‘A educação integral deixa a escola mais humana’
Em entrevista, especialista no tema afirma que quanto mais “integral” a escola for, maior será o aprendizado dos alunos
por Davi Lira 21 de agosto de 2013
Antes observada mais frequentemente em pequenos grupos de escolas ou de unidades-modelo, a discussão sobre educação integral está cada vez mais presente na agenda das escolas brasileiras, principalmente as públicas. Inserida tanto nos projetos políticos de governos, como em iniciativas propostas por entidades da sociedade civil, os conceitos e práticas inerentes a esse modelo educacional ganharam mais força no debate pela melhoria da qualidade do ensino no país.
Mesmo trazendo aspectos que conversam com outras propostas há tempos debatidas na área da educação, como a gestão democrática, a educação integral está na agenda nacional. É o que afirma a pesquisadora da Universidade Federal de Pernambuco, Ana Emilia Castro, coordenadora da Pesquisa Nacional Programa Mais Educação: Impactos na Educação Integral e Integrada no Nordeste.
Para ela, com a adesão de mais de 85% das escolas públicas brasileiras desde 2008 ao programa Mais Educação, do Ministério da Educação (MEC), o desafio agora não é mais a expansão. “Precisamos focar agora na gestão, na forma como os conceitos de educação integral estarão sendo implantados na prática, dentro dos ambientes de aprendizagem. Até porque, além do programa Mais Educação, não faltam iniciativas que buscam aumentar a carga horária dos alunos, propor atividades recreativas e ampliar a participação da comunidade na escola, e que existem há décadas”, fala a pesquisadora.
Para melhor entender as questões que envolvem a implantação da educação integral no cotidiano da escola, especialmente no que se refere ao desafio da formação dos professores para atuarem nesse novo contexto, confira a seguir a entrevista que o Porvir fez com a professora Ana Emília:
A senhora poderia descrever um pouco melhor o conceito de educação integral?
A educação integral diz respeito à integralidade do sujeito, ou seja, ela propõe trabalhar com o ser humano de forma mais ampla. O conceito de educação integral vai além dos aspectos da racionalidade ou cognição. Ele dá importância também ao olhar, às artes, à estética, à música, significa desenvolver as dimensões afetivas, artísticas, espirituais, os valores, a saúde, o corpo. O ponto principal que o envolve tem a ver com uma outra lógica de aprendizagem. A gente não aprende só na escola, adquirimos cada vez mais conhecimento durante toda a vida. A relação que a educação integral tem com o espaço e o tempo é diferente da forma tradicional de educação que vemos na maioria das nossas escolas públicas. Estamos diante de um cenário de quebra de paradigmas da forma de conceber e trabalhar com a educação integral, haja vista a superação de barreiras culturais, que perpassam as relações interpessoais e de poder no caráter organizacional da escola, impregnado de heranças burocráticas, tecnicistas e formalistas. Torna-se um desafio trabalhar a ressignificação das ações pedagógicas.
Para a escola implantar um modelo de educação integral é preciso uma carga horária de atividades maior?
Para que seja plenamente trabalhada, a escola deve levar em conta a necessidade de ter mais tempo e mais espaços de aprendizagem. Mas, o maior desafio é trabalhar justamente com esse tempo adicional. Na educação integral, não basta aumentar o tempo do aluno na escola de quatro para sete horas por dia, algo que acontece de forma corriqueira hoje. Ter mais tempo exige ter mais planejamento pedagógico para aproveitar de forma mais transversal esse tempo.
É por isso que muitas pessoas confundem a educação em tempo integral com educação integral?
Exatamente. A batalha a favor da expansão da carga horária nas escolas já não representa mais um grande desafio. Agora, o ponto em questão é outro. A educação em tempo integral deve ser transformada numa educação integral e integrada. Ou seja, o padrão de escolas de educação em tempo integral que temos hoje, onde pela manhã ela é uma unidade tradicional e à tarde se transforma num espaço lúdico com atividades artísticas desconectadas de um projeto, deve mudar. Na educação integral, a transversalidade dos conteúdos trabalhados de forma mais conectada e o diálogo com a realidade do aluno devem ser uma constante nas escolas que adotam o modelo.
Então, as escola que ainda não adotaram plenamente o conceito de educação integral precisam pensar num novo formato de escola?
Certamente. Elas têm que mudar a forma de pensar e fazer educação, não basta ter uma oficina de artes no contraturno, é preciso muito mais. Elas têm que dialogar mais com os alunos, com o que eles trazem nos encontros e com o contexto de suas comunidades. Como trabalhar a disciplina de história sem levar em conta a história do aluno, da escola ou da própria comunidade? Mesmo vivendo numa sociedade cada vez mais fragmentada é preciso que a gente transversalize mais, rompendo com a prática de trabalhar com conteúdos isolados. Com as atividades de capoeira, por exemplo, é possível trabalhar os direitos humanos, a história, a cultura e a educação física.
Logo, a articulação do educador seria fundamental para que todas essas sugestões fossem colocadas em prática…
Não tenho dúvida. Os nossos professores já conhecem de certa forma o que é a educação integral, especialmente hoje que ela está com mais evidência. O que eles buscam agora é colocá-la em prática. Para isso, eles precisam ser melhor instruídos na maneira com que podem utilizar esses conceitos para melhorar o aprendizado dos alunos. Por isso a importância das formações continuadas de docentes.
