É fundamental ensinar crianças a perguntar e a problematizar, diz especialista em alfabetização
Em entrevista para o Porvir, Carmen Lúcia Vidal Pérez traça um panorama da alfabetização no país e sugere: é preciso ensinar a criança a pensar e problematizar
por Ana Luísa D'Maschio 8 de setembro de 2022
A pandemia da Covid-19 deixou marcas profundas na educação. E, quando se fala em educação infantil, os impactos são igualmente amplos. Entre 2019 e 2021, houve um aumento de 66,3% entre as crianças de 6 e 7 anos de idade que não sabiam ler e escrever. O número passou de 1,4 milhão em 2019 para 2,4 milhões em 2021. Os dados são da ONG Todos pela Educação, publicados na nota técnica “Impactos da pandemia na alfabetização de crianças”, baseados na Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), na qual os responsáveis afirmam se as crianças sabem ou não ler e escrever.
“O período revelou as fragilidades da educação brasileira. Do ponto de vista do aproveitamento escolar, foi uma fase muito conturbada, com poucos resultados e pouco investimento”, explica Carmen Lúcia Vidal Pérez. Professora da Faculdade de Educação da UFF (Universidade Federal Fluminense), Carmen também é integrante do GRUPALFA (Grupo de Pesquisa Alfabetização dos Alunos e Alunas das Classes Populares).
Nesta entrevista ao Porvir, com o intuito de refletir sobre avanços e retrocessos neste 8 de setembro, Dia Internacional da Alfabetização, Carmen, que foi orientada pelo educador português António Novoa em seu doutorado, traça um panorama da alfabetização pós-pandemia. Confira:
Porvir – Como o período da pandemia afetou a alfabetização?
Carmen Pérez – O período da pandemia afetou, e muito, não só a alfabetização, mas a educação de modo geral. Revelou a fragilidade das escolas brasileiras de proporcionar às crianças as condições para o acesso à educação. As escolas brasileiras já vêm operando há algum tempo, ou talvez desde sempre, no limite da precariedade. O que a pandemia fez foi evidenciar essa precariedade. A população de baixa renda, as classes mais populares, não tiveram acesso nem à internet, nem a equipamentos. Por outro lado, professores e professoras tentaram, de diferentes formas, porque não foram preparados para trabalhar com educação a distância – especialmente com os pequenos. Tentaram, literalmente, improvisar, recriar, inventar outras formas, e até reproduzir pela internet as atividades que estão no livro didático. Foi um grande desafio para todo mundo.
Porvir – Foi possível ensinar as crianças a distância, em sua opinião?
Carmen Pérez – Acho que o ensino a distância não pode ser o ensino formal. A televisão, a internet, os desenhos educativos, mídias que trazem mensagens educativas e conhecimentos para as crianças, mas não por meio da estrutura escolar. As crianças que têm acesso, conseguem assistir muitos canais de YouTube e há programas muito interessantes, que são educativos. Você pode abordar qualquer conteúdo, mas não no modelo escolar, que só pode ser trabalhado na escola. Ou a escola muda e vai trabalhar em uma perspectiva que as diferentes mídias façam parte desse cotidiano, ou então nós vamos buscar uma educação a distância não formalizada.
Porvir – Como é essa educação não formalizada?
Carmen Pérez – Por meio de mídias, de plataformas especializadas, às quais a criança tem acesso e alcance essa possibilidade de ampliar seus conhecimentos com o seu lazer e diversão. Do ponto de vista da alfabetização, nós sofremos muito com a pandemia, mas não por falta de capacidade dos professores. Sofremos porque fomos, todos, pegos de surpresa – eu mesma, no ensino superior, tive de me reinventar para dar aulas. Dentro das possibilidades, conseguimos nos reinventar e fazer algumas coisas. Agora, se não há acesso à internet ou a um celular ou um tablet, fica difícil. Muitas escolas tentaram reproduzir atividades impressas em folhas para que os pais pudessem buscar, mas os pais não são professores e não têm essa obrigação. Do ponto de vista do aproveitamento escolar, foi um período muito conturbado, com poucos resultados. Mas houve muito pouco investimento, vamos deixar isso bem claro.
Porvir – Como podemos recuperar essa aprendizagem?
Carmen Pérez – Acho que não é uma questão de recuperar, e sim recomeçar esse processo com outras bases. Não adianta ficar reproduzindo aquele modelo arcaico, aquele modelo antigo de aula de cópia ou reprodução, porque não funciona mais nem para a educação presencial: as crianças ficam cansadas, entediadas. As aulas, principalmente na alfabetização, têm de ser dinâmicas; as atividades devem trazer novidades. A apropriação da leitura e da escrita vem junto com brincar e se divertir, com atividades práticas. Assim, a criança vai entrando no universo da linguagem escrita, como vai entrando no universo da linguagem musical, da linguagem artística.
