O que precisa mudar para escolas serem acolhedoras a alunos imigrantes
Gestão de escola pública em São Paulo, que homenageia Carolina Maria de Jesus, é referência no acolhimento e respeito aos alunos de outros países
por Cláudio Marques da Silva Neto 18 de janeiro de 2024
Há pouco mais de uma década, ao assumir a direção da EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Espaço de Bitita, localizada na região central da cidade de São Paulo (SP), compreendi de maneira ainda mais radical o significado das palavras preconceito e discriminação. Era janeiro de 2011. Ao longo daquele ano, duas coisas me chocaram profundamente: a invisibilidade dos estudantes imigrantes e a forma pejorativa e depreciativa com que eram tratados pelos colegas nativos do Brasil. Se a instituição escolar ignorava as crianças e jovens imigrantes, os colegas sentiam-se livres para tratá-los de maneira preconceituosa. Contraditoriamente, os imigrantes eram a um só tempo bons alunos e muito disciplinados, e também os bolivas, os inferiores, aqueles que eram motivo das troças e alvo preferido das extorsões.
Do choque à ação
A perturbação inicial logo se transformou em indignação e isso exigiu pensar sobre o problema e tomar uma atitude para transformar aquela realidade brutal. Essa combinação de perturbação e indignação decorria da compreensão de que aquela era uma escola que instruía, mas não educava. Tal descompasso entre ensinar e educar resultava numa escola que não reconhecia e não valorizava a riqueza da diversidade. Uma escola em que ao algoz não foram oferecidas as ferramentas para compreender o outro de outra maneira naquilo que há de mais essencial que é a sua alteridade. Aos opressores não havia sido ensinado que a responsabilidade é um acontecimento ético.
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Enquanto isso, os imigrantes sofriam. Sobreviviam num ambiente hostil em que os colegas eram temidos e os profissionais, indiferentes. Era necessário intervir. Contudo, esta intervenção não poderia se reduzir ao puro moralismo que recrimina, mas não conscientiza; que desabitua, mas não educa. Tinha que ser uma ação construtiva, que na dialética do fazer pedagógico inverte a máxima e educa ensinando, e que por meio dele obtêm-se tanto a melhoria das relações quanto a elevação moral e ética do hostil, fazendo dele um igual capaz da hospitalidade ao outro, ao imigrante, ao diferente. Enfim, uma formação para a cidadania.
A partir dessa interpretação da prática educativa, considerei a ideia de socialização de Harold Garfinkel, analisada por José de Souza Martins no livro “Uma Sociologia da Vida Cotidiana”, segundo a qual a socialização é uma “laboriosa transferência da metodologia de interpretação e criação de significados e, portanto, de relações sociais interpretativas”, e não uma mera “transferência de amplo e complexo elenco de informações culturais”. Adotando esse princípio, pautado na compreensão de que para encarar os desafios cotidianos de uma escola é vital buscar o sincronismo entre a prática profissional e a teoria que a ilumina, criei e coordenei o projeto da mudança dessa realidade, uma ação que remete ao papel do diretor cuja criatividade pedagógica está na natureza da sua lógica de gestão.
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O que fazer?
Se a xenofobia era resultado da renúncia da instituição escolar em ensinar educando, e não da índole incorrigível dos sujeitos, tomei uma atitude e agi de maneira respeitosa e plural na construção da ideia de respeito ao outro. Primeiramente, apresentei, à equipe da escola, o problema e a proposta para enfrentá-lo. Em seguida, fui para a ação usando a melhor arma da qual podemos lançar mão para resolver qualquer problema: o diálogo.
Após conversar internamente, fiz reuniões com os pais/mães imigrantes, que se sentiram acolhidos e respeitados pela escola. Deles, ouvi sobre todo tipo de violência que recaia sobre as crianças e jovens imigrantes, que iam de ameaça à extorsão. Mas ouvi, também, palavras de esperança e elogios pela iniciativa. Foi das conversas com pais e mães que captei, como fizera Paulo Freire com o tema gerador, a ideia que iria orientar metodologicamente o projeto de inclusão dos imigrantes, qual seja, trabalhar valores como cooperação, solidariedade e respeito a partir da realidade e do saber do outro; o outro igual e também sujeito de direitos; o outro que tem boca para dizer aos ouvidos de quem está disposto a escutá-lo.
Nascia, assim, uma verdadeira comunidade de aprendizagem, denominada Projeto Escola Apropriada: educação, cidadania e direitos humanos. Por meio dele, a escola mudou o sentido da convivência com os imigrantes. Com este projeto, a noção de inclusão transcendeu do lugar da deficiência para o espaço da diversidade. Não substituindo um pelo outro ou diminuindo o primeiro em detrimento do segundo, mas alargando as fronteiras do sentido de inclusão, em torno do qual a educação escolar poderia alcançar os princípios do projeto civilizacional da modernidade do qual é herdeira e fiel depositária.