E como funcionam essas formações?
Elas podem ocorrer por meio de cursos de pós-graduação, de extensão, de encontros que fomentem o debate sobre a temática e a metodologia. Desde 2011, já participei da concepção de dois cursos de extensão que duraram 10 meses. Neles, reunimos os oficineiros, professores comunitários, professores da rede e gestores. Como muitos dos oficineiros que comandam as atividades educativas no contraturno não têm curso superior, preferimos adotar esse formato de curso, ao invés de propor uma pós, o que restringira o acesso. Pensamos em cursos de extensão que têm como abordagem uma proposta de formação problematizadora, que significa a ação conjunta de desvelamento e reflexão sobre as realidades vivenciadas no ambiente escola-comunidade, onde acontecem as práticas educativas da educação integral, em busca de repensar, ressignificar essas próprias práticas.
Que tipo de conteúdo é trabalhado nesses cursos?
Como o próprio nome do curso sugere (Múltiplos Olhares) buscamos trabalhar tanto a questão legal como a conceitual, e também fomos além. Seguindo as próprias diretrizes do MEC, também focamos em atividades que estimulavam os educadores participantes a mapearem a realidade de cada um na escola e a realidade do entorno da unidade.
E como ocorreu esse mapeamento?
Para se trabalhar com a educação integral o professor precisa conhecer a realidade da escola, dos alunos e da própria comunidade. Por isso que propusemos essa atividade prática. Nela, pedíamos para que, em grupo, eles levantassem os equipamentos urbanos, como praças e monumentos; os centros culturais, como bibliotecas e museus; as organizações não-governamentais ao redor; além das atividades econômicas e culturais da região. Tudo isso, para que, com base nas informações, eles soubessem articular e propor um projeto de ação pedagógica no âmbito da educação integral.
Mas os professores já não aprendem a elaborar esse tipo de projeto durante sua formação nas universidades?
Os próprios tutores e supervisores que participavam dos cursos de extensão – muitos deles ainda alunos de licenciatura –, falavam que nunca haviam tido contato com a proposta pedagógica da educação integral. Quer dizer, os modelos de currículos no ensino superior ainda estão muito distantes da realidade e da educação integral. Mesmo sendo uma pauta de debate nacional, o tema ainda é pouco discutido entres os próprios alunos das licenciaturas na academia. Precisamos mudar isso.
Mas como modificar esse quadro?
Os currículos e a forma de se pesquisar nas universidades devem ter outra dinâmica. Muitas pesquisas feitas por alunos de graduação e pós não encaram a escola e os alunos que se relacionam como sujeitos ativos, que são coautores do estudo, que acabam participando juntos da pesquisa. Por isso decidimos criar o Neafi (Núcleo de Educação Integral e Ações Afirmativas), que tem como objetivo promover estudos e reflexões sobre políticas de educação integral e ações afirmativas por meio de pesquisa e de extensão com a comunidade acadêmica e demais membros da sociedade civil para que o futuro professor tenha outro tipo de olhar depois que passarem pela universidades. Outras instituições poderiam fazer algo semelhante.
Além da reformulação sugerida nos currículos e de cursos de extensão, como o professor pode colocar a educação integral cada vez mais em prática?
Logo de cara, os professores bem que poderiam olhar mais nos olhos dos alunos, ouvir mais. Integrar pais e comunidade no cotidiano da escola também seria “praticar educação integral”. E por que não trazer outros profissionais para a sala de aula para explicar tipos diferentes de ofício aos alunos? O professor pode convidar o pai de algum aluno que seja sapateiro, por exemplo. Na sala, ele pode explicar a cadeia do couro numa aula de geografia. A educação integral vem nesse sentido. É pelo cotidiano e por meio dos saberes das pessoas que a comunidade escolar vai contribuir para uma boa educação.
Existem outras formas dos professores aplicarem desde já o conceito da educação integral no encontro com seus alunos?
Os docentes poderiam a partir de hoje estimular ainda mais a curiosidade dos alunos. Eles precisam trazer a vida dos estudantes e da comunidade para dentro da sala de aula e de outros espaços de aprendizagem. Atividades práticas envolvendo a articulação de várias disciplinas também são um caminho. A educação integral se cristaliza dessa forma, ensinando por meio da dança, da música, trabalhando com a memória e propondo sempre a participação ativa dos sujeitos.
A educação integral implantada plenamente em todas as escolas brasileiras pode melhorar o nível da educação pública no Brasil?
A educação integral pode sim ser o caminho para a melhoria do ensino no Brasil. Com ela, é possível melhorarmos também o processo de democratização na educação do país. Se a escola, dentro do seu cotidiano, trouxer a comunidade para planejar o projeto pedagógico de forma efetivamente democrática e participativa, melhoraremos a qualidade no aprendizado dos nossos alunos. Além disso, ela se tornará mais atrativa e mais humana. Assim como as escolas devem ser.
Esta reportagem faz parte de uma série especial sobre educação integral, acompanhando o lançamento do Centro de Referências em Educação Integral, uma iniciativa apoiada pelo Porvir e pelo Inspirare. A plataforma do centro estará disponível a partir de 29 de agosto, no www.educacaoint