Eu não entendo essa ruptura metodológica que se faz entre a educação infantil e os anos iniciais, como se a criança por ter feito 6, 7 anos, cognitivamente não tivesse mais as necessidades de uma criança de 4 ou 5 anos. O brincar e o lúdico são fundamentais para o processo de aprendizagem da criança pequena de até, pelo menos, os 10 anos de idade.
Porvir – E a tecnologia, como enxerga o papel digital na alfabetização infantil?
Carmen Pérez – A tecnologia chegou para ficar. Nós vivemos uma geração que, mesmo que não tenha acesso a todos os dispositivos e todos os materiais, está inserida no mundo digital. Um celular já não é desconhecido para criança nenhuma, né? Outro dia, meu sobrinho neto, que tem 6 anos, fez um desenho para mim, um livro que ensinava a plantar. Era uma folha dobrada ao meio. Fez os desenhos, e, na contracapa, desenhou um QR Code, um quadrado cheio de ondinhas. E me disse: “Se você quiser saber mais sobre como plantar, coloque seu celular em frente deste QR Code para acessar os sites que estão ali embaixo”. Obviamente, não tinha site nenhum escrito, mas ele reproduziu esse processo e fez o QR Code. Essa criança tem 6 anos e isso já está no universo dele. A escola tem de se atualizar nesse sentido. Não acho que as mídias e os processos digitais são ruins, pelo contrário: são ferramentas fundamentais para apoiar o processo de apropriação da leitura da escrita pela criança. Nós, professores, e eu, como formadora de professores alfabetizadores, temos de nos atualizar e pensar esse processo não só de aprendizagem da leitura e da escrita, incorporando as tecnologias.
Porvir – Como fazer isso?
Carmen Pérez – A filmagem, a fotografia, a digitação… O computador pode ser uma grande ajuda. A criança escreve seu texto no caderno e depois vai digitá-lo no computador: isso a ensina a observar o que ela erra na hora que escreve, pois [o programa de texto do computador] tem seu marcador, mostrar onde ela vai achar o sinônimo, com a palavra correta, e comparar a diferença. É algo fundamental. Temos de inventar formas de trabalhar com essas ferramentas no processo de apropriação da linguagem e da escrita pela criança.
Porvir – De acordo com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), o processo de alfabetização infantil deve se iniciar por volta dos 6 anos de idade. Como a senhora enxerga esse projeto de “alfabetização na idade certa”? De fato, existe idade certa para aprender a ler e a escrever?
Carmen Pérez – Se existisse idade certa, os adultos não se alfabetizariam. Cada criança tem um ritmo, uma necessidade, se você der dois anos de possibilidade para essas crianças se apropriarem da linguagem escrita, ou três ou quatro anos… Acho que nos cinco primeiros anos do ensino fundamental 1 a questão básica a ser trabalhada é a apropriação da linguagem escrita, a leitura e a escrita, depois o processo que eu chamo de pós-alfabetização, com a ortografia. A gramática pode vir depois. Aprender a escrever escrevendo, é trabalhar a escrita das suas diferentes bases: escrever no papel, digitar, trabalhar textos escritos… O processo de alfabetização vai acontecendo e a criança vai se apropriando da linguagem escrita a partir do seu ritmo. O problema é que nós categorizamos tudo, né? Até os 8 anos, todos devem estar alfabetizados. E se isso não acontecer? É problema da criança ou será que o problema é da metodologia trabalhada na escola? Uma criança que escreve um bilhete, não importa se tenha 6, 7 ou 8 anos, e escreve hoje “o j i”, eu consigo ler “hoje”. A palavra está bem colocada, exatamente se referindo ao sentido que ela quis atribuir. A palavra não está ortograficamente correta, mas ela escreveu, ela sabe escrever e sabe a hora de usar essa palavra. Essa criança está alfabetizada. Estar alfabetizado não é escrever corretamente todas as palavras: é ler e compreender o que leu, e expressar as suas ideias por meio da escrita. Se ao final da alfabetização todos nós soubéssemos escrever corretamente, não precisaríamos ficar estudando a língua portuguesa por 12 anos ao longo do nosso processo de escolaridade.
Porvir – Erros fazem parte do processo de aprendizagem.
