Perda da experiência coletiva coloca escola diante de novos problemas - PORVIR
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Inovações em Educação

Perda da experiência coletiva coloca escola diante de novos problemas

Em sessão promovida pelo LIV na Bett Brasil, a psicanalista Vera Iaconelli debate o conceito de saúde mental e a gestão escolar para o acolhimento de estudantes e professores

por Vinícius de Oliveira / Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 14 de maio de 2022

Já é possível dizer com absoluta certeza: o “novo normal”, que em certo período de 2021 virou peça de marketing para vender um mundo azul no pós-pandemia, acabou não se confirmando. Nas escolas, este primeiro semestre do ano letivo trouxe à tona dificuldades emocionais vividas por estudantes e educadores durante o período de isolamento social. Em situações mais graves, brigas entre alunos têm sido filmadas e divulgadas em redes sociais com uma frequência alarmante.

Na última quarta-feira (11), o diretor do programa de educação socioemocional LIV (Laboratório Inteligência de Vida) Caio Lobianco e a psicanalista Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar, subiram ao palco da Bett Brasil, evento sobre tecnologia e educação, realizado em São Paulo (SP), para debater temas como suicídio e os desafios enfrentados pelas escolas no retorno às aulas presenciais.

“Ao mesmo tempo que temos tem, sim, de comemorar por estar aqui sem máscaras, não podemos negar que estamos numa situação catastrófica mundial, em termos de problemas econômicos e de pessoas passando fome”, diz Vera. “Essa é a realidade. Os jovens sabem que estamos no fim de um processo ainda muito doloroso e com muitos lutos a serem feitos.”

As adversidades diante do contexto imprevisível também têm outro motivo, segundo a psicanalista. Nossa sociedade perdeu o entendimento do que é espaço público, algo demonstrado em diferentes momentos do dia a dia, seja no desrespeito ao próximo na conversa no cinema ou na caixa de som que cada um decide levar para a praia na expectativa de ouvir suas músicas no volume que bem quiser. 

Enquanto isso, a escola enfrenta as consequências de ser o espaço no qual a diferença ainda encontra motivos para ser celebrada e escutada. “A escola está em um momento maravilhosamente desafiador, difícil e sofrido: acabou se tornando um dos últimos bastiões, um dos últimos lugares do exercício do público”, declara Vera.

Vera Iaconelli e Caio Lobianco participam de painel em auditório na Bett Brasil. No primeiro plano, silhuetas do público presente e os dois participantes sentados em poltronas
Crédito: Bett Brasil Vera Iaconelli e Caio Lobianco durante o painel ‘Saúde mental e prevenção do suicídio: Qual o papel da escola?’ / Crédito: Bett Brasil

Abaixo, você confere os principais pontos do evento e também de uma conversa do Porvir com ambos. 

A banalização do termo “saúde mental”

Vera avalia que existe um entendimento errado sobre o conceito de saúde mental. “A gente pressupõe que a saúde mental seja um lugar no qual sempre se está feliz e sem sofrimento. Isso não é saúde mental. A saúde mental está ligada ao como a gente consegue lidar com o sofrimento inerente à vida. Quando, diante dos desafios inescapáveis da vida que implicam sofrimento, o sujeito não consegue elaborar (seus pensamentos), aí sim podemos falar em adoecimento, em uma questão de saúde mental.”

A gente pressupõe que a saúde mental seja um lugar no qual sempre se está feliz e sem sofrimento. Isso não é saúde mental

A escola como espaço de socialização

Na retomada presencial, depois de tanto tempo de reclusão e perda de pessoas queridas, é preciso entender, de acordo com os debatedores, o momento pelo qual passamos, que não é de felicidade. Para Caio, nesse cenário, respeitar e acolher os sentimentos é fundamental: faz-se necessário ouvir o que educadores, alunos e a comunidade estão sentindo, o que querem, o que esperam da escola agora. “Não se pode abrir mão dos momentos de interação, criar cada vez mais ambientes de troca”, sugere. 

Papel dos professores 

A psicanalista alerta: quem trabalha com saúde mental entende que não é um tema restrito a grupos, só a alunos ou só aos professores, por exemplo. “Na comunidade escolar, essa é uma questão que diz respeito ao servente, ao porteiro, à pessoa da lanchonete, ao professor e a todo mundo que convive com as crianças. Por isso, quando vamos às escolas, escutamos os funcionários de A a Z. Não existe uma comunidade de ensino onde uns estão doentes e outros estão saudáveis. Isso afeta a todos”, explica. “A criança faz parte de um ambiente onde existem pessoas e não apenas objetos. A escola é um lugar onde as pessoas se encontram para transmitir algo, em todos os níveis e entre todos os sujeitos. O que interessa ali é um material humano.”

Rede de apoio

Caio endossa a opinião de Vera: é preciso criar círculos de confiança na escola. “Você, gestor, já perguntou para os professores como estão se sentindo hoje? O sentimento do professor tem de estar em pauta. É preciso cuidar de quem cuida, criar espaços de escuta para os professores.” 

