Educar para respeitar: professora cria grupo de acolhimento LGBTQIAPN+ em escola pública
Criado em uma escola pública do interior de SP, o Grupo de Vivências LGBTQIAPN+ promove rodas de conversa, oficinas e ações culturais que fortalecem o acolhimento, o respeito e a valorização da diversidade
por Bianca Marques Costa Nogueira
17 de outubro de 2025
“Participar do Grupo de Vivências foi uma das experiências mais importantes que eu já tive. Nunca imaginei que a escola me daria um lugar onde eu me sentiria acolhida de verdade, um espaço onde eu pudesse me expressar sem medo e ser quem eu sou.”
Ao ouvir o depoimento de uma aluna do 2º ano do ensino médio, percebi a dimensão do que o Grupo de Vivências LGBTQIAPN+ passou a representar dentro da Escola Estadual Sônia Maria Alexandre Pereira, em São José dos Campos (SP). Sempre acreditei que a escola deve ser um espaço de acolhimento e respeito.
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Quando eu era aluna, não existia nenhuma iniciativa parecida, e isso sempre me incomodou. Eu queria mudar essa realidade e fazer da escola um lugar onde todos se sentissem pertencentes, respeitados e representados. Com esse propósito, junto com a colega Camila Quedas Soares Pupin, nasceu o Grupo de Vivências LGBTQIAPN+, um encontro semanal aberto a alunos, professores e funcionários, criado como um ponto de encontro, escuta e apoio mútuo.

De onde veio a ideia
Atuo há um ano e meio como professora da rede pública estadual, lecionando história, geografia, filosofia, sociologia e geopolítica no ensino médio. Acredito que criar uma conexão com os estudantes é o primeiro passo para estabelecer a conexão entre ensino e aprendizagem.
Logo no primeiro dia de aula, costumo contar algumas coisas sobre mim, entre elas que sou bissexual e que prezo pelo respeito e pela empatia dentro da sala de aula. Essa abertura inicial costuma gerar confiança e faz com que estudantes da comunidade LGBTQIAPN+ se sintam à vontade para se aproximar e conversar comigo.
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Com o tempo, percebi que muitos alunos manifestavam o desejo de compartilhar suas vivências, mas não encontravam um ambiente de escuta e apoio. As conversas do dia a dia foram se transformando em relatos, desabafos e pedidos por mais acolhimento. Entendi, então, o quanto a escola ainda precisava avançar na construção de um lugar realmente seguro e respeitoso para todos.
No ano anterior à criação do grupo, já observando essas necessidades e sentindo-as também em mim, propus uma atividade sobre gênero e sexualidade. Organizei uma roda de conversa e, durante aquele encontro, ouvi relatos muito sinceros e dolorosos sobre experiências de preconceito, tanto na escola quanto nas famílias, além de falas carregadas de estereótipos e desinformação. Essa vivência me marcou profundamente e me fez compreender que era preciso criar um lugar permanente de diálogo e acolhimento.

Desenvolvimento
O primeiro passo foi ouvir os próprios estudantes. No início, percorremos as salas convidando alunos e professores a participarem. Como o projeto é aberto e por adesão, ele não está restrito a uma única turma. Atualmente, doze alunos participam regularmente, além de outros que aparecem de forma ocasional.
Durante esse chamado, enfrentamos resistência e comentários preconceituosos, como “vish, que viadagem”, “credo” e “o mundo está perdido mesmo”. Em uma das turmas, um aluno perguntou, em tom de provocação, se o grupo falaria sobre Deus. Expliquei que a proposta não tinha objetivos religiosos, e ele reagiu com desdém. Esses episódios mostram, de forma ainda mais clara, o quanto o grupo era necessário.
Em seguida, realizamos um mapeamento das demandas e expectativas dos participantes para entender o que realmente os movia e preocupava. A principal questão levantada era relacionada ao contexto familiar: muitos queriam expressar suas dores e encontrar acolhimento em outros que viviam situações semelhantes.
Outras temáticas também surgiram, como o preconceito na escola, a transfobia dentro da própria comunidade, a autoaceitação, a autoestima, as representações LGBTQIAPN+ na cultura pop, os lugares inseguros, as infecções sexualmente transmissíveis e o processo de transição hormonal. Esse mapeamento é contínuo e se renova a cada encontro, conforme os alunos trazem novas experiências e temas de interesse.