Carmen Pérez – Se a criança escreve uma história com coerência, princípio meio e fim. Mesmo que ela apresente “erros” ortográficos e isso não é um erro, mas, sim, a forma como ela está pensando a escrita. Ela está fazendo a relação entre a oralidade e escrita, ela precisa de um tempo para entender que pode escrever tudo que ela quiser, tudo que ela pensar, só que ela não pode escrever da mesma forma como ela fala. Aqui no Rio de Janeiro, todo mundo fala “t u m a t i” , se eu escrevo assim, estou certo: estou escrevendo como eu falo. Essa tensão entre oralidade e escrita, que verdade foi falsamente criado porque é um processo no qual a criança só vai retirar essa oralidade da escrita a partir da leitura, lendo muito, oferecendo à criança a oportunidade de pensar sobre a escrita. Ela fala de um jeito, mas escreve de outro: a ortografia e a gramática são convenções. A minha avó, por exemplo, escrevia farmácia com ph. Até alguns anos atrás, a palavra ideia tinha acento.
Não podemos exigir isso de uma criança que está adentrando no universo da escrita. Mas você vai deixar todo mundo escrevendo errado? Não! Depois que a criança já escreve, que ela tem autonomia de registrar suas ideias no papel, o papel da professora é começar a trabalhar a relação entre oralidade e escrita. E não ficar fazendo a criança copiar-copiar-copiar ou dizer que eu falo “tumate” e escreve tomate. É preciso trazer esses problemas sobre a escrita para que a criança pense.
Porvir – Há uma pressa para o aprendizado?
Carmen Pérez – Sim! Acho que há uma pressa muito grande para que a criança aprenda a ler e aprenda a escrever e não escrever com qualquer letra. Ainda há um fetiche com a letra manuscrita, que desvia totalmente a atenção da criança entre o que ela escreve e como ela escreve. Pelo contrário: a letra bastão é a forma mais simples de grafar e não desvia tanta atenção da criança sobre o que ela quer escrever, embora ela também tenha de conhecer a letra manuscrita para ler. Na verdade, o único lugar que você usa a letra manuscrita é na escola; no mundo e universo escrito, ela aparece muito pouco. É importante que ela conheça para ler. Agora, se para escrever se o mais fácil ela grafar, por exemplo, com a letra bastão ou a letra de imprensa com curvas e semicurvas, para a criança é mais fácil, porque ela está focada no que quer escrever.
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Porvir – A exigência da escrita manuscrita pode atrapalhar o aprendizado?
Carmen Pérez – Quando você exige que ela faça a escrita manuscrita, cheia de movimentos, você tira a atenção do que ela quer escrever e a atenção dela parece estar voltada para como escrever, como grafar a letra. Essa concepção de que escrever é copiar, é desenhar a letra, atrapalha muito o processo de alfabetização. Há questões que a gente precisa se debruçar e uma delas é a questão da letra manuscrita, que atrapalha muito o processo da criança. A criança vai passar naturalmente a fazer isso depois, não precisa ser nos primeiros anos. Depois que ela estiver escrevendo, é possível oferecer uma caligrafia. Mas eu não vejo nenhuma necessidade. O importante é que ela reconheça os diferentes modos de grafar uma letra para que ela possa ler. São criados uma série de obstáculos para a aprendizagem da leitura e da escrita – aí, a criança demora e o problema é dela, não da escola ou da metodologia adotada, da orientação pedagógica. É preciso repensar muitas coisas.
Porvir – Pós-pandemia, como fica essa orientação da BNCC no que se refere à alfabetização por volta dos 6 anos?
Carmen Pérez – Acho um equívoco uma Base Nacional Comum Curricular, porque se coloca todos como se fossem iguais. E não somos. Coloca-se as crianças todas no mesmo ritmo, parte-se do princípio que todas as crianças têm as mesmas condições sociais de vida e de estudo, o que não é verdade. Você pode trabalhar com uma margem de tolerância, uma margem ideal, entre 6 e 8 anos tudo bem, mas isso não pode ser uma camisa de força. As escolas têm de ter essa coerência. A criança não pode ser penalizada por um processo pelo qual ela não participou, não pode ser penalizada pela falta de acesso a determinadas coisas. Nós paramos dois anos da nossa vida e ninguém imaginava isso. Morreram mais de 600 mil brasileiros. Agora vamos [alfabetizar correndo] para bater estatística, bater meta? Não é isso. Estamos lidando com seres humanos, com crianças que estão em seu processo de escolarização. Às vezes, perder tempo é ganhar tempo. Mas, acima de tudo, a escola tem de rever as práticas pedagógicas. No meu ponto de vista, a BNCC ajuda muito pouco nesse sentido.
