Sem diretrizes, ensino superior ainda tenta entender impacto da inteligência artificial
Especialistas destacam que mais importante do que ensinar sobre as técnicas, as universidades devem trabalhar a ética dos processos
por Ruam Oliveira 23 de junho de 2023
Desde que o ChatGPT, ferramenta que pode “conversar” com as pessoas por meio de mensagens de texto, ganhou popularidade, o termo inteligência artificial tem sido cada vez mais frequente em rodas de conversas dentro e fora da sala de aula.
Em cada etapa de ensino, os desafios podem variar e é esperado que assim ocorra. Isso porque o nível de maturidade dos estudantes também influencia na maneira como eles utilizam tais ferramentas.
No caso do ensino superior, muitas universidades ainda estão preocupadas e ainda não sabem o que fazer se, porventura, um estudante utilizar uma plataforma de IA generativa – como é o caso do ChatGPT – para realizar trabalhos.
Um estudo feito pela Universidade de Nova York, Princeton e a Universidade da Pensilvânia, ambas nos Estados Unidos, mostrou que 8 em cada 10 profissões mais expostas a essas ferramentas são da área da educação, professores em sua grande maioria.
Com este cenário, tentar impedir o uso pode ser uma maneira de nadar contra a corrente, o que nem sempre é produtivo.
Sandra Ávila, pesquisadora de inteligência artificial e professora na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), acredita que a melhor postura sempre será a de não proibir o uso, algo que algumas escolas tentaram fazer. Para ela, a proibição só aumenta a curiosidade dos estudantes em saber como essas plataformas podem ajudá-los em suas tarefas.
“Existem diferentes níveis [desse uso] no ensino superior”, diz. Ela mostra que um aluno no primeiro semestre da graduação, com pouca análise crítica e conhecimento limitado sobre o curso, ao usar essas ferramentas, provavelmente ficará satisfeito com a primeira resposta recebida, sem solicitar à IA opções para uma análise mais abrangente.
“Essa pessoa não está analisando criticamente a informação que recebeu, e isso pode ter implicações”, afirma. No entanto, segundo a professora, essa situação seria diferente para um estudante de pós-graduação, que já tem mais experiência em avaliar fontes, fazer comparações e argumentar.
Necessidade de atenção
Os desafios e decisões a serem tomadas pelas universidades ainda são muitos, principalmente porque a tecnologia muda muito rapidamente. Pesquisadores da Universidade de Bath, no Reino Unido, têm se debruçado sobre as aplicações de IA nos cursos de graduação e chegaram a conclusões semelhantes às descritas por Sandra. “À primeira vista, parece muito bom – parece escrito com muita clareza e bastante profissional em sua linguagem”, disse James Fern, um dos pesquisadores da Universidade, em entrevista à BBC.
No entanto, à medida que as perguntas feitas ao ChatGPT se tornaram mais complexas, as respostas começam a ficar erradas e imprecisas.
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Eles fizeram um experimento solicitando referências bibliográficas – que são comuns em artigos feitos na graduação – e apesar de trazer respostas no formato exigido, a ferramenta não só entregou títulos falsos, como também citou autores que não existiam.
“Se você não está ciente de como funcionam os grandes modelos de linguagem, você seria facilmente levado a pensar que essas são referências genuínas”, disse James.
Uma pesquisa divulgada pela Unesco (Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em maio deste ano apontou que menos de 10% das escolas e universidades possuem algum tipo de orientação formal para o uso de IA. “Os resultados da pesquisa mostram que ainda estamos muito perdidos quando se trata de IA generativa e educação”, disse Sobhi Tawil, diretor da entidade para o Futuro da Aprendizagem e Inovação. Ele pontuou que as instituições ainda não têm sequer diretrizes para lidar com essas questões.
Pare ele, a falta de orientações formais levará a um uso desordenado dessas ferramentas, com implicações ainda não conhecidas. “Não podemos simplesmente ignorar as implicações de curto e médio prazo dessas tecnologias para segurança, diversidade de conhecimento, equidade e inclusão“, afirmou.
