidade Federal Fluminense) e coordenador do grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro, ressalta que as escolas não podem ser vistas como “ilhas” e que casos como o de São Paulo mostram como é desafiador educar para a diferença.
“Precisamos fundamentalmente educar para a convivência em condições de diferença. Nós temos hoje fenômenos bastante graves e preocupantes de estímulo à intolerância e ódio ao diferente… Temos uma situação inédita que é a intensificação das relações sociais por meio das redes sociais, e o desafio de criar controles democráticos sobre a disseminação de mensagens de ódio”, pontua o educador.
Grupos extremistas carregados de mensagens de ódio ou apologia à violência, racismo, e ataques aos direitos humanos têm se proliferado na internet. Há relatos de que o autor do atentado no colégio em São Paulo participava de alguns deles e já havia, anteriormente, apresentado comportamentos considerados suspeitos, publicando vídeos nas redes sociais portando armas de fogo e simulando ataques violentos.
Paulo sugere que conceitos como o bullying, por exemplo, sejam decompostos. Isso porque, por trás de uma ação que é considerada bullying, pode se esconder racismo, misoginia, preconceito de classe, preconceito regional, entre outros. “Um esforço que é preciso fazer também é realizar bons diagnósticos sobre esse campo amplo que nós chamamos de violência”, diz.
Além disso, o educador pontua que é preciso conhecer os estudantes, uma tarefa que é de toda a escola e não unicamente do professor ou da professora. “Fazer inventários biográficos para poder saber com mais precisão onde há indícios que possam acender um sinal de alerta e, com isso, convocar profissionais para o tipo adequado de ação e de um maior suporte para esse estudante”, afirma Paulo.