Porvir – Como vê a formação dos professores da educação infantil? Os cursos de pedagogia têm preparado os alunos para serem alfabetizadores? É preciso repensar esses cursos?
Carmen Pérez – Eu entendo a educação infantil como a educação da primeira infância considerando dos 0 aos 12 anos. Ela é fundamental. Essa fase inicial da criança com o lúdico, a música, as artes, tem de passar pelo processo de produção de conhecimento, então a valorização começa pela própria reinvenção do segmento da educação infantil e do segmento dos anos iniciais do ensino fundamental. Não dá para aceitar criança de 2 anos com folhinha, com apostilhinha ou livrinho. Isso não dá! É transformar o que tem de pior no ensino fundamental e levar para educação infantil. Pelo contrário: temos que pensar nessa didática da educação infantil para o ensino fundamental, fundada nas expressões da criança, na sua fala, na inserção da criança no mundo das linguagens, inclusive da escrita. Não estou defendendo que se alfabetize crianças com 2 anos, mas ela está dentro dessa linguagem do interesse com a leitura, música, linguagem corporal, fotografia, no cinema… A criança está no mundo digital e ela precisa ter esse conteúdo dentro da sala de aula, ou seja, a valorização da educação infantil vem junto com a valorização da educação de modo geral e da educação do primeiro segmento. Então, que a gente pegue a educação infantil até o final do ensino fundamental 1, até mais ou menos o 5º ano de escolaridade. Basicamente, é ensinar a criança a pensar, a problematizar, porque a criança é curiosa. Quanto menor ela é, mais curiosa também. Vamos tentar responder às perguntas das crianças, o que não falta é assunto.
Porvir – Em algumas entrevistas, a senhora defende que a educação infantil é o alicerce de tudo. Como fazer com que essa etapa seja mais valorizada?
Carmen Pérez – A gente pode trabalhar tudo do ponto de vista da produção do conhecimento ao nível de compreensão de cada grupo de cada grupo etário. Mas é possível uma escola que as crianças vão aprender o que elas querem. Mas, quando se fala isso, as pessoas pensam: “Ah, não vou ensinar língua portuguesa, matemática…” Vai, sim, mas a partir do que as crianças querem. Aliás, se faz até mais. Vai até além do que está prescrito no currículo que, para essa faixa etária, eu só posso ensinar isso. Pelo contrário, eu acho que a nossa escola e aí eu vou trazer de novo Paulo Freire ensina as crianças a responderem perguntas que elas não formulam e o fundamental é a gente ensinar as crianças a perguntar.
Porvir – Neurocientistas trazem em pesquisas que a vida leitora começa na primeira infância. Como incentivar os pequenos ao mundo letrado e ilustrado, mas sem estimulá-los em excesso? Há uma medida para isso? Qual sua sugestão para pais e cuidadores?
Carmen Pérez – Uma mãe que tem um bebê de dois meses, por exemplo. Quando ela compra um livrinho de plástico para a hora do banho, a criança vai apertá-lo, fazer barulhinho. Ao mesmo tempo, ela compra também um brinquedinho, né? A criança já vai observar e manipular esses objetos e sentir a diferença. O instrumento também ensina. Aquela outra mãe quando dá um livrinho de pano, ou de plástico, ela não quer que seu filho leia, mas está introduzindo a criança no universo da leitura. E o universo da leitura é ter livros de qualquer tipo de material, contar história para criança, ler junto, mostrar figuras, mostrar as letras. De modo geral, a criança quando gosta de uma história, só quer ouvir aquela, devora o livro, ela mesmo lê sem saber ler. Acima de tudo: é preciso responder e atender às necessidades das crianças. Por exemplo: se um menino se chama Artur e ele vê a letra A. “Aqui está escrito Artur”. Ela está reconhecendo a primeira letra do nome e, naquele momento, está dando valor à totalidade do nome à primeira letra. À medida em que ele vai perguntando, você vai respondendo, escrevendo o nome dele. Na escola, ele fará isso por meio da chamada. Se perguntar como se escreve bola, vai lá, escreve. Ela vai aprendendo enquanto interage com a escrita. Vejo que nós não temos de inserir a criança no universo da escrita: estamos em uma sociedade na qual a escrita está presente.
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“De 0 a 5” é um podcast sobre a primeira infância que discute como atravessar essa fase em uma pandemia. Produzido pelo Porvir em parceria com a Rede Nacional Primeira Infância, o podcast é apresentado por Marta Avancini e Ruam Oliveira.