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Admitindo que se tratava de um ambiente escolar marcado pela desigualdade e pela discriminação do outro, era urgente substituir a pedagogia da indiferença pela Pedagogia da Diferença, a qual afirma e respeita as diferenças e a diversidade em vez de rechaça-las. Nesta perspectiva, levar imigrantes e nativos para um ambiente regulado seria a melhor estratégia educativa. Foi assim que se estruturou o Projeto Escola Apropriada, um grupo de trabalho que se reunia a cada 15 dias, durante duas horas-aula, em um dia fixo da semana e sempre no mesmo horário. Primeiro foram chamados só os imigrantes para relatar os problemas e injustiças (xenofobia, preconceito, desigualdade, falta de respeito, racismo, morar longe) que sofriam na escola e também propor soluções (respeito, tratar igual, solidariedade, apoio, bicicletário, cases para boliviar, empatia e relatar o acontecido).
Esta era a melhor maneira de dizer que o imigrante é um agente de transformação capaz de interferir no seu próprio destino, desde que apoiado e sendo legitimado pela escola, pois a ideia era promover o protagonismo desses sujeito, não abandoná-lo à própria sorte.
Em 2014, dois anos depois do início do projeto, organizei com os professores uma expedição à Bolívia com a participação de oito alunos, oito profissionais da escola e uma pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo). Além de reforçar a importância daquele país, local de origem da maioria dos alunos imigrantes da escola, a expedição teve também o objetivo de buscar informações para serem incluídas no currículo da escola. Em mais uma virada importante que expandiu a ação para as salas de aula e para as disciplinas em geral, a imigração passou a ser um eixo narrativo do projeto pedagógico.
Resultados: do caos ao sucesso
Feita a escuta inicial, e aparando algumas arestas como evitar o aprofundamento da segregação, como era o caso das classes exclusivas para os estudantes bolivianos, passou-se à segunda etapa, na qual cada imigrante indicou um colega nascido no Brasil para fazer parte do grupo. Desta maneira, o grupo foi ampliado e a diversidade se consagrava. O resultado positivo mais imediato desse processo foi a satisfação dos alunos brasileiros por se sentirem prestigiados pelos colegas de outras nacionalidades. Ser convidado para fazer parte do projeto era motivo de expectativa e orgulho. Logo no início, duas propostas fundamentais foram implementadas: a criação da comissão de recepção dos imigrantes, atualmente denominada de comitê do abraço, e a apresentação do lugar de origem por cada um dos participantes. Cada um deveria contar um pouco sobre o seu país e o lugar onde vivia e sobre a sua história.
Posteriormente, mais ideias foram surgindo, como as apresentações culturais e as mostras de comidas típicas dos diferentes países ali representados, inclusive com alunos do Brasil. Como consequência, após uma década, a escola passou a ser prestigiada no Brasil e observada por educadores e universidades de outros países, como Espanha e Portugal, notadamente pelo seu trabalho com a inclusão de imigrantes. Em 2017, tornou-se membro do PEA-UNESCO (Programa das Escolas Associadas da Unesco).
Dentre os inúmeros prêmios e comendas que coleciona, estão o Prêmio Faz Diferença/2018 (Organizações Globo); Paulo Freire/2018/2021/2022; Prêmio Municipal de Educação em Direitos Humanos/2021; Desafio: criativos da escola/2017 (Fundação Alana). Em dezembro de 2023, a escola recebeu o Voto de Júbilo da Câmara Municipal de São Paulo, em reconhecimento à “dedicação e empenho da instituição em proporcionar uma educação que vai além dos limites convencionais, abraçando a diversidade e promovendo um ambiente de aprendizado enriquecedor para todos os estudantes” (sic).
Por fim, é importante destacar que a base que sustenta esse trabalho exitoso de hospitalidade e justiça voltado ao atendimento de alunos imigrantes e refugiados é a compreensão de que a escola é sobretudo gente e que nela prevalecem as relações. Em meio a esse processo, estão também as necessidades sociais radicais profundas, que são conflitivas e estruturantes das relações sociais mais amplas. Nesse sentido, é importante compreender que a mediação das relações e a socialização escolar envolvem duas dimensões indissociáveis: educação e cultura. Foi na articulação minuciosa dessa interrelação que se teceu uma cultura de transição capaz de transformar uma realidade violenta, injusta e segregacionista em um ambiente educativo inclusivo, acolhedor e justo em que a diversidade é celebrada.
Cláudio Marques da Silva Neto
Mestre e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), atualmente realiza pesquisa de Pós-Doutoramento na USP e no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade de Évora/Portugal. É autor dos livros Indisciplina e Violência Escolar: Dilemas e Possibilidades (Porto de Ideias Editora/2017) e A Era do Engano (Editora Nzamba/2024), bem como é autor e coautor de artigos científicos sobre indisciplina, violência e desigualdade escolar, além de outros temas educacionais. É diretor da Escola Espaço de Bitita, da Rede Municipal de São Paulo, instituição integrante da Rede PEA/UNESCO. Em março de 2024 receberá, da Câmara Municipal de São Paulo, o Título de Cidadão Paulistano (PDL 74/2023) em reconhecimento ao seu trabalho na educação pública paulistana.