Conflitos do dia a dia

Vera reforça a necessidade de ações específicas para um momento de crise, de elaboração de lutos, de expectativas de mudança de comportamento, de readaptação da forma de ensinar. “Eu diria que esse é um momento de estado meio de exceção do dia a dia escolar. Não se pode fingir que não vivemos uma das grandes crises históricas mundiais. Não podemos fingir que isso não está acontecendo porque senão isso vai voltar para nós na forma de adoecimento.”

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Resgate da coletividade

O momento da pandemia é aquele no qual começamos a perceber o que perdemos, avalia Vera. “Havia uma ideia de ‘respira fundo e vai. A gente se une, se fortalece para enfrentar o pior’. Agora nem existe mais essa desculpa. Estamos exigindo dos jovens uma volta para a escola que é igual uma volta para o Carnaval. Eles estão afetados pela experiência, tentando elaborá-la. Foram ensinados a ficar em casa, de pijama, assistindo aula, fazendo outra coisa ao mesmo tempo enquanto estavam sozinhos diante da tela. Agora, chegam à classe e reproduzem essa cena.” Há ainda, de acordo com a colunista da Folha de S.Paulo, todo um processo de recuperar a experiência da sala de aula como uma experiência coletiva.

Um dicionário dos afetos

O vocabulário dos afetos é tão ou mais importante que o dos objetos. Esse é o dicionário que as crianças precisam ter desde pequenininhas, pontuou Vera. “O adulto chega à análise e não sabe dizer o que ele sente. A gente precisa começar em casa, na escola. É colocar o mundo psíquico na ponta. E como é que a gente faz isso? Com literatura. Se as crianças tiverem acesso à ficção, a filmes apropriados, ao teatro, começam então a nomear as experiências. Por que ainda vemos ‘Branca de Neve’? Ela teve que encarar a inveja da madrasta e fugir, fazer amizades. Esse é um mundo de afetos.”

É sobre ouvir

Caio Lobianco lembrou que, ao longo da criação de espaços de confiança nas escolas, sempre existe um medo dos educadores diante do que será exposto. “O que colocar? O que dizer? A gente costuma dar mais valor ao que vamos dizer do que aquilo que a criança está colocando. Eu entendo que já tem um poder gigante o que está sendo colocado na roda e o fato das demais estarem ouvindo. Mas a gente ainda fica muito preso ao que vai dizer como resposta.”

Para Vera, onde não há possibilidade de diálogo, o destino é a agressividade e a violência. “O que fica entre agressividade humana e a violência é o diálogo. Trata-se das coisas mais básicas: falar e escutar, escutar e falar. Como a gente acabou com o diálogo, as crianças passam da apatia total para o tapa na cara e xingamento, sem escala”, exemplifica. 

Viver com patologias

Caio também questionou se estamos em uma sociedade mais adoecida ou que mais patologiza o viver. A psicanalista convidou todos a uma releitura de “O Alienista”, de Machado de Assis. Na história, o Dr. Simão Bacamarte constrói um manicômio para internar todos os loucos da cidade. No fim, o psiquiatra acaba percebendo que ele próprio era o único anormal. 

Vera fala em patologias do social. Diante de um modo de vida enlouquecido, tal como Bacamarte, vamos atribuindo doenças aos indivíduos em vez de reconhecer que estamos vivendo uma experiência adoecedora. 

A questão, explica a psicanalista, não é diagnosticar e ter cada vez mais distúrbios, transtornos e doenças catalogadas. O problema é quando não se leva em consideração o ambiente no qual esses problemas estão sendo criados. “A gente se exime de pensar que a nossa sociedade está adoecida e que às vezes a resposta depressiva do sujeito é a melhor saída que ele encontrou para dizer: ‘Olha, tem alguma coisa errada aqui e eu preciso parar e ver o que é.'”

Casos de suicídio

Ao lembrar que o suicídio é a segunda principal causa de morte de adolescentes do mundo e que no Brasil a taxa entre jovens de 10 a 19 anos cresceu 55% entre 2008 e 2017, Caio perguntou a Vera sobre o que cabe às famílias e à escola nesse contexto. 

“O suicídio pode ser feito em um ato muito rápido e pensado ou em um momento de muita impulsividade. É importante dizer isso porque a gente vai ter muitas escolas e muitas famílias cujas crianças conseguiram levar a cabo o suicídio e a culpa é devastadora.” 

De acordo com a psicanalista, criar espaços de confiança nos quais a criança possa encontrar alguém do outro lado é fundamental. “A gente pode aproveitar o espaço da escola, que é onde elas passam mais tempo e podem ser escutadas. E nem que seja para você ter ali um lugar de alerta quando não quer ir às festinhas, não quer encontrar amigos, não quer participar de atividades”, destaca.


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educação infantil, ensino fundamental, ensino médio, socioemocionais

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