Uma conversa entre a educação e o projeto modernista de 1922
Com inspiração nos ideais que moveram a Semana de Arte Moderna de 1922, lançamos a discussão sobre a identidade da educação brasileira
por Ruam Oliveira 15 de fevereiro de 2022
Em 2022 a Semana de Arte Moderna completa 100 anos. A ação, que condensou diversas atividades envolvendo literatura, música, poesia, arquitetura entre outras áreas, visava a implementação de um olhar brasileiro e de valorização da cultura local.
O Porvir trata de educação. E, também, sobre inovações em educação. E aqui fica uma pergunta: Como os modernismos pensados há um século se refletem nos anseios atuais? E de que maneira eles podem estar relacionados com a educação brasileira nos dias de hoje?
Sobre a forma como o país se percebe, há ainda quem aponte que exista um “complexo de vira-latas”, no qual tudo o que acontece no estrangeiro é visto com ares de superioridade.
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“O Brasil ainda é definido, em parte, pela perspectiva exterior; não apenas a perspectiva dos estrangeiros, mas também a dos próprios brasileiros, que, ao olhar de fora pra dentro, buscam firmemente reafirmar os estereótipos e a nossa suposta inferioridade em relação a outras nações. Historicamente, sofremos com as visões que vêm de fora – de um país exótico, desordenado, periférico –, mas muitas vezes gostamos de confirmá-las”. Esta afirmação está no livro “Educação de Alma Brasileira” (Vekante Educação e Cultura, 130 páginas). Publicado em 2017, a obra sintetiza boa parte do pensamento daquele início de século que, ainda nos dias de hoje, segue muito parecido para parte da população.
Educação à brasileira
Há uma grande quantidade de materiais que expõem o quão bem-sucedidas são projetos educacionais da Finlândia, por exemplo. E no Brasil? Não se trata de contrapor iniciativas promovidas no exterior com o que tem sido realizado internamente, mas sim tentar um olhar interno.
Com este movimento, cabe incluir uma visão abordada por um dos principais expoentes do modernismo. Oswald de Andrade, com seu manifesto antropofágico, quis “engolir” técnicas e influências do exterior para fomentar a criação de algo novo e que fosse local. Uma espécie de “canibalismo” cultural.
Dizer que há a necessidade de uma educação “tipicamente brasileira” não é algo que chegue necessariamente a fazer sentido, aponta o professor e ex-ministro Renato Janine Ribeiro. “Evidentemente é importante a educação enraizar as pessoas ou pelo menos mostrar o vínculo com o seu país. Uma educação deveria mostrar às pessoas o que a nossa cultura tem de importante, de criativo, de significativo. Nós temos uma tendência muito deprimente de falar mal da nossa sociedade e eu penso que esse ponto deveria ser corrigido”, diz.
Helena Singer, socióloga e vice-presidente da Ashoka América Latina, avalia que os educadores e educadoras daquela época não estavam à parte do movimento. Isso porque se tratava de uma movimentação social e um sentimento de parte da população brasileira. E em referência a esta visão antropofágica, que ela indica como anticolonialista, um dos objetivos do movimento foi justamente digerir ações e práticas do exterior e devolver de forma ressignificada.
“Eu acho que o olhar do modernismo para o Brasil valorizava a nossa alegria, criatividade, vitalidade e partir disso propunha nos vários campos da arte e da cultura e também da educação que a gente sobretudo produzisse experiências plurais, tão diversas quanto são os povos que compõem o Brasil e que isso tudo fosse valorizado, revelado, vivenciado com estímulo e não fosse apagado ou silenciado por um projeto universalista supostamente civilizatório que seria copiar o que vem da Europa e dos Estados Unidos.”
Impactos na educação
E na educação a impressão é a mesma. Tanto Helena quanto Renato destacam que os movimentos modernistas impactaram a educação brasileira, mesmo que nem sempre seja possível medir em quais proporções.
“É difícil dizer que ele teve um impacto direto, mas o movimento modernista se realiza no mesmo momento em que você tem, em outras áreas, a ideia de construir projetos nacionais e de construção da identidade brasileira”, afirma Romualdo Portela, diretor de Pesquisa e Avaliação do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação Política e Ação Comunitária) e Presidente da Anpae (Associação Nacional de Política e Administração da Educação). Ele destaca que, à época, estava em curso a implementação de diversas reformas estaduais na educação.
Como exemplo ele cita as ações de Antônio Sampaio Dória, político e educador, que trabalhou na reformulação do ensino primário e secundário em São Paulo; Anísio Teixeira, jurista, educador e escritor brasileiro, que defendia a democratização do ensino público; e Lourenço Filho, educador e um dos pioneiros do movimento Escola Nova.
