A escola é responsável pela morte da criatividade? Neurociência responde
Conforme as séries avançam, o medo do erro e de decepcionar suprimem o potencial criativo da criança. Mas será que a escola é a única vilã?
por Tiago Eugênio 3 de outubro de 2019
Vivemos uma transformação radical no jeito como aprendemos, ensinamos e nos relacionamos. O processo de reinvenção da educação é acompanhado por duras críticas à escola, como se a instituição e seus atores fossem os responsáveis pela morte da criatividade dos alunos em desenvolvimento, por exemplo.
Esse discurso ganhou força, especialmente depois de falas como as de Ken Robinson, uma das personalidades mais assistidas na série de palestras do TED.
Felizmente, essa crítica não se sustenta diante das recentes descobertas da neurociência. Hoje sabemos, por exemplo, que modificações cerebrais afetam de forma significativa diferentes capacidades do indivíduo, dentre elas a criativa. À luz das neurociências, podemos dizer que a escola tradicional não mata a criatividade, contudo não se importa tanto para salvá-la de seu declínio natural.
Na escola, o indivíduo é ensinado a adaptar-se aos padrões estabelecidos pelo professor e adotar um pensamento convergente em lugar de divergente. No primeiro tipo de pensamento, a organização lógica e dedutiva predomina, o ato de pensar é mais rígido na medida em que se busca uma única solução para um determinado problema. Já no segundo, o divergente, ao confrontar-se com um problema, o indivíduo tem liberdade para propor novos caminhos e respostas inusitadas por meio de associações mais amplas. Nesse cenário, não há um único caminho traçado pelo professor, muito menos uma única solução para um problema proposto.
Diferenças entre convergente e divergente em situações de aprendizagem
Como o pensamento divergente pode ser aplicado em uma sala de aula? Para fins didáticos, vamos imaginar uma visita a uma turma de ensino fundamental que esteja estudando sistema solar. Na sala, o professor apresenta informações sobre cada planeta (tamanho, distância em relação ao sol, temperatura da superfície e composição da atmosfera). Os estudantes são convidados pelo professor para escolher dois planetas e estudarem as características específicas de cada planeta e, em seguida, compartilharem oralmente suas pesquisas com os colegas. Essa é uma tarefa típica de currículos tradicionais e focados no ensino convergente, nem um pouco criativa e motivadora.
Os alunos devem apenas rever informação apresentadas pelo professor, pesquisar em livros e na internet informações já conhecidas e juntá-las em uma apresentação oral. Em outra escola e turma, o professor solicita para os alunos pesquisarem as características de cada planeta. Logo após a pesquisa, ele os insere em uma situação de pensamento divergente. Nessa situação, um grupo de alunos escolhe um planeta e deve desenhar imagens sobre o corpo celeste, atribuírem gravidade, atmosfera e outras condições de um planeta qualquer. Além disso, o professor incentiva os alunos a criarem seres alienígenas: como seria a aparência desses seres? Ainda, questiona sobre quais tipos de proteção seriam necessários para um astronauta humano poder sobreviver no planeta escolhido e qual seria o nome mais adequado para o ambiente imaginado.
No livro “How Creativity Works”, o americano Jonah Lehrer observa que 95% dos alunos no segundo ano são criativos – eles desenham, pintam e criam diversas histórias.
No entanto, no quinto ano este percentual cai para 50%. No ensino médio, 10% apenas são considerados alunos criativos. Então, as escolas são as responsáveis pelo declínio da criatividade desses alunos?
Não há dúvidas que existem diversas razões e a escola está longe de ser a única vilã da história. Eis aqui uma explicação biológica. Cérebros são órgãos plásticos e as maiores modificações ocorrem no período da infância.
É importante compreender o desenvolvimento do cérebro, especialmente suas relações com o desenvolvimento de habilidades e comportamentos, nas diferentes idades de desenvolvimento da criança. Uma região específica que se modifica rapidamente é o córtex pré-frontal.
Esta área, localizada na parte anterior do cérebro, é responsável pelas funções executivas e abriga circuitos neuronais responsáveis por habilidades cognitivas necessárias para controlar pensamentos, emoções e ações.
Há quem pense que o cérebro tenha um padrão de crescimento linear. No entanto, não é o que procede. Ocorre, na verdade, um amadurecimento desigual de áreas.
Mas o córtex pré-frontal, que inibe ou controla ações impulsivas, só atinge pleno desenvolvimento cerca de uma década depois do início da vida escolar. No ensino infantil, o córtex pré-frontal não exerce nenhuma ação de controle sobre os impulsos e ações da criança. Esses estudantes criam de forma tranquila e prazerosa.
Porém, conforme eles mudam para as séries mais avançadas, áreas de autocontrole se desenvolvem e iniciam o processo de inibição sobre os impulsos do indivíduo. As crianças começam a pensar sobre as expectativas e críticas de seus pares, especialmente de seu professor que atua como um extensor social das funções de autocontrole exercidas naturalmente pelo córtex pré-frontal. O medo do erro, do exagero, do improviso e de decepcionar o professor suprime paulatinamente o potencial criativo da criança. A escola e seus atores então atuam como cúmplices da derrocada natural da criatividade, diante do desenvolvimento de mecanismos neuronais de autocontrole que desempenham papéis fundamentais na vida social, afetiva e intelectual do indivíduo adulto.
Esse é o problema, a cumplicidade exagerada com a nossa indubitável natureza humana. Em relação à criatividade, mas não em relação aos mecanismos de autocontrole, a escola precisa nadar contra a maré, adaptando suas atividades para prolongar as capacidades criativas em seus estudantes.
Mas como a escola pode criar situações de aprendizagem que favoreçam mais o pensamento divergente e criativo? Como os estudos das neurociências podem oferecer respaldo científico e segurança para professores e diretores de escolas realizarem mudanças e tornar suas escolas e, por conseguinte, seus alunos mais criativos?
Veja o comparativo entre uma aula tradicional, que prioriza o pensamento convergente, e uma aula criativa, que enfatiza o pensamento divergente.
Tiago Eugênio
Psicobiólogo com formação em Game Based Learning pela Quest To Learn em Nova York. Cofundador do Movar Educação, Detecta.app e Plataforma Educacional Neurons. É professor de neuroeducação e gamificação do Instituto Singularidades, UNIFESP, USP e Santa Casa. Autor do livro "Por Dentro dos Jogo: o impacto dos games sobre o cérebro e as relações sociais".