Escolhemos a Sala de Leitura como espaço de acolhimento. Organizamos o ambiente com cartazes, livros, produções artísticas e mensagens de apoio, criando uma atmosfera de segurança e respeito.
| Questão de gênero é questão da escola |
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A fim de apoiar as conversas sobre identidade de gênero e orientação sexual em sala de aula, o Porvir ouviu professores e especialistas para disponibilizar uma curadoria com materiais para o planejamento pedagógico. Confira! |
Rodas de conversa, oficinas e criatividade
Nossos encontros acontecem uma vez por semana, geralmente durante o intervalo do almoço. As rodas de conversa se tornaram o coração do grupo.
Os temas surgem tanto dos alunos quanto das professoras responsáveis. As reuniões duram cerca de quarenta minutos, tempo suficiente para promover o diálogo e o acolhimento, mesmo dentro da rotina escolar. Cada encontro é guiado pela escuta ativa, pela empatia e pelo respeito. Desde o início, minha intenção não era conduzir uma aula tradicional, mas criar um espaço horizontal, onde todos pudessem falar e ser ouvidos.
Com o tempo, passamos a incluir oficinas artísticas, como pintura, colagem, teatro e música, como formas de expressão. Essas atividades ajudaram os alunos a traduzirem suas vivências em arte e a ressignificarem experiências de dor, resistência e orgulho. Muitos gostam de desenhar, pintar e criar, por isso fazia sentido incorporar essas linguagens ao grupo.
Além das oficinas, realizamos análises críticas de filmes, séries, músicas e livros com representações LGBTQIAPN+. Esses momentos de reflexão coletiva apoiam a educação midiática: conversamos sobre como a mídia pode tanto reforçar estereótipos quanto abrir caminhos para novas formas de se reconhecer e existir.
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Entre os materiais trabalhados, estão os livros da série “Heartstopper”, de Alice Oseman, que retratam com sensibilidade o amor entre dois adolescentes e abordam temas como amizade, identidade e aceitação. A leitura despertou empatia e identificação entre os alunos, servindo como ponto de partida para conversas sobre afetividade e respeito.
Outro título é “Se eu fosse pura”, de Amara Moira, escritora e doutora em literatura. Ela que compartilha suas experiências como mulher trans discutindo gênero, corpo e preconceito a partir de uma perspectiva sincera e poética.
Também lemos “Não recomendado”, do cantor e escritor Caio Prado, obra que mistura letras, crônicas e reflexões sobre vivências LGBTQIAPN+, questionando os padrões e reafirmando a potência da liberdade e do amor em suas múltiplas formas.
Optamos por uma abordagem interdisciplinar, envolvendo as áreas de Ciências Humanas (história, geografia, sociologia e filosofia) e língua portuguesa, de modo que o projeto dialogasse com o currículo e com as competências da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), como a análise da diversidade social (EM13CHS001), a valorização dos direitos humanos (EM13CHS103) e a reflexão crítica sobre a mídia (EM13CHS503).
As leituras e os debates ampliaram o repertório cultural do grupo e reforçaram o sentido do projeto como um espaço de escuta, acolhimento e formação crítica.
Exposição “Presente com Orgulho”
Um dos momentos mais marcantes do Grupo de Vivências LGBTQIAPN+ foi a criação da exposição “Presente com Orgulho”, idealizada e construída coletivamente por estudantes e professoras. A mostra transformou os corredores da escola, convertendo um mero lugar de passagem em um ambiente de reflexão e celebração.
A primeira parte da exposição abordou as diferentes formas de violência que atingem a comunidade LGBTQIAPN+, evidenciando o impacto do preconceito, da exclusão e da violência física e simbólica.
Para essa etapa, realizamos uma pesquisa em jornais de grande circulação sobre casos de violência e utilizamos também dados e levantamentos produzidos pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o que deu base e credibilidade ao trabalho.
Uma grande bandeira azul, rosa e branca estampava a frase: “O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo.” O dado, retirado dos levantamentos da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), evidenciava a gravidade da violência de gênero no país. De acordo com o Dossiê ANTRA 2024, o Brasil segue, pelo 16º ano consecutivo, na liderança mundial de assassinatos de pessoas trans e travestis, com 257 mortes registradas em 2023 — o que equivale a um caso a cada 34 horas.
A presença desses dados na mostra teve o propósito de sensibilizar a comunidade escolar para a urgência de promover o respeito, a empatia e a defesa dos direitos humanos, unindo informação, arte e conscientização.
As conquistas e histórias de luta da comunidade estavam no foco da segunda etapa, apresentando personalidades que abriram caminhos para a visibilidade e o respeito. As produções reuniam textos, cartazes, desenhos e colagens que celebravam o orgulho e a resistência.