Romualdo afirma que essas ações culminaram no Manifesto dos Pioneiros da Educação, de 1932, que, em poucas palavras, pretendia uma organização social a partir da educação. Para o educador, este manifesto bebe do mesmo caldo dos movimentos modernistas e também segue sendo bastante atual. Ele também considera que as intenções do manifesto influenciaram muitas políticas educacionais brasileiras do século 20, mesmo que de maneira desafiadora.
“Acho que esta ideia de realização do direito à educação nos termos do manifesto de 1932 ainda estão presentes como desafio. E continua sendo essa a necessidade de modernização. A gente ainda não garantiu a escola básica para todo mundo, a garantia de uma escola de qualidade, o ensino superior ainda não é democratizado, apesar de termos conseguido avanços nesse perfil”, diz.
Helena também lembra que muitos dos proponentes dos movimentos modernistas tiveram grande importância no campo da educação, como o escritor Mário de Andrade. “Durante anos ele se dedicou a conhecer o Brasil, conhecer o Norte, o Nordeste e as suas expressões culturais e artísticas, sistematizar isso e trazer no que ele chamava de revelar o Brasil para os brasileiros”, lembra a socióloga.
Ela também cita a criação dos parques infantis na cidade de São Paulo como exemplo de uma proposta de educar diferente da então tradicional, na qual processos culturais não estavam dissociados dos processos educacionais.
“Tem também [o maestro e compositor Heitor] Villa-Lobos, que se dedicou a conhecer o que é próprio da musicalidade brasileira e fez amplas investigações por várias partes do Brasil. Ele não só produziu uma música exclusivamente brasileira, mas tinha um projeto educacional importante de corais nas escolas que foi levado adiante pelo Anísio Teixeira”, relembra Helena.
Hora de modernizar?
Para o professor Renato Janine, a educação brasileira precisa se modernizar. No entanto, não necessariamente pela perspectiva dos movimentos modernistas de 1922.
“Eu penso que hoje a modernização da educação deve estar sobretudo no plano da emancipação das pessoas, no plano de mostrar que o conhecimento muda as pessoas. Esse é o ponto, ao meu ver, principal e certamente os modernistas de um século atrás concordariam com isso”, diz Renato.
Helena, que também participou da escrita do livro “Educação de Alma Brasileira”, não considera que os anseios dos modernistas tenham se concretizado plenamente, apesar dos avanços.
“O sistema que busca a homogeneização, que busca importar modelos dos países do norte que busca ainda um modelo universal para todos os brasileiros baseado em currículo comum, em avaliações externas, avaliações padronizadas, tudo isso sufoca o que o Brasil tem de melhor a oferecer para educação no mundo e que eu acredito que esse é o verdadeiro anseio modernista”, diz Helena.
Para ela, o Brasil ainda tem um projeto modernista “a realizar”, mas que já foi iniciado sempre que há valorização, divulgação e disseminação de experiências genuinamente brasileiras, desde que “orientadas por esse sentimento, por essa visão e filosofia anticolonialista que revela nossa criatividade, a nossa afetividade e orienta os processos de socialização e produção do conhecimento a partir dessas características, sobretudo experiências que revelam a diversidade do Brasil na sua composição étnica e cultural”.
Genuinamente brasileira
Ao refletir sobre o modernismo necessário para a educação, o livro “Educação de Alma Brasileira” questiona: “Que potencial teríamos se o que há de mais brasileiro na educação se somasse a garantias amplas de direitos sociais, igualdade de acesso e distribuição justa de recursos e tecnologia? E se não quisermos mais perseguir os modelos de França, Estados Unidos, Coreia do Sul ou Finlândia? E se a educação brasileira se assumisse como jabuticaba – algo próprio e único do Brasil? O que faríamos com a educação se fôssemos brasileiros no seu modo de fazer?”
E também traz a resposta: ela vem de educadores, educadoras e experiências atuais.
“Práticas que partem do que há de melhor no modo de ser brasileiro, para reinventar o que se entende por desenvolvimento e qualidade na educação. A partir de seus sujeitos concretos, criam-se as múltiplas possibilidades do que pode ser uma Educação de Alma Brasileira. Sem bala de prata, sem pedagogia enlatada, que chega de fora para lidar com necessidades que não são as nossas”.
Os especialistas apontam que os anseios modernistas seguem um caminho, não estão nem concretizados, nem deixados de lado. Alguns deles, não se aplicam aos dias atuais, tampouco.
De todo modo, a ação promovida há 100 anos segue presente no cotidiano brasileiro, se relacionando historicamente com o presente e sendo ferramenta útil para pensar, também, a educação do país.
Leia mais:
– Livro gratuito “Educação de Alma Brasileira”
– Manifesto Antropofágico
– Manifesto dos Pioneiros da Educação, de 1932
– Afinal, a Semana de Arte Moderna foi tão importante assim?