Caiu nas graças de Harvard |
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A Universidade de Harvard, uma das mais prestigiosas do mundo, vai aderir ao uso de inteligência artificial generativa em sala de aula. Os estudantes de ciência da computação serão incentivados a usar a ferramenta para encontrar e explicar eventuais erros nos códigos e pedir retorno (feedback) sobre o design. Mas não será o ChatGPT que a turma vai usar nesses experimentos. Harvard criou a própria IA generativa chamada “CS50”, que será parecida no espírito, mas com foco em guiar os estudantes até uma resposta em vvez desimplesmente entregá-la de bandeja. A ferramenta vai ficar disponível também para quem não é estudante de HaHarvard, peloite de cursos online edX. |
Reflexos no Brasil
No Brasil, a inserção de ferramentas de inteligência artificial generativa na rotina das instituições de ensino superior ainda acontece de maneira lenta, comenta Celso Niskier, diretor presidente da ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior).
“Agora, começa-se a discutir o como ela será introduzida”, disse. Celso lembra que há muito as universidades se utilizam de ferramentas baseadas em machine learning (aprendizagem de máquina, em tradução livre) para trabalhar aspectos como personalização da aprendizagem, mas no caso da IA surgem outras preocupações: “O risco, naturalmente, é que essa utilização seja feita para burlar provas, exames ou até o próprio processo seletivo”, afirmou.
O diretor avalia que o melhor é trabalhar com essas ferramentas para desenvolver o pensamento crítico dos estudantes, ao invés de simplesmente rejeitá-las.
“Qual é o papel que se deve ter na orientação para os professores? É que se traga essa tecnologia para dentro da sala de aula como um apoio para os estudantes. Ao invés de pedir ao ChatGPT que responda uma questão, talvez o ideal seja trazer várias visões de uma mesma temática e debater em sala de aula a própria resposta da Inteligência Artificial, suas limitações e a separação do que é falso e o que é verdadeiro”, disse.
Identificação de conteúdo gerado por IA
“100% Inteligência Artificial”, foi o resultado que Ian Bogost, professor de ciência da computação na Washington University em St. Louis, nos Estados Unidos, recebeu ao utilizar um programa para verificar o uso de IA e possíveis casos de plágio em trabalhos acadêmicos de um de seus alunos.
Em relato à revista The Atlantic, o professor enfatizou a dificuldade de determinar se um estudante realmente usou ferramentas de IA em seus trabalhos. Ele também menciona que outros colegas receberam resultados semelhantes, o que o deixou preocupado. No entanto, ele também ponderou que alguns estudantes podem de fato escrever com linguagem semelhante a de IA.
Em conversa com uma representante da plataforma Turnitin, utilizada para fazer esse tipo de verificação, Ian explicou que correções gramaticais ou traduções automáticas podem levar a um “falso positivo” para o uso de IA. “Algumas pessoas simplesmente escrevem de forma muito previsível”, disse a porta-voz a ele.
Sandra Ávila, da Unicamp, lembra de ter encontrado um caso de plágio em um código entregue por um aluno como trabalho final. A docente não utilizou nenhuma ferramenta para fazer essa verificação, contudo conhecia o código apresentado.
Ao chamar a atenção do aluno, ela recebeu como resposta que ele “não havia copiado de ninguém, mas sim da internet, de um local que estava disponível para todos”. Isso a fez perceber a necessidade de explorar temáticas que vão além do uso ferramental, mas que envolvem, sobretudo, ética.
Isso reforça a percepção de que muitos estudantes chegam ao ensino superior sem ter desenvolvido diversas competências, entre elas as digitais. Entender como operar determinadas ferramentas e as particularidades delas faz parte do processo de desenvolvimento de competências e habilidades que não apenas o período de graduação vai exigir, como também o mercado de trabalho.