Entre os homenageados, os cantores Jão, Cássia Ellier, Glória Groove, Ludmila, Sam Smith, Lara Raj (KATSEYE), Ney Matogrosso, Pabllo Vittar, Demi Lovato e Carol Biazin; as atrizes Alice Braga, Nanda Costa, Hunter Schafer, Laverne Cox e Elliot Page; os personagens Sailor Uranus (anime Sailor Moon), Amity Blight e Luz Noceda (Série The Owl House) e Garnet (personagem da série Steven Universe); os ativistas Marsha P. Johnson, Erika Hilton, Harvey Milk; o escritor Oscar Wilde e a pintora Frida Kahlo.
Foi emocionante ver os alunos apresentando suas produções para colegas e professores, compartilhando histórias e se reconhecendo nas narrativas expostas. A exposição não apenas sensibilizou toda a comunidade escolar, mas também reafirmou o direito de cada pessoa existir plenamente, com dignidade e orgulho.
Abertura para a comunidade
A boa repercussão do projeto nos levou a abrir o grupo para a comunidade. Convidamos ativistas, artistas e especialistas para participarem das rodas de conversa, ampliando os olhares e fortalecendo a integração entre escola e sociedade.
Uma parceria essencial foi realizada com a UBS (Unidade Básica de Saúde) do bairro, que visitou o grupo para esclarecer dúvidas sobre infecções sexualmente transmissíveis, transição hormonal e cuidados com a saúde. Essa aproximação também possibilitou uma nova parceria com uma advogada que faz parte da comunidade LGBTQIAPN+ e atua na área de direitos civis. Ela conversou com os alunos sobre questões legais envolvendo casos de preconceito e documentação para pessoas trans.
Cada convidado trazia novas perspectivas e reforçava a importância de uma educação pautada nos direitos humanos, na diversidade e na empatia.

Obstáculos a superar
Enfrentamos desafios importantes ao longo do caminho. A LGBTfobia ainda é uma realidade; é preciso muito diálogo para desconstruir estigmas e construir confiança. Outro obstáculo foi o tempo: como os encontros aconteciam durante o intervalo do almoço, era necessário um esforço coletivo de organização e comprometimento.
Sinto que nem todos os docentes compreenderam completamente a importância desse espaço para os alunos. Nenhum se opôs ou expressou críticas preconceituosas, mas a maioria também não se envolveu ativamente, com exceção da professora da Sala de Leitura, minha grande parceira, Camila Pupin. O convite à participação veio durante uma reunião de equipe, mas a adesão efetiva se deu de forma tímida.
Mesmo assim, a cada semana, o grupo crescia e se tornava mais forte. O respeito e o sentimento de pertencimento começaram a se espalhar pela escola, transformando o clima institucional e mostrando que o acolhimento também é uma poderosa ferramenta pedagógica.

Impactos e aprendizados
Os resultados foram surpreendentes. Vi alunos mais confiantes, participativos e empáticos. Muitos relataram que passaram a se sentir representados e ouvidos pela primeira vez. O grupo também inspirou outros professores a incluir temas relacionados à diversidade em suas aulas e projetos.
O Grupo de Vivências LGBTQIAPN+ me ensina que educar é, antes de tudo, escutar. É criar espaços onde cada estudante possa existir plenamente, sem medo e sem disfarces. Hoje, quando vejo a escola mais aberta, sensível e acolhedora, tenho a certeza de que estamos no caminho certo.
O feedback dos alunos é minha principal ferramenta de avaliação. O objetivo do grupo nunca foi quantitativo, mas qualitativo, e os avanços se revelam nos gestos do cotidiano. Um exemplo marcante foi o dia em que, pela primeira vez, um aluno trans teve coragem de corrigir uma pessoa que o chamou pelo pronome errado.
Trazer apoio externo e manter a constância das atividades foram acertos importantes, que ajudaram a consolidar o grupo.
Nosso grupo segue ativo, crescendo e se transformando junto com a comunidade escolar. E eu sigo aprendendo todos os dias com cada voz que se levanta para dizer: “eu existo, e a escola também é meu lugar.”
Bianca Marques Costa Nogueira
Formada em História pela Univap (Universidade do Vale do Paraíba, em São Paulo), atuou em projetos socioambientais com pesquisa cultural e educação não formal em museus. Há um ano e meio é professora da rede pública estadual de São Paulo, lecionando história, geografia, filosofia, sociologia e geopolítica no ensino médio, além de voluntária de geografia no CASD (Curso Alberto Santos Dumont), projeto preparatório gratuito voltado a estudantes de baixa renda.