Revisão de processos éticos na universidade
Em linhas gerais, ela afirma que não sai em busca de plágios ou possíveis “atalhos” que os estudantes porventura usem.
“É preciso falar mais sobre ética e menos sobre técnica. Não estou dizendo que as técnicas não são importantes obviamente, mas é realmente necessário abordar a parte ética e isso em todo o processo [de aprendizagem] e em todas as esferas”, disse.
Ana Lúcia de Souza Lopes, professora de Tecnologias Digitais e Processos de Ensino e Aprendizagem nos cursos de licenciatura e pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo (SP), ressalta que a preocupação atual dos professores é discutir que tipo de conhecimento está sendo construído com essas plataformas.
“Ela é uma ferramenta que pode auxiliar, especialmente em um momento em que temos tantas informações disponíveis em tantos lugares. A IA pode ajudar na organização, filtragem e disponibilização de dados e informações de forma mais sistematizadas, mas quem transforma informação em conhecimento é o ser humano. Não podemos renunciar ao pensamento crítico e reflexivo“, pontuou.
A necessidade de ensino do pensamento crítico acaba sobrepondo a necessidade técnica, é o que afirmam os especialistas ouvidos pelo Porvir. Saber fazer uma pergunta é muito mais relevante neste processo do que conhecer como acessar o ChatGPT, por exemplo.
Uma pergunta feita de forma imprecisa, vai trazer respostas imprecisas e é necessário ter pensamento crítico afiado e desenvolvido para lidar com isso.
Sandra destaca que existem muitas formas de copiar, mesmo antes da inteligência artificial, tanto dentro quanto fora da internet. A questão principal está em como as universidades incentivam um uso consciente e crítico do que está disponível.
“Não estamos formando pessoas para o emprego a ou b, mas sim para a sociedade. É ensinar como aprender a aprender, o que significa procurar diversas fontes, refletir sobre o que viu e plantar uma sementinha no aluno de que é preciso ser ético sempre”, afirmou.
Ana Lúcia conta que aproveita para trabalhar esses aspectos éticos enquanto também ensina o uso da ferramenta. Em uma disciplina de Ciência, Tecnologia e Sociedade para alunos do Curso de Pedagogia, a docente transformou a IA em um membro dos grupos. “Os estudantes poderiam consultá-la como parte de um desafio que eu propus, mas o ChatGPT era um membro da equipe e eles precisavam discutir o desafio, pensar na solução, fazer as melhores perguntas para obter informações importantes”, relatou.
“Cada grupo apresentou sua proposta a partir da vivência em sala de aula, das discussões e no que a ferramenta auxiliou, além de discutirem sugestões e as transformações realizadas. Foi uma experiência muito interessante, mas ainda há muito o que se pensar, pois nem todas as disciplinas têm essa possibilidade”, concluiu.
O ensino superior e a preparação para o futuro
Um dos objetivos dos cursos de graduação é preparar profissionalmente as pessoas. E, tendo em vista que o assunto inteligência artificial está quente, não há a possibilidade de que as universidades deixem de falar sobre isso.
“A universidade forma os alunos para o mercado de trabalho, logo, é imprescindível que temas atuais e emergentes estejam no ensinamento e pesquisas. Além disso, a universidade tem núcleos de estudos interdisciplinares que abordam diversos assuntos com o corpo docente para que todos estejam conscientes dos temas”, diz Rodrigo Cardoso Silva, assessor especialista no NIC.br e CGI.br e professor na Faculdade de Computação e Informática (FCI) na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O docente ainda ressalta que ainda é cedo para decretar que a IA “mudará o mundo”. “É muita especulação que ‘falsos profetas da Internet’ gostam de popularizar para a sociedade. Qualquer transformação leva tempo para se consumar e, ainda, continuar a sofrer transformações”, disse.
Como descrito pelo diretor da Unesco, a falta de orientações tem deixado aberto para que os professores possam decidir usar ou não ferramentas como o ChatGPT, legando a eles, também, a maneira de lidar com os